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25 fevereiro 2021

Correio da Manhã: em 1964, "Militares invadem o Clube Positivista"

Na noite de 10 de abril de 1964, a sede do Clube Positivista, na Cinelândia (Zona Sul do Rio de Janeiro), foi invadida por militares em busca de material "subversivo". Essa invasão ocorreu em altas horas (quase meia-noite) por policiais que portavam metralhadoras e que arrombaram a porta do Clube e confiscaram arquivos e documentos variados.

É notável que essa invasão tenha ocorrido menos de dez dias após o golpe militar, em 1º de abril de 1964; considerando que havia alguns militares de alta patente no Clube Positivista (seu presidente era o Vice-Almirante Alfredo de Morais Filho), a única conclusão possível é que essa invasão foi ordenada por militares fascistas e antinacionalistas - entre os quais se incluíam golpistas contumazes, como Olympio Mourão Filho e Góes Monteiro (este último faleceu em 1956, mas era conhecido seu ódio pelo Positivismo e pelos militares positivistas).

Também é digno de nota que o Vice-Almirante Morais condenou a invasão como sendo um ato de violência pura e arbritrária e que, no final das contas, seria inútil, pois exercer-se-ia contra as crenças íntimas das pessoas (no caso, contra o Positivismo e a Religião da Humanidade); tal violência seria em si inútil contra crenças e, ainda mais, teria como um efeito possível o reforço das crenças ameaçadas.

Essa invasão foi noticiada no dia 12 de abril de 1964 no jornal Correio da Manhã (ed. B21.786, caderno 1, p. 12). Tivemos acesso a ela por meio do portal da Biblioteca Nacional, que digitalizou esse periódico no projeto "Hemeroteca Digital Brasileira". O original da notícia pode ser consultado aqui.

Abaixo reproduzimos a página do jornal com a notícia em questão.


Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_07&pagfis=59224&url=http%3A%2F%2Fmemoria.bn.br%2Fdocreader&fbclid=IwAR3gJ42QukGZ26hxJ9DSZoNa9SRQN9WTHgtoMCdE3dHfO4INNaGg8kxxMOc#

02 julho 2020

Réplica a S. Schwartzmann: Positivismo e falsa analogia das crises de 1904 e 2020

O texto abaixo é uma réplica a um artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo no dia 12.6.2020, de autoria do sociólogo Simon Schwartzmann. Embora, como observo abaixo, o artigo original tenha feito inúmeras sugestões extremamente maliciosas contra o Positivismo e os positivistas e, portanto, uma réplica tenha-se mostrado necessária, o jornal paulistano recusou-se a publicar essa minha réplica. Assim, publico-a no espaço que me é permitido, a despeito do inflamado discurso do conservador jornal paulistano a respeito do "pluralismo", da "democracia" e do "debate de idéias".

Além disso, como também observo abaixo, o Positivismo é habitualmente empregado como o bode expiatório preferencial por todos os grupos político-intelectuais que querem encontrar algum responsável pelos problemas nacionais. Esse comportamento é intelectualmente desonesto e politicamente irresponsável, sem contar que, na quase totalidade das vezes, é historicamente mentiroso. Já passou da hora de os autodenominados "intelectuais" brasileiros abandonarem esse hábito infantil, de amadurecerem e de passarem a valorizar as inúmeras, enormes e profundas contribuições do Positivismo para o país, para o Ocidente e para o mundo.

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Positivismo e falsa analogia das crises de 1904 e 2020

Desde o início do governo Bolsonaro, devido à renovada importância que os militares assumiram no poder Executivo federal, o Positivismo voltou à baila. Entretanto, esse retorno do Positivismo dá-se mais por referências oblíquas e insinuações que por alguma influência direta e, mais importante, por alguma influência efetiva. Em outras palavras, o Positivismo serve como bode expiatório, como uma justificativa ad hoc para todos os incontáveis e injustificáveis erros, problemas e desvios que o governo apresenta. O mais notável é que esse papel atribuído ao Positivismo é mobilizado tanto pelo próprio governo e por seus apoiadores – basta ver as virulentas e assustadoras referências feitas por filhos do Presidente da República, pelo seu guru-astrólogo e pela grande imprensa conservadora – quanto por setores “liberais” e mesmo oposicionistas: no que se refere ao governo e aos conservadores, já tive ocasião de publicar uma refutação mínima (na Gazeta do Povo e no Monitor Mercantil); agora o sociólogo Simon Schwartzman retoma a tradição do liberalismo conservador brasileiro para, com argumentos que parecem inspirados no realismo mágico, atribuir ao Positivismo vícios da política nacional.

No artigo “A revolta da vacina”, publicado em O Estado de S. Paulo de 12.6.2020, Schwartzman afirma que a atual politização da crise sanitária encontra um precedente na Revolta da Vacina de 1904; supostamente em ambos os episódios notam-se políticos radicalizados afirmando a falta de eficácia de medidas sanitárias recomendadas pelas autoridades públicas, estimulando a resistência do comum do povo a essas medidas, com o apoio de militares. Embora décadas atrás Schwartzman tenha feito algumas pesquisas de história da ciência no Brasil, ele limita-se a citar literatura de segunda e terceira mão para reiteradamente afirmar que o Positivismo como doutrina e os positivistas como agentes teriam apoiado os radicais do início da I República – os “jacobinos” – na Revolta; essa insistência em referir-se ao Positivismo tem o claro e evidente efeito de sugerir que essa mesma doutrina inspiraria ainda hoje o radicalismo conservador da extrema direita. Vamos aos fatos, então.

Em primeiro lugar, o procedimento de Schwartzman é sofístico. O atual governo é ao mesmo tempo ultraconservador (com sua apologia da “tradição” e da monarquia (sociedade de castas, escravismo, nacionalismo estreito), mas contra todas as tradições republicanas efetivamente afirmadas pelo Positivismo (pacifismo, tolerância, fraternidade universal, racionalidade científica, civilismo, respeito ao meio ambiente, aos índios, às minorias, às liberdades de pensamento e de expressão)) e revolucionário (com o combate ativo e militante contra os “progressistas”, o “globalismo”, o “marxismo cultural”); assim, Schwartzman é incapaz, por ser impossível, de provar qualquer influência do Positivismo no governo Bolsonaro. Dessa forma, o sociólogo mineiro sugere um paralelo entre duas situações históricas; essa mera sugestão atua como “prova” de seu argumento. Ele não demonstra; ela faz uma afirmação e deixa para o leitor o trabalho de tirar as consequências, que, todavia, permanecem sem qualquer base empírica. Vale notar que esse mesmo procedimento está na base de todas as teorias da conspiração – que, como tristemente se sabe, têm enorme relevância política nos dias atuais.

Mas, em segundo lugar, é claro que a atuação dos positivistas na I República e, de modo particular, na Revolta da Vacina está muito mal contada por Schwartzman. Em 1904 o médico Oswaldo Cruz decidiu combater a febre amarela, empregando o que era então uma técnica inovadora: a inoculação de patógenos enfraquecidos por meio de injeções, a fim de gerarem-se anticorpos contra a doença. Ora, esse procedimento da vacina foi estabelecido ao longo do século XX como correto e necessário; todavia, no início do século XX isso não estava firmemente estabelecido como adequado e seguro e – isto é o principal – os procedimentos adotados por Oswaldo Cruz eram anti-higiênicos e profundamente autoritários. As exitosas campanhas de vacinação levadas a cabo no Brasil pelo menos desde a década de 1980 buscam conscientizar a população da necessidade da vacinação; em outras palavras, tais campanhas postulam o caráter voluntário da vacinação: respeita-se a livre decisão individual e familiar. Ao mesmo tempo, a aplicação das vacinas é cercada por inúmeros protocolos higiênicos, incluindo aí a assepsia da pele (no caso da inoculação da vacina via injeções) e o descarte de seringas e agulhas descartáveis.

Nada disso estava presente na campanha de 1904: as agulhas e as seringas eram reutilizadas (e sem assepsia entre uma aplicação e outra) e, mais importante, os agentes sanitários forçavam os cidadãos a serem vacinados, injetando à força as agulhas em seus corpos, invadindo casas e violentando as pessoas para submeterem-se aos seus desígnios; evidentemente, essa violência era particularmente empregada contra a população pobre – que, ao fim e ao cabo, acabou revoltando-se contra invasões, espancamentos, a disseminação de doenças e a aplicação de um procedimento cuja eficácia estava então longe de estar estabelecida (e que, nas condições específicas daquela “campanha”, era efetivamente muito discutível). Não é por acaso que o vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana, Raimundo Teixeira Mendes, chamava toda essa lamentável situação de “despotismo sanitário”. Dessa forma, os positivistas foram, sim, favoráveis à revolta popular contra a vacina; entretanto, ao contrário do que Schwartzman consegue apenas “sugerir”, não se tratava de uma postura anticientífica e de radicalismo anti-intelectualista, mas de um profundo respeito à dignidade humana, à inviolabilidade dos corpos e dos domicílios e às liberdades de pensamento e expressão. Em outras palavras, os positivistas defendiam todos os valores mais caros ao liberalismo – aliás, justamente ao liberalismo que supostamente Schwartzman defende –; da mesma forma, os positivistas opunham-se ao que se chama hoje em dia de “tecnocracia” e de “cientificismo”, ao contrário do que Schwartzman parece defender em seu artigo.

O sociólogo mineiro dá a entender que todos os que se opunham à campanha de vacinação de Oswaldo Cruz eram (1) positivistas e (2) políticos demagógicos que politizavam e radicalizavam sentimentos populares irracionais contra a vacina. Essas duas presunções são exageradas e estapafúrdias. É aceitável considerar que houvesse demagogos explorando a insatisfação popular; a política da I República era infelizmente e por vezes dada a disputas agressivas; entretanto, como vimos, quem se opunha à campanha da vacinação estava longe de ser necessariamente irracional, anticientífico, favorável a guerras civis. Entre os republicanos radicais, os “jacobinos”, havia efetivamente alguns que se identificavam com e como positivistas; todavia, o próprio Teixeira Mendes afirmava que a política republicana deve ser pacífica e, assim, condenava tanto a violência governamental do despotismo sanitário quanto a explosão popular e a exploração demagógica dela. Vale notar que todos esses argumentos são públicos e, embora um tanto restritos, são facilmente acessíveis para qualquer pesquisador minimamente preparado, como supomos ser Schwartzman, cuja carreira tem muitas décadas de duração.

Para concluir: a conjuntura político-sanitária de 2020 é muito, muito diferente da de 1904. As campanhas de vacinação respeitam a dignidade humana e são higienicamente adequadas; a racionalidade científica subjacente a elas está bem estabelecida. Assim, ao contrário do que ocorreu em 1904, a politização sistemática de uma crise sanitária é, sim, demagógica, mesmo quando realizada pelo governo; mas, assim como em 1904, o governo e os liberais opõem-se aos positivistas, ao “Ordem e Progresso”, em seus desígnios. É difícil não considerar que as coisas estão bastante erradas.

25 janeiro 2020

Monitor Mercantil: Normalização da violência política

O artigo abaixo foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil, em 24.1.2020. A versão original pode ser lida aqui.

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A normalização da violência política no Brasil


Por Gustavo Biscaia de Lacerda.

Opinião / 22:46 - 24 de jan de 2020
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Ao longo dos últimos dois anos, publiquei artigos em que convidava os conservadores brasileiros a refletirem sobre suas escolhas políticas. Em um primeiro momento, observei que esses conservadores estavam à deriva, pois em 2018 manifestavam majoritário apoio a um candidato a presidente da República que seria qualquer coisa menos “conservador”, isto é, respeitador das tradições, das instituições públicas e, acima de tudo, das liberdades políticas; aliás, esse candidato foi eleito, e sua plataforma baseia-se na destruição sistemática, de acordo com suas próprias palavras.
Em seguida, em face dessa sistemática destruição das instituições e das liberdades públicas, observei que os conservadores brasileiros estavam destinando a si mesmos e ao país ao desastre. Mais recentemente, questionei esses conservadores a respeito de quais seriam os valores e as tradições que eles defendem e valorizam: as liberdades públicas, o respeito efetivo à diversidade de opinião, o pacifismo, o multilateralismo e o Estado de bem-estar social são, de fato, tradições e tradicionais no Brasil; desprezá-los é contra o bom-senso, a moral e, no caso, a nossa tradição sociopolítica.
É necessário dar um passo além e observar que os prognósticos negativos feitos anteriormente estão confirmando-se a passos largos, o que pessoalmente me assusta muito, mas que deveria ser motivo da mais profunda apreensão da parte de qualquer cidadão brasileiro minimamente preocupado com o país.
Aumento da violência no país deve
ser debitado na conta pessoal do presidente
Antes de mais nada, é necessário notarmos que o que legitimou e, assim, elegeu o candidato vencedor nas eleições de 2018, foi o “antipetismo”, ou seja, a rejeição confusa, ainda que não necessariamente incorreta, de corrupção, apadrinhamentos políticos, ideologização das políticas públicas, má gestão da economia.
Ora, com estrondoso sucesso, o candidato eleito conseguiu impor ao país – e os brasileiros alegremente compraram sua tese – que no Brasil existe uma dicotomia político-ideológica: ou é-se “petista” (de “esquerda”) – e, portanto, e supostamente, corrupto, ineficiente, ideológico etc. – ou é-se “antipetista” – e, portanto, é-se a favor do capitão expulso da Academia Militar Jair M. Bolsonaro.
Enfatizemos: o maniqueísmo antipetista venceu as eleições e, infelizmente, continua vigente. O problema aí não é exatamente o “antipetismo”, mas o seu caráter maniqueísta, que se revela radical, extremista e, no final das contas, cego, surdo e profundamente burro.
Sim, burro: afinal de contas, para evitar-se a eleição do PT em 2018 bastava não votar no PT – e, para isso, havia uma pletora de candidatos infinitamente superiores ao candidato eleito (que é da mais extrema-direita possível), tanto de centro-esquerda quanto de centro e de centro-direita: Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias... mesmo para os favoráveis ao ultraliberalismo inimigo do Welfare State de Paulo Guedes havia João Amoedo. Assim, a eleição do capitão expulso da academia militar não era uma necessidade política; mas, por outro lado, sua vitória tem acarretado os mais variados danos ao país.
Em termos institucionais, alguns são mais conhecidos, outros menos. Um crescimento econômico pífio, uma inflação acima das metas (aliás, em parte causada pelas trapalhadas do governo no comércio internacional); rejeição das estatísticas oficiais; desprezo por órgãos públicos; desprezo sistemático pelos servidores públicos; indicações ou impedimentos ideológicos em nomeações para cargos públicos; incompetência administrativa; reversão ou destruição de políticas públicas duramente constituídas ao longo de décadas... em termos institucionais, a lista não para.
Isso sem falar do assumido impulso para a censura dos meios de comunicação e da extrema e reiterada vulgaridade no trato com aqueles que o desagradam. Mais uma vez: em nome do “antipetismo”, os eleitores de Bolsonaro aceitam tudo isso, mesmo os eleitores “conservadores”.
Mas talvez seja no âmbito das relações sociais que a figura de Bolsonaro, seus apoiadores, seus “ideólogos” produzam os efeitos mais nefastos – nomeadamente, na legitimação da violência, em particular da violência política.
Ao contrário do que a dona da Companhia das Letras, a sra. Lília Schwarcz, afirma, o brasileiro não é nem sempre foi autoritário (e, portanto, violento); ainda que tenhamos grupos sociais mais propensos ao autoritarismo e à violência, esses não são traços específicos do brasileiro, na medida em que também temos, para nossa grande felicidade, inúmeros grupos sociais e correntes culturais pacíficas, tolerantes, respeitadoras etc. Nesse sentido, o aumento da violência no país deve ser debitado na conta pessoal do presente presidente da República. A esse respeito, quero contar um episódio que ocorreu comigo.
Em um sábado de janeiro de 2020 eu almoçava com minha mãe, uma frágil senhora de 75 anos, em um restaurante de um bairro de classe média/classe média alta de Curitiba; minha mãe tem problemas de audição e tenho que falar alto para ela ouvir. Como deve ser evidente, estou profundamente insatisfeito e irritado com o atual governo do Brasil; por isso, comento com ela os problemas indicados acima, lembrando que, em Curitiba, as classes média e alta votaram maciçamente em Bolsonaro (em nome do “antipetismo”) e que, portanto, elas são responsáveis por isso tudo.
À minha frente, atrás de minha mãe, sentava-se um homem de meia-idade com dois idosos, presumivelmente seus pais; ele demonstrava ouvir minha peroração. Quando ele saía, resolveu falar comigo: bateu-me no ombro, segurou-me e começou a falar; eu disse que não lhe dava autorização para segurar-me e que, portanto, não tinha interesse em falar com ele.
A reação? “Se você estivesse sozinho na rua seria diferente”. “Sozinho na rua”, ou seja, sem testemunhas (incluindo minha mãe) nem câmeras; “seria diferente”, ou seja, ele faria o possível para brigar comigo e, de preferência, para espancar-me. Como procurei gravá-lo com meu celular, ele deu-me tapas e jogou o meu telefone no chão; como se não bastasse, em apoio à violência gratuita do filho, o seu pai, ignorando o contexto da situação, xingou-me de “vagabundo filho da puta”. Minha mãe assistia a tudo muda e assustada. É claro que do restaurante fui à delegacia de polícia prestar queixa.
Desde o fim do regime militar até a eleição de Bolsonaro, esse tipo de violência política era cada vez mais excepcional no Brasil; todavia, a partir de meados de 2018, o país assiste cada vez mais a casos assim, com ameaças pessoais a cidadãos que têm a ousadia de criticar o presidente da República – aliás, de maneira torpe, muitas ameaças são estendidas a seus familiares –, sem falar nas variadas violências que grupos sociais detestados pelo presidente têm sofrido (mesmo quando são apoiadores dele).
Ah, mas Bolsonaro não é o responsável direto por isso!”. Talvez: na violência que eu sofri, não foi o presidente o seu autor, mas é inegável que o seu exemplo é poderoso e, acima de tudo, legitimador.
Se você estivesse sozinho na rua seria diferente”... se eu estivesse sozinho na rua, minhas liberdades de pensamento e expressão resultariam em espancamento. Em nome do “antipetismo”, os eleitores de Bolsonaro legitimaram esse tipo de comportamento (isso quando não o praticam), normalizando a violência política. O Brasil caminha célere para o desastre.
Gustavo Biscaia de Lacerda
Sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.
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20 janeiro 2018

Movimentos e militantes sociais, intolerância e danos à liberdade

É motivo da mais profunda preocupação o fato de muitos "movimentos sociais", assim como muitos "ativistas sociais", adotarem comportamentos intolerantes.

Essa intolerância é facilmente verificável: adota-se um comportamento extremamente agressivo, em que se adota o "ou concorda conosco, exatamente nos termos que apresentamos, ou está contra nós - e é contra o progresso, a justiça, a liberdade". Qualquer divergência é percebida como traição e é tratada com violência, com doses monumentais de xingamentos. A gritaria, pública e/ou virtual, é seu o procedimento-padrão.

Seguindo esse comportamento, quem não está com esses grupos e/ou pessoas é visto como mal, ruim, opressor, explorador e toda uma inesgotável seqüência de xingamentos próprios a cada movimento social.

Esses movimentos sociais e/ou ativistas exigem de seus adversários - e é assim que são vistos: como adversários, como inimigos, não como pessoas que legitimamente têm divergências e opiniões diferentes - verdadeiros autos de fé, em que se deve humilhar ao máximo o "opressor" inimigo, deve exigir-se que esse "opressor" humilhe-se em busca da expiação de seus delitos e em que se exige lógica e contrição do "opressor", mas tais exigências não são extensivas aos movimentos e/ou aos militantes sociais.

Antes que me incomodem: NÃO estou dizendo que todos os movimentos e militantes sociais contemporâneos agem assim, mas que, sim, que há muitos, muitos, muitos que procedem dessa forma.

O resultado desse comportamento agressivo e intolerante é a degradação do ambiente público, com a desmoralização da política e a polarização dos debates.

Mais do que isso: a concepção da "sociedade civil" como um pólo ativo e importante da vida política sai extremamente prejudicada - afinal, se os "movimentos sociais" são agressivos e intolerantes, por que se perder tempo com eles, isto é, por que perder tempo ouvindo-os e talvez os apoiando? Esse é um dos caminhos mais seguros para o autoritarismo e para a perda das liberdades políticas e civis.

(O aumento da radicalização e da intolerância da sociedade civil como conducente ao autoritarismo não é mera especulação: historicamente, isso já se verificou nos inícios das décadas de 1930 e de 1960.)

15 maio 2017

Contra a retórica da violência

Nos últimos anos tem crescido no país um estilo retórico pleno de violência e agressividade, sob a justificativa de "reação ao politicamente correto".

Claro que o grande nome brasileiro dessa retórica é Olavo de Carvalho, mas ele está acompanhado por outros nomes, como Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi e Rodrigo Constantino e seus seqüazes - provavelmente não por acaso, todos de "direita". (Aliás, embora sejam brasileiros e refiram-se ao Brasil, com base em teorias da conspiração muitos deles auto-exilaram-se.)

Isso serve apenas para tornar o ambiente pior. O "politicamente correto" trouxe sérios danos à racionalidade e aos hábitos sócio-políticos, mas o fato é que não é por meio dos berros e dos xingamentos que se reverterá esses danos.

Adotar a agressividade como uma suposta forma de demonstrar "liberdade" e "ausência de preconceitos" é uma tolice - e uma perigosa tolice. Em vez de consagrar verdadeiramente a liberdade, a retórica da violência e a retórica violenta servem apenas para consagrar a própria violência. Em suma, a despeito de pretender-se a favor de padrões civilizatórios, a retórica violenta/da violência é um dos mais poderosos instrumentos contra a própria civilização; mais que uma reação, é reacionária e retrógrada.

Cabe aqui uma observação de Bertrand Russell, em um contexto um pouco diferente, mas perfeitamente aplicável ao presente caso: "se muitos dos problemas atuais decorrem da racionalidade, não é com menos racionalidade que esses problemas serão solucionados".

(Claro: o que eu disse acima aplica-se da mesma forma a toda a gente da "esquerda" - desde aqueles que pregam a morte à burguesia e a ditadura comunista até a suposta filósofa que afirmou que "a classe média é uma merda", passando por todos os que defendem anarquismos anticapitalistas.)

04 janeiro 2007

Teorias sociais, violência e integração

Teorias sociais, violência e integração
Gustavo Biscaia de Lacerda[1]

Há alguns dias o meu amigo Elias Marcos Gonçalves fez-me uma pergunta bastante interessante. Infelizmente, como sói acontecer com as perguntas interessantes, essa não tinha uma resposta simples ou direta, exigindo considerações um pouco mais amplas. O curioso é que essa pergunta, em virtude dos acontecimentos recentes em São Paulo e em outras unidades da federação, tem uma atualidade dramática: quais teorias sociais insistem na violência, quais insistem na integração dos indivíduos?
Como se verá, este artigo não comporta nenhuma conclusão; ele consiste mais em uma longa exposição feita para um amigo, que julguei útil pôr à disposição de um público mais amplo. É claro que é limitado – mas é apenas uma introdução sumaríssima em duas páginas e meia.
Uma primeira resposta sobre o tema da violência é: todas abordam-no. A violência, percebida como algo positivo, negativo ou simplesmente um fato da vida, é algo presente em todas as sociedades e, portanto, todas as teorias têm que se haver com esse fato. O que muda, portanto, é o juízo de valor, ou, por outra, a maneira de lidar com ela – e aí as perspectivas são as mais diversas possíveis. Em todo caso, é interessante notar que a posição a respeito da violência tem uma certa simetria em relação à integração social, no sentido de que quanto maior a ênfase na integração, menor a na violência.
Além disso, é necessário um comentário talvez epistemológico: as teorias podem ou não pretender ser aplicadas mais ou menos imediatamente na prática. Assim, elas podem ser apenas o conhecimento do que os seres humanos fazem, importando apenas e tão-somente esse conhecimento, ou elas podem ser também um instrumento prévio para uma ação prática posterior. O grau de politização daí decorrente, ou seja, o grau de comprometimento com propostas político-partidárias variam.
O francês Augusto Comte, fundador da Sociologia, tinha uma perspectiva histórica da violência, especialmente no que se refere à evolução do Ocidente. Assim, na Antigüidade e na Idade Média a prática política e econômica fundava-se na violência mais ou menos sistematizada, mas na modernidade as relações tendem a ser pacíficas, com a violência sendo cada vez mais abominada (e abolida). Todavia, é importante notar que, para Comte, enquanto o Estado mantém a ordem civil (em última análise por meio da violência), a sociedade deve organizar-se autonomamente, de acordo com sua dinâmica própria, havendo um amplo espaço para o poder da opinião pública; a opinião pública, na verdade, é um outro poder, que se contrapõe ao Estado, complementando-o, por meio da legitimidade. Sendo os seres humanos ao mesmo tempo egoístas e altruístas, a integração social dos indivíduos dá-se em vários níveis: na economia, na vida cívica, na família, nas igrejas e escolas.
O alemão Carlos Marx talvez seja mais famoso (embora não necessariamente o mais conhecido). Suas opiniões teóricas a respeito da violência e da integração eram bastante ambíguas, se bem que suas opiniões práticas não o fossem. Para ele, a sociedade, capitalista, é uma violência institucionalizada: a burguesia explora economicamente o proletariado, alienando-o dos resultados de seu trabalho e do que o faz um ser humano. A violência a que é submetido o proletariado é ruim, mas para acabar com ela apenas mais violência, por meio da revolta coletiva, da classe proletária contra a classe burguesa, por meio da revolução social. O sentido da “revolução”, nesse caso, não tem nada de metafórico: Marx tinha em mente a Revolução Francesa, de 1798, e, depois, a Comuna de Paris (1871), quando usava essa palavra, pensando em uma violência apocalíptica e, messianicamente, redentora. A integração no capitalismo é um embuste; para criar uma verdadeira integração, apenas com o fim do capitalismo, que será também o fim das classes e da violência. Em suma: a violência é ruim, mas já que existe...
O francês Emílio Durkheim elaborou sua teoria sociológica observando os tipos de integração que cada sociedade apresenta, chegando a dois tipos extremos: a solidariedade mecânica e a orgânica. Enquanto a primeira caracteriza-se pela pouca diferenciação entre os indivíduos, a outra consiste na grande diferenciação entre cada qual, sendo que cada um tem uma grande consciência de si. Na solidariedade orgânica, os indivíduos são integrados à sociedade pela íntima dependência funcional que todos apresentam em relação a todos; além da divisão do trabalho, a consciência de que participam de um empreendimento comum é importante para essa integração. Ora, quando há integração, não há violência e vice-versa: são necessárias, portanto, instituições que permitam a cada um integrar-se econômica e “psicologicamente”.
Por fim, o alemão Max Weber tinha uma perspectiva mais limitada em relação a esses temas. Para ele, a violência era um fato da vida; nos limites do território nacional, o Estado é que controla exclusivamente seu uso legítimo mas, entre as nações, não há essa exclusividade e, se for necessário, que seja utilizada (Weber era um defensor do imperialismo alemão prévio à I Guerra Mundial, embora fosse admirador de Bismarck e, portanto, prudente). Weber não pretendia que sua teoria sociológica fosse “utilizada” – pelo menos, não além da compreensão das motivações humanas em seus atos.
É interessante notar que, mais recentemente, dois autores franceses, sem serem marxistas – aliás, bem longe disso! – adotaram perspectivas semelhantes à marxista no que se refere à violência na sociedade. Pedro Bourdieu e Miguel Foucault afirmaram, a respeito de diferentes objetos, que a violência é constitutiva da sociedade: para Bourdieu, além da violência física de que o Estado é o detentor em regime monopolístico, existe a violência simbólica, que, grosso modo, a classe dominante exerce sobre a classe dominada. Para Foucault, além da “grande violência” controlada pelo Estado, há uma série de “microviolências” que perpassam toda a sociedade, com vistas ao controle e à manipulação dos corpos individuais: a escola, o hospital, a prisão.
Já o norte-americano Talcott Parsons retomou, de maneira bastante idiossincrática, a perspectiva durkheimiana, enfatizando a integração dos indivíduos na sociedade e a irrupção da violência como sinal de falha nessa integração.
Os autores acima foram teóricos sociais, mas é importante não deixar de lado a teoria política. Mais que na teoria social, na teoria política a violência é um tema central e as relações violência-política delimitam duas grandes linhas teóricas: as que as percebem como antinômicas e as que as percebem como estreitamente vinculadas.
Aristóteles é o grande autor que apresenta a primeira corrente. Segundo ele, a violência pertence aos âmbitos doméstico e “internacional”: ela é possível “apenas” com a família, com os escravos e com as outras cidades, mas na deliberação pública dos rumos a seguir, entre indivíduos livres e iguais que buscam o bem comum, ela não é possível. Em outras palavras, a violência é pré-política, infrapolítica e extrapolítica – jamais verdadeiramente política. Essa concepção foi esposada pelos teóricos da Idade Média – Tomás de Aquino, por exemplo – e, após um longo interregno, foi retomada pela alemã Hannah Arendt, no século XX, que afirmava a centralidade do diálogo racional e tolerante para a vida política. O também alemão Jürgen Habermas tem uma concepção semelhante, com sua “teoria do agir comunicativo”. É claro que a violência, para esses autores, representa o fracasso da integração e a impossibilidade de uma coletividade.
A segunda corrente surgiu, historicamente, da negação da primeira, e é mais “moderna”, isto é, mais próxima de nossa realidade. Entre seus grandes autores podemos indicar o inglês Tomás Hobbes e o italiano Nicolau Maquiavel. Ambos consideravam que o ser humano é naturalmente violento, sendo necessário determinar os meios de controlar e/ou usar essa violência com fins legítimos. Para Hobbes, o potencial de violência é tão grande que apenas um poder absoluto, obtido pela cessação da liberdade de todos os indivíduos menos um, pode impor a paz. Maquiavel considerava que a violência é um meio entre outros de que dispõem os homens para a consecução de seus objetivos: a questão é saber se ela é adequada, não se ela é “legítima”. Exceção feita a H. Arendt e a Habermas, as teorias políticas contemporâneas adotam variações ou derivações das de Hobbes e Maquiavel.
Por fim, uma última teoria política que vale a pena citar, neste contexto, é a do alemão Carlos Schmidt. Mais ou menos variação da anterior, sua concepção é interessante porque afirma que a “essência” da política é a oposição amigo-inimigo: a partir do momento em que distinguimos entre “nós” e “eles”, por um motivo qualquer, estamos na política. Os motivos e os meios que opõem os “amigos” dos “inimigos” podem ser os mais variados possíveis – e a violência é um instrumento evidente.
Nessa segunda tradição de teoria política não se pode falar propriamente de “integração” (embora na primeira também não se possa); com Max Weber, é melhor falar em “legitimação”. A dissensão está sempre presente, às vezes à espreita; o que cumpre fazer é civilizar esses impulsos, mudando os hábitos e os costumes e criando instituições capazes de receber demandas de divergência, processá-las e dar respostas adequadas.