07 setembro 2011

Comemorações e cidadania

Artigo publicado na Gazeta do Povo, a propósito do 7 de Setembro;  disponível aqui.

Opinião

Quarta-feira, 07/09/2011
OPINIÃO DO DIA 2

Comemorações e cidadania

Publicado em 07/09/2011 | GUSTAVO BISCAIA DE LACERDA
As comemorações oficiais tendem a afastar os cidadãos; as comemorações da sociedade ou negam a ordem sociopolítica, ou são alienantes ou expressam de maneira muito enviesada algum sentido de cidadania
O Dia da Independência, Sete de Setembro, é o momento em que o Brasil celebra sua liberdade política em relação ao país que o originou, Portugal. Por esse motivo, deveria ser um dos momentos de celebração da nossa vida coletiva, do nosso projeto de país. Todavia, não é assim que os cidadãos brasileiros percebem a data.
A bem da verdade, nenhuma das manifestações coletivas da “identidade nacional” refere-se à vida política, à prática da cidadania, à ideia de um projeto coletivo de país. O carnaval é a festa da inversão dos valores, o momento em que o bobo da corte pode fingir ser o rei e o rei pode dar-se ao luxo de ser o bobo: o que se afirma aí é a negação dos valores, não a afirmação de uma ordem coletiva.
Os feriados religiosos, por definição, não se referem à vida política. A Páscoa e o Natal – as duas maiores festas do calendário católico – referem-se a momentos da vida de Cristo e, dirigindo-se para o além, não têm vínculos com a ordem humana.
Por fim, os eventos esportivos: a Olimpíada e, muito mais, a Copa do Mundo. Nesses momentos, os brasileiros afirmam-se orgulhosos de serem brasileiros. Não deixa de ser irônico que eventos que visam à diversão revistam-se de um certo caráter político: costuma-se ver os destinos do país nos resultados dos jogos da seleção brasileira.
Em contrapartida, quais são as comemorações oficiais da nacionalidade? As duras e brutais paradas militares. O que elas mostram à população é o poder do Estado, a capacidade de imposição da sua vontade, via força física. Além disso, tais desfiles contribuem para uma concepção militarista da sociedade e do Estado (e, portanto, do país), em que a ordem hierárquica, a disciplina e a violência são mais importantes que as liberdades de pensamento, de expressão e de organização, com fins construtivos e por meios pacíficos.
Em outras palavras, as comemorações oficiais tendem a afastar os cidadãos; as comemorações da sociedade ou negam a ordem sociopolítica, ou são alienantes ou expressam de maneira muito enviesada algum sentido de cidadania.
Nada disso é por acaso. O que salta aos olhos é o papel das elites – políticas, intelectuais e até econômicas –, no sentido de afastar a população e criar festas públicas que alienem, que dominem melhor. Nem todas as elites tiveram ou têm esse projeto, mas, infelizmente, o conjunto da nossa História Política aponta para essa conclusão simples e direta.
Não podemos deixar de lado as “elites religiosas”, isto é, a Igreja Católica. Beneficiada (e controlada) pelo Estado durante o Império, com a República (1889) ela perdeu influência devido à laicização. Com isso, reorganizou-se para reverter a perda de influência, o que aconteceu a partir de 1930, ao apoiar a era Vargas e os regimes seguintes. A quantidade enorme de datas religiosas oficiais evidencia a sua importância política; ela evidencia que o brasileiro não se deve perceber como um cidadão que integra uma pólis, mas alguém que deve tornar-se um fiel de uma Igreja, com o apoio do Estado.
Nas últimas duas décadas, aos poucos, aos trancos e barrancos, um projeto político coletivo e consciente tem-se elaborado. Mas podemos evitar os partidarismos atuais e a crítica genérica às “elites”; basta lembrarmos que a busca desse projeto já teve antecessores: na década de 1890, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes afirmavam o valor político do Fundador da República, Benjamin Constant, e propunham datas e festas coletivas que comemorassem a vida nacional, o projeto de país, a experiência histórica do Brasil, de Portugal, do Ocidente e da humanidade. Como vimos, no longo prazo essas propostas não vingaram, mas o seu sentido era claro.
Não deixa de ser significativo que Teixeira Mendes tenha sido um dos defensores da República e o autor da Bandeira Nacional: para ele, a cidadania só é possível em uma verdadeira República e a República só é verdadeira se realizar a cidadania.
Gustavo Biscaia de Lacerda, doutor em Sociologia Política, é sociólogo da UFPR e professor da UTP.(GBLacerda@ufpr.br)

21 agosto 2011

Sobre o estilo de Maquiavel e a Teoria Política moderna

Ao estudarmos a obra de Maquiavel, muitas vezes lemos que ele foi inovador e que, rompendo com uma tradição prévia – geralmente associada ao pensamento moral católico –, teria fundado a “Ciência Política moderna”.


Especificamente, o livrinho O príncipe, que é a obra mais famosa de Maquiavel, refletiria essas inovações, ao apresentar algumas observações teóricas com uma série de exemplos: mas as observações não são sistemáticas (por vezes resumem-se a algumas poucas linhas) e os exemplos freqüentemente têm várias páginas, de maneira que parecem desmesurados. Esse estilo de expor e raciocinar torna a compreensão do livro um tanto difícil – não porque o raciocínio seja complicado, mas porque com grande facilidade perdemos os fios da meada em meio aos exemplos.


O que muitos autores argumentam, ou sugerem[1], é que essa forma assistemática de argumentar seria devida ao ineditismo maquiaveliano. O raciocínio subjacente é o seguinte: ao romper com uma tradição “moralista” anterior, mais preocupada com o aconselhamento moral (em particular, a tradição dos “espelhos do príncipe”) que com a compreensão da realidade política prática, Maquiavel teria tido dificuldades para elaborar o seu pensamento – daí a assistematicidade combinada com a curiosa profusão de exemplos.


Ora, essa forma de raciocinar, embora à primeira vista seja tentadora, é errada. Antes de mais nada, porque se baseia em uma ilusão histórica, mais precisamente, em um anacronismo. O Ocidente não valoriza a Idade Média; por diversos motivos, considera-se que não se produziu intelectualmente nada nesse longo período. Todavia, isso é incorreto, pois considera-se que a fase medieval foi homogênea, isto é, como se não tivessem havido vários momentos social e intelectualmente diferentes entre si durante cerca de mil anos. Nesse sentido, os séculos finais da Idade Média caracterizaram-se pela decadência que se seguiu ao apogeu do domínio católico e da ordem feudal. Embora sempre tenha fortes havido disputas em toda a Idade Média, os seus séculos finais caracterizaram-se por inúmeras elaborações teóricas, que ao mesmo tempo procuravam justificar as contendas e dar um tratamento teórico às novas conjunturas políticas específicas.


Podemos pensar em duas disputas, em particular; essas duas disputas, na verdade, eram duas faces de uma única disputa maior, resultantes do reordenamento político e social da decadência da ordem católico-feudal. Por um lado, a oposição entre os dois poderes “universais” da época: a Igreja Católica, representada pelo Papado, que, a partir de sua supremacia espiritual, tencionava tornar-se politicamente superior a todos os chefes temporais; por outro lado, o Império Romano-Germânico, tornado “sagrado” pelo mesmo Papado que tentava deslegitimá-lo. Essa disputa durou séculos e teve episódios memoráveis dos pontos de vista prático e intelectual: podemos ficar somente na humilhação imposta pelo Papa Gregório VII ao Imperador Henrique IV, durante o inverno alpino na cidade de Canossa; mas o resultado dessa oposição, como sabemos, foi o enfraquecimento mútuo dos dois e o surgimento de condições para a afirmação da lealdade a um novo âmbito político. Esse novo âmbito era intermediário em termos de extensão territorial: nem “universal”, como o Papado e o Império, nem restrito, como os feudos; eram os reinos, que depois seriam chamados de estados nacionais modernos[2]. Entre inúmeros outros autores, podemos citar os famosos Dante e Guilherme de Ockham participando dessas lutas.


Ao mesmo tempo, os séculos finais da Idade Média caracterizaram-se, de uma perspectiva intelectual e artística, pelo Renascimento, ou seja, pela redescoberta européia das tradições gregas e romanas, a partir da sua difusão pelos árabes. O Renascimento, ao mesmo tempo em que forneceu elementos para as reflexões políticas envolvidas nas lutas entre Papado, Império e reis, também inspirou pensadores e políticos para tratarem das suas realidades específicas: pensamos nas “repúblicas renascentistas” sendo justificadas como a reafirmação, ou a continuidade, das antigas cidades-Estado da Grécia e de Roma.

Aliás, mesmo que não houvesse esses antecedentes imediatos, o Renascimento consistiu na retomada dos textos antigos, que continham reflexões extremamente sistemáticas sobre as realidades cósmica, social e moral: Aristóteles é o grande exemplo disso. Ora, Aristóteles não podia ser desconhecido de Maquiavel, pois Tomás de Aquino elaborou sua teologia procurando conjugar Sto. Agostinho com, precisamente, Aristóteles.

Em outras palavras, essas disputas políticas originaram uma grande elaboração intelectual; essa produção é desconsiderada quando se afirma que Maquiavel era radicalmente inédito ao escrever O príncipe.

Dito isso, poder-se-ia argumentar que a forma como O príncipe foi redigida é adequada ao seu objetivo, isto é, que corresponde precisamente a um manual prático para os chefes militares que desejem obter e manter o poder, fundando novas unidades políticas, adequadas à realidade do fim da Idade Média, isto é, adequadas à existência plena dos estados nacionais modernos[3].


Essa linha de argumentação é factível. Todavia, caso leiamos também os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, ou simplesmente Discorsi, veremos que eles apresentam a mesma forma narrativa: algumas observações teóricas mais ou menos pouco sistemáticas seguidas de longos exemplos históricos. Embora os Discorsi tivessem também uma preocupação prática – a (re)organização das repúblicas italianas, em particular Florença –, o fato é que eles têm objetivos muito menos pragmáticos, revestindo-se de um caráter mais normativo.


Retornando ao estilo teórico maquiaveliano: as observações acima sugerem que o tatear da escrita de Maquiavel não era devido à sua novidade, ao ineditismo de sua elaboração, mas consistia especificamente em um traço pessoal. Ele não era inédito nem rompia com uma tradição prévia porque inúmeros outros autores redigiram reflexões políticas agudas, tanto em termos de realismo quanto em termos de utilidade prática. O que ele pode ter feito é ter jogado uma pá de cal nos manuais de aconselhamento do tipo “espelho do príncipe” – próprios, talvez, à Idade Média – e iniciado a tradição de manuais adequados à luta prática – “como obter o poder e manter-se nele”.


Uma reflexão crua sobre os meios necessários e disponíveis para a obtenção do poder têm, evidentemente, uma grande importância prática, além de servir para a reflexão teórica. Mais do que isso: Maquiavel adotou uma forma de raciocinar que, atualmente, é chamada de “Teoria Política historicamente informada”, em que procurava utilizar a experiência histórica não apenas como guia, como fonte de exemplos, como conselheira, mas também como fonte de elementos para uma reflexão mais sistemática[4]. Embora tanto O príncipe quanto os Discorsi tenham elementos de cada uma dessas abordagens, enquanto O príncipe usa mais a história como conselheira, os Discorsi revelam uma abordagem da história como fonte para entender-se os processos sociais subjacentes.


Também convém notar que a obra de Maquiavel originou várias correntes e interpretações teóricas, todas elas riquíssimas e que se mantêm contribuindo para a compreensão que temos da política. Sem ser exaustivo, podemos pensar em Jean-Jacques Rousseau afirmando ser O príncipe um aviso ao povo, contra os poderosos; em Frederico II, escrevendo seu Anti-Maquiavel; em Antônio Gramsci vendo o “príncipe moderno” na figura do partido político; nos teóricos elitistas italianos (Gaetano Mosca, em particular) e, mais recentemente, nas elaborações do neo-republicanismo, a que se ligam Quentin Skinner, John McCormick, Newton Bignotto, Ricardo Silva e inúmeros outros.

Ainda assim, embora a abordagem de Maquiavel seja útil e interessante – particularmente, esposamos a concepção de que a Teoria Política deve ser “historicamente informada”, a fim de ser mais realista – e ele tenha originado ou contribuído com inúmeras correntes teóricas importantes, a reflexão sobre o estilo de escrita maquiaveliano não é muito favorável a ele. “Não ser favorável” não significa que ele não tenha escrito coisas que mereçam a leitura e a reflexão, mas que seu ineditismo não é tão marcante nem sua contribuição tão fundamental. Na verdade, como vimos, pode-se argumentar seriamente contra o seu ineditismo (deixando de lado a obviedade de que, em princípio, todo autor que escreve é inédito): essa concepção vincula-se à falta de consciência histórica. Da mesma forma, a falta de sistematicidade de seu pensamento leva a pôr seriamente em dúvida suas contribuições. 

O resultado disso é que somos levados a concordar com Augusto Comte em sua avaliação de Maquiavel[5]

“Avant de quitter cette second phase, je dois signaler Hobbes et Bossuet comme ayant déjà préparé alors la rénovation de la philosophie politique. Machiavel, avant eux, avait fait quelques heureuses tentatives partielles pour rattacher l’explication de certains phénomènes politiques à des causes purement naturelles, quoiqu’il ait deparé son ouvrage par une appréciation tout à fait vicieuse de la sociabilité moderne, qu’il ne put jamais suffisamment distinguer de l’ancienne. La célèbre conception de Hobbes sur l’état de guerre primordial et le prétendu règne de la force, a presque toujours été méconnue ; mais, considérée d’une manière impartiale, on sentira qu’elle a constitué un puissant aperçu primordial, statique et dynamique, de la prépondérance des influences temporelles dans l’ensemble permanent des conditions sociales ; et, aussi, de l’état nécessairement militaire des sociétés primitives. C’est la une vue saine introduite au milieu des hypothèses fantastiques sur l’état de nature et le contrat social, et elle a, par conséquent, une éminent valeur. La participation de Bossuet à cette préparation est plus évidente et moins disputée. J’ai déjà signalé la valeur de son élaboration historique, où, pour la première fois, les phenomènes politiques sont envisagés comme assujettis à des lois invariables que permettent de les déterminer les uns par les autres. Quoique le principe théologique qui dominait cette lumineuse conception dût l’altérer profondément, il ne pouvait dissimuler tout à fait sa valeur, ni empêcher son heureuse influence sur les études historiques de la période suivante. On sente, du reste, qu’elle ne pouvait naître alors qu’au sein du catholicisme, dont elle constitue la dernière inspiration capitale, puisque l’instinct négatif empêchait ailleurs toute juste appréciation quelconque de l’évolution humaine. La nature de grande service qu’a rendu Bossuet ressort de sa destination, qui était de représenter l’histoire systématique comme la base nécessaire de l’éducation politique”[6].




[1] Não penso em nenhum autor em particular neste momento; os comentários que faço são de fato genéricos e “impressionistas”, baseados nas leituras que fiz na época de estudante de graduação e de mestrado – antes, portanto, de estudar com atenção a História das Idéias. De qualquer forma, para o presente argumento, como se verá, a ausência de algum nome específico que tenha proposto o senso comum que comento não é tão problemática.

[2] Uma ótima exposição dessas lutas é o livro de Raquel Kritsch, Soberania – a construção de um conceito (São Paulo: Humanitas, 2002).

[3] A realidade vivida por Maquiavel era da incapacidade das cidades-Estado italianas manterem-se mais ou menos estáveis ao longo do tempo. Essa dificuldade foi aumentada bastante a partir das guerras da Itália, ou seja, a partir do momento em que dois novos estados nacionais – França e Espanha, particularmente a primeira – decidiram atuar na península.

[4] Uma exposição dos “estilos” das teorizações na Teoria Política pode ser lida no artigo de Ricardo Silva, “Identidades da teoria política: entre a ciência, a normatividade e a história” (Pensamento Plural, Pelotas, v. 3, p. 9-21, jul.-dez.2008. Disponível em: http://www.ufpel.edu.br/isp/ppgcs/pensamento-plural/edicoes/03/01.pdf. Acesso em: 26.maio.2011). A abordagem do uso sistemático da história para teorizar na política corresponderia, no texto de Ricardo Silva, à parceria mantida na última década e meia por Quentin Skinner com Phillip Pettit.

[5] Fonte da citação: Auguste Comte, La philosophie positive d’Auguste Comte, condensée par Miss Harriet Martineau (T. II. Paris: Louis Bahl, 1895, p. 491-492).

[6] “Antes de concluir essa segunda fase, devo indicar Hobbes e Bossuet como já tendo então preparado a renovação da filosofia política. Maquiavel, antes deles, fez algumas felizes tentativas parciais para vincular a explicação de certos fenômenos políticos a causas puramente naturais, embora tenha desfigurado sua obra por uma apreciação em todos os sentidos viciosa da sociabilidade moderna, que ele não pôde jamais distinguir suficientemente da antiga. A célebre concepção de Hobbes sobre o estado de guerra primordial e o pretendido reino da força foram quase sempre mal conhecidos, mas, considerada de uma forma imparcial, sentimos que ela constituiu uma poderosa percepção primordial, estática e dinâmica, da preponderância das influências temporais no conjunto permanente das condições sociais e, assim, do estado necessariamente militar das sociedades primitivas. Essa é uma sã visão introduzida no meio das hipóteses fantásticas sobre o estado de natureza e o contrato social e ela tem, em conseqüência, um valor eminente. A participação de Bossuet nessa preparação é mais evidente e menos disputada. Já assinalei o valor de sua elaboração histórica, em que, pela primeira vez, os fenômenos políticos foram percebidos como sujeitos a leis invariáveis que permitem determiná-las umas pelas outras. Embora o princípio teológico que dominou essa luminosa concepção devesse alterá-la profundamente, ele não pôde dissimular de todo seu valor, nem impedir sua feliz influência sobre os estudos históricos do período seguinte. Sentimos, quanto ao resto, que ela não podia nascer em outro lugar que não no seio do catolicismo, em que ela constitui a última inspiração capital, desde que o instinto negativo impediu alhures toda e qualquer justa apreciação da evolução humana. A natureza do grande serviço que rendeu Bossuet evidencia sua destinação, que foi a de representar a história sistemática como a base necessária da educação política” (tradução minha).

19 agosto 2011

Vice-procuradora diz que ensino plural é impossível e defende estudo da história das religiões

Sobre o último parágrafo: é evidente que a Constituição é contraditória. Mas, por uma questão de técnica jurídica, é necessário considerar que a CF é coerente (como se ela não fosse o resultado de pressões políticas e sociais, que não raras vezes opõem-se frontalmente).

Ou seja: em vez de assumir-se o erro, prefere-se piorar o que já é ruim para salvar as aparências.

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Vice-procuradora diz que ensino plural é impossível e defende estudo da história das religiões

19/08/2011 - 9h39

Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil

Brasília – A discussão sobre a oferta de ensino religioso nas escolas públicas chegou à Justiça. Duas ações diretas de inconstitucionalidade foram encaminhadas ao Supremo Tribunal Federal (STF) questionando o espaço da religião dentro da escola tendo em vista que, desde que o Brasil deixou de ser colônia portuguesa, a Constituição define o país como laico. O tema é contraditório já que a Carta Magna também determina que as escolas públicas devam oferecer ensino religioso aos alunos do ensino fundamental, ainda que a matrícula na disciplina seja optativa.

Uma das ações, encaminhada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), pede que o STF se posicione a respeito do modelo de oferta do ensino religioso adotado por alguns estados, chamado de confessional, em que o professor está vinculado a comunidades religiosas. A ação, cujo relator será o ministro Carlos Ayres Britto, defende que é inadmissível que “a escola se transforme em espaço de catequese e proselitismo, católico ou de qualquer outra religião”.

Em entrevista à Agência Brasil, a vice-procuradora Deborah Duprat, autora da ação, explica que a questão da laicidade é discutida em todo o mundo e defende que a única forma de compatibilizar a oferta dessa disciplina no país é tratar o assunto sob a ótica da história das religiões.

Leia os principais trechos da entrevista com a vice-procuradora:

Agência Brasil: Qual é o objetivo da ação direta de inconstitucionalidade?
Deborah Duprat: A nossa Constituição tem dois dispositivos: um, que existe desde 1890, determina que o Estado é laico. A laicidade é um princípio que vem desde o início da República. Outro dispositivo prevê a oferta de ensino religioso em caráter facultativo. Então é preciso compatibilizar esses dois dispositivos. Também a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) tem uma cláusula prevendo a oferta, em caráter facultativo, do ensino religioso, mas ela diz claramente que está vedado qualquer tipo de proselitismo. No direito existe o princípio da unidade da Constituição: não existem dispositivos antagônicos dentro dela, você precisa compatibilizá-los. Para isso você tem que fazer a leitura que a ação pretende que se faça: o Estado é laico e, quando fala na possibilidade de previsão da oferta de ensino religioso em caráter facultativo nas escolas, tem que ser ensino religioso necessariamente não confessional [não relacionado a uma determinada confissão ou religião]. Ou seja: a história, a doutrina das religiões e até a falta da religião, é preciso que essa informação seja completa. Ao lado das várias doutrinas, há também aquelas pessoas que pregam a ausência de qualquer crença como os agnósticos.

ABr: O modelo de ensino religioso confessional é incompatível com a laicidade?
Deborah: A religião com esse caráter de proselitismo, confessional, priva o aluno, que é um público formado basicamente por crianças e adolescentes, da autonomia para fazer as suas escolhas essenciais, inclusive no campo da cidadania. Pretende-se que o Estado e a criança que estuda na escola fornecida por ele esteja livre desse tipo de coerção. Essa é uma questão discutida no mundo todo. Em alguns lugares, com um caráter muito mais incisivo, ao ponto de discutir laicidade e laicismo. O laicismo é um conceito que não admite nenhum tipo de cooperação do Estado com as religiões como acontece na França [que proibiu alunas muçulmanas de usar o véu nas escolas]. Outros países, como os Estados Unidos, admitem algum tipo de cooperação, mas não admitem, por exemplo, que sejam fixados crucifixos nas dependências das escolas, porque entendem que a criança faz uma leitura de que aquela escola professa aquele tipo de religião e pode ser algo coercitivo para ela.

ABr: Como seria possível compatibilizar esses dois princípios que parecem antagônicos – laicidade e ensino religioso?
Deborah: Excluindo das escolas o ensino religioso de caráter confessional. Preservamos o dispositivo que trata do ensino religioso e preservamos a laicidade. O que vai ser ensinado é a história das religiões e não os dogmas, as crenças, aquilo que são as condições morais de cada indivíduo. E tem outro aspecto: os professores da disciplina devem ser aqueles regulares das escolas, admitidos por concurso público, e não aqueles egressos de uma ou outra confissão religiosa.

ABr: Alguns pesquisadores defendem que a inclusão do ensino religioso na Constituição foi uma “concessão” à laicidade. A senhora concorda com essa ideia?
Deborah: A Constituição é isso, ela é um produto de lutas. Ao intérprete da Constituição cabe não entender dessas lutas, mas compatibilizar aquilo que aparentemente e incompatível. São lutas divergentes então, obviamente, quem prega a religiosidade no ensino é contra a laicidade. Essas lutas têm que ser compatibilizadas pelo intérprete do direito.

ABr: A Constituição Federal e a LDB falam que o ensino religioso nas escolas tem que ser plural e abordar todas as crenças de forma igualitária. Na prática, isso não é difícil de ser garantido?
Deborah: É impossível. A religião tem esse caráter confessional. O professor que é egresso de uma determinada religião vai transmitir a crença e os dogmas daquela religião. Então, como seria esse ensino interconfessional que várias igrejas sustentam que é possível? Primeiro, não consigo imaginar o que seria na cabeça de crianças e adolescentes ora escutando dogmas de uma religião ora de outras. E quem seria esse profissional capaz de abordar aspectos de todas as religiões? Depois, como ficam os ateus? Eles também têm direito a um espaço livre desse tipo de influência.

ABr: O acordo que o Brasil assinou em 2008 com a Santa Sé reforça a importância do ensino religioso nas escolas e dá destaque ao catolicismo. Na sua opinião, qual foi a contribuição dele a esse cenário?
Deborah: Na verdade, não há muito impacto porque de certa forma ele é uma reprodução dessa antinomia [contradição] que existe na Constituição porque ele também prevê a oferta “do ensino católico e de outras religiões”, então é a mesma coisa que está na Constituição e na LDB.

ABr: Mas quando ele coloca a palavra “ensino católico” não há, de certa forma, um destaque para uma crença específica?
Deborah: Sim, mas a gente nem trata isso. Como na minha concepção é absolutamente impossível falar de ensino religioso em caráter confessional, de qualquer religião, esse detalhe é irrelevante. Pode até simbolicamente fazer uma diferença enorme, mas não cabe ao intérprete do direito dar importância a esse simbolismo.

ABr: Alguns defendem soluções mais extremas como uma proposta de emenda à Constituição que exclua das escolas o ensino das religiões. Esse seria um caminho?
Deborah: A gente espera conseguir construir esse ensino das religiões de uma forma mais razoável. A ação não pede que seja excluído o ensino religioso, na verdade, a ação é para salvar [esse dispositivo constitucional]. Por causa do princípio da unidade, que diz que não há dispositivos inconstitucionais dentro da Constituição, não tem como você dizer que esse artigo é inconstitucional, isso não existe no direito. Então é preciso salvar essa interpretação.

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo

Orações antes das aulas levam pais a travar “guerra santa” em escola de Brasília

Evidentemente, os pais que reclamam estão corretos. A direção da escola está impondo suas crenças aos alunos, sob a desculpa de que é um ato de socialização e transmite bons sentimentos. Mas a "socialização" que os pregadores aceitam é somente aquela que eles fornecem, para forçar as próprias crenças (não nos esqueçamos de que Hitler também "socializava") e a "ira divina" e o "medo do inferno" estão muito longes de serem "bons sentimentos".

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Orações antes das aulas levam pais a travar “guerra santa” em escola de Brasília

19/08/2011 - 9h34

Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil

Brasília – Uma “guerra santa” foi travada entre os pais das 180 crianças de 4 e 5 anos que estudam no Jardim de Infância da 404 Norte, na região central de Brasília. Uma oração feita pelos alunos diariamente, antes do início das aulas, é o principal motivo da discórdia. De um lado está um grupo de pais que pede a exclusão de referências religiosas das atividades escolares. Do outro, os que apoiam o ritual diário e consideram que a direção da escola está sendo perseguida.

A discussão teve início quando uma denúncia sobre o assunto foi encaminhada à Ouvidoria da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Todos os dias antes das aulas os alunos se reúnem no pátio da escola para o momento chamado de acolhida. Nessa hora, são estimulados a fazer uma “oração espontânea”, como define a diretora Rosimara Albuquerque. A cada dia, crianças de uma turma ficam responsáveis por fazer os agradecimentos a Deus ou ao “Papai do Céu”. “Pode agradecer pelo parquinho, pelos colegas. Mas houve um questionamento por parte dos pais para que fosse um momento de acolhida um pouco mais amplo já que algumas famílias não comungam dessa religião, que seria basicamente cristã”, conta Rosimara, que está à frente da escola há seis anos.

Para a radialista Eliane Carvalho, integrante da Associação de Pais e Mestres do colégio, a escola está ultrapassando os limites permitidos pela legislação. Ela e outros pais que protestam contra essas atividades se apoiam no princípio constitucional da laicidade para pedir que práticas de cunho religioso fiquem de fora do ambiente escolar. Além do momento da acolhida, ela conta que notou outros sinais de violação, a partir de informações que o filho de 4 anos levava para casa.

“Não posso dizer que existem dentro da sala de aula práticas religiosas. Mas meu filho não aprendeu em casa a orar em nome de Jesus. Um dia ele me disse que o telefone para falar com Jesus era dobrar o joelho no chão”, relata Eliane.

Em resposta à denúncia, um grupo maior de pais organizou um abaixo-assinado a favor da escola e da oração no início das aulas. Alguns alegam que a diretora está sendo perseguida por ser católica e atuante em grupos religiosos. “A forma como eles [professores e direção] estão atuando não é nada abusiva ou direcionada a uma crença específica. Eles colocam a palavra de Deus, como entidade superior, e agradecem à família. São só coisas boas, frutos bons. Quem está incomodado é uma minoria”, defende Thiago Meirelles, que é católico e pai de um aluno.

Para Carolina Castro, mãe de outro estudante, a intenção da escola é positiva e busca a socialização. “Não acho que eles estejam tratando de religião em si, mas passando uma noção de agradecimento do que é precioso na vida. Não acho que isso seja ensino religioso”, diz.

Eliane Carvalho lamenta que a discussão tenha ficado polarizada. “Não é uma discussão pessoal, mas de currículo. O grupo que fez o abaixo-assinado passou a nos ver como perseguidores de cristãos, hoje somos vistos como pessoas absurdas que não querem a palavra de Deus na escola. Todos têm o direito de fazer suas orações, mas eu questiono o fato de a escola aceitar uma prática que, para mim, se configura em arrebanhar fiéis”, diz.

O momento da acolhida é feito há 40 anos, desde que a escola foi fundada, e é comum também em outros colégios da rede. Na última semana a reza foi substituída por cantigas de roda e outras atividades. “Aí, sim, parecia uma escola, antes parecia uma igreja. Como pai que tem a obrigação de dar uma orientação religiosa à filha, não posso permitir que haja divergência. O mais triste é que, apesar de essas pessoas dizerem que estão pregando o amor e o respeito, elas não têm respeito nenhum pela minha liberdade de que não haja essa interferência [religiosa]”, diz Mafá Nogueira, pai de uma aluna.

Para resolver o problema, a escola vai convocar reuniões com pais, professores, funcionários e representantes da Secretaria de Educação. “Vamos discutir como a gente pode abordar a pluralidade e a diversidade sem agredir ninguém e que todos possam sair satisfeitos. Mas essa polêmica é salutar porque, na medida em que a gente ouve questionamentos de pais que pensam diferente, isso é saudável para o crescimento. Podemos adotar uma postura diferente, estruturada no que a comunidade pensa”, avalia a diretora Rosimara, que usava no pescoço um cordão com um crucifixo enquanto conversava com a reportagem da Agência Brasil.

A Secretaria de Educação do Distrito Federal informou que desconhece problemas semelhantes em outras escolas da rede e reiterou que orienta as unidades a seguir a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que veda qualquer prática proselitista no ambiente escolar.

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo

Intolerância religiosa afeta autoestima de alunos e dificulta aprendizagem, aponta pesquisa

Para aquelas pessoas que fingem desconhecer o óbvio (evidentemente, quando se refere aos filhos e às religiões dos outros).

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Intolerância religiosa afeta autoestima de alunos e dificulta aprendizagem, aponta pesquisa

19/08/2011 - 9h28

Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil

Brasília – Fernando* estava na aula de artes e tinha acabado de terminar uma maquete sobre as pirâmides do Egito. Conversava com os amigos quando foi expulso da sala aos gritos de “demônio” e “filho do capeta”. Não tinha desrespeitado a professora nem deixado de fazer alguma tarefa. Seu pecado foi usar colares de contas por debaixo do uniforme, símbolos da sua religião, o candomblé. O fato de o menino, com então 13 anos, manifestar-se abertamente sobre sua crença provocou a ira de uma professora de português que era evangélica. Depois do episódio, ela proibiu Fernando de assistir às suas aulas e orientou outros alunos para que não falassem mais com o colega. O menino, aos poucos, perdeu a vontade de ir à escola. Naquele ano, ele foi reprovado e teve que mudar de colégio.

Quem conta a história é a mãe de Fernando, Andrea Ramito, que trabalha como caixa em uma loja. Segundo ela, o episódio modificou a personalidade do filho e deixou marcas também na trajetória escolar. “A autoestima ficou muito baixa, ele fez tratamento com psicólogo e queria se matar. Foi lastimável ver um filho sendo agredido verbalmente, fisicamente, sem você poder fazer nada. Mas o maior prejudicado foi ele que ficou muito revoltado e é assim até hoje”, diz.

Antes de levar o caso à Justiça, Andréa tentou resolver a situação ainda na escola, mas, segundo ela, a direção foi omissa em relação ao comportamento da professora. A mãe, então, decidiu procurar uma delegacia para registrar um boletim de ocorrência contra a docente. O caso aguarda julgamento no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Se for condenada, o mais provável é que a professora tenha a pena revertida em prestação de serviços à comunidade.

Já a Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (Faetec), responsável pela unidade, abriu uma sindicância administrativa para avaliar o ocorrido, mas a investigação ainda não foi concluída. Por essa razão, a professora – que é servidora pública – ainda faz parte do quadro da instituição, “respeitando o amplo direito de defesa das partes envolvidas e o Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado do Rio de Janeiro”, segundo nota enviada pelo órgão. A assessoria não informou, entretanto, se ela está trabalhando em sala de aula.

A história do estudante Fernando, atualmente com 16 anos, não é um fato isolado. A pesquisadora Denise Carrera conheceu casos parecidos de intolerância religiosa em escolas de pelo menos três estados – Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. A investigação será incluída em um relatório sobre educação e racismo no Brasil, ainda em fase de finalização.

“O que a gente observou é que a intolerância religiosa no Brasil se manifesta principalmente contra as pessoas vinculadas às religiões de matriz africana. Dessa forma, a gente entende que o problema está muito ligado ao desafio do enfrentamento do racismo, já que essas religiões historicamente foram demonizadas”, explica Denise, ligada à Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), que reúne movimentos e organizações da sociedade civil.

Denise e sua equipe visitaram escolas de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Ouviram de famílias, professores e entidades religiosas casos que vão desde humilhação até violência física contra alunos de determinadas religiões. E, muitas vezes, o agressor era um educador ou membro da equipe escolar.

“A gente observa um crescimento do número de professores ligados a determinadas denominações neopentecostais que compreendem que o seu fazer profissional deve ser um desdobramento do seu vínculo religioso. Ou seja, ele pensa o fazer profissional como parte da doutrinação, nessa perspectiva do proselitismo”, aponta a pesquisadora.

Alunos que são discriminados dentro da escola, por motivos religiosos, culturais ou sociais, têm o processo de aprendizagem comprometido. “Afeta a construção da autoestima positiva no ambiente escolar e isso mina o processo de aprendizagem porque ele se alimenta da afetividade, da capacidade de se reconhecer como alguém respeitado em um grupo. E, na medida em que você recebe tantos sinais de que sua crença religiosa é negativa e só faz o mal, essa autoafirmação fica muito difícil”, acredita Denise.

Para ela, a religião está presente na escola não só na disciplina de ensino religioso. “Há aqueles colégios em que se reza o Pai-Nosso na entrada, que param para fazer determinados rituais, cantar músicas religiosas. Criticamos isso no nosso relatório porque entendemos que a escola deve se constituir como um espaço laico que respeite a liberdade religiosa, mas não que propague um determinado credo ou constranja aqueles que não têm vínculo religioso algum”, diz.

*O nome foi alterado em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Em São Paulo, escolas optam por valorizar história em aulas de religião

São Paulo e Rio de Janeiro adotam posturas diametralmente opostas a respeito do "ensino religioso": a postura de São Paulo é correta, ao ser claramente contra a doutrinação. Já o Rio de Janeiro, graças à ação conjunta do clero católico e das bancadas evangélicas, está há décadas tornando-se uma teocracia.

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Em São Paulo, escolas optam por valorizar história em aulas de religião

19/08/2011 - 9h36

Vinicius Konchinski
Repórter da Agência Brasil

São Paulo - Quinta-feira, às 16h40, é hora da aula de ensino religioso em uma das quatro turmas do 9º ano da Escola Estadual Doutor Alberto Cardoso de Mello Neto, na região norte da capital paulista. A escola é uma das poucas do estado que oferecem a disciplina aos seus alunos do último ano do ensino fundamental.

A professora Miriam de Oliveira é a responsável pela aula. Historiadora e psicóloga, ela trabalha no colégio há oito anos. Há três, dá aulas do que prefere chamar de “história das religiões”. Na primeira quinta-feira do mês de agosto (4), Miriam falou para cerca de 30 alunos sobre o cristianismo.

“Por volta do ano 300, o Império Romano adotou o cristianismo como sua religião oficial”, explicou aos alunos. “A partir daí, a religião se espalhou por outros cantos do mundo e acabou chegando ao Brasil, com os jesuítas. Hoje, quase todo mundo é cristão aqui no nosso país.”

O foco na história foi a solução encontrada por São Paulo para que as lições de ensino religioso constassem dos currículos da rede pública sem privilegiar qualquer crença, conforme determina a Constituição Federal. Apesar de só os alunos do 9o ano terem aulas específicas sobre religião – isso quando há demanda dos pais –, todas as escolas estaduais trabalham o conteúdo de forma transversal, em outras disciplinas. De acordo com a Secretaria Estadual de Educação, prevalece o aspecto histórico.

Uma lei estadual e uma resolução do Conselho Estadual de Educação de 2001 normatizaram o ensino religioso no estado. Elas garantiram o espaço para a disciplina nas escolas estaduais, mas também estabeleceram exigências na formação dos professores responsáveis pelas aulas e prioridade para a correlação do ensino sobre religião com a educação regular.

“Foi bom [criar regras]”, disse a presidenta do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Maria Izabel Noronha, que defendeu a adoção do modelo em reuniões com representantes do governo. “Sou favorável ao fortalecimento da formação humana, com conteúdo sobre história da religião, para que o aluno compreenda as diferenças entre as crenças”, justifica.

Essa fórmula, porém, não é unanimidade entre os educadores. Na opinião da coordenadora do programa de pós-graduação da Universidade Metodista e professora da Universidade de São Paulo (USP), Roseli Fischmann, o ensino religioso transversal delega responsabilidade demais aos docentes e expõe os alunos da rede pública a possíveis transgressões à Constituição.

“A Constituição diz que o Estado não pode defender nem discriminar crença nenhuma. Contudo, o professor, que representa o Estado na escola, é um ser humano”, pondera Roseli. “O ser humano tende, naturalmente, a defender sua crença.”

Para ela, o ensino religioso é um “risco que poderia ser evitado”. A professora acredita que os conceitos sobre diversidade e respeito, que são abordados nas aulas, poderiam ser repassados aos alunos em outras disciplinas que não a específica de religião.

Cecília Regina Bigatão, diretora da Escola Doutor Alberto Cardoso, discorda. Há mais de 20 anos à frente da escola, ela diz que é perceptível a diferença no comportamento dos alunos que já passaram pelas aulas de ensino religioso. “O que é a amizade, amor, está mais claro para eles.”

A diretora reconhece que é preciso ter atenção redobrada com o ensino religioso para que todas as crenças sejam respeitadas. Ela garante que esses cuidados são tomados na escola que dirige e, por isso, os resultados são muitos bons.

“Nunca tivemos uma reclamação de um pai sobre o conteúdo das aulas”, conta. “Não impomos nada às crianças. Todas são livres para ter sua religião”. Na antessala da diretoria, há um altar. Em cima dele, fica umaBíblia aberta.

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo