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23 fevereiro 2016

Gazeta do Povo: "Tributação contra a imoralidade"

Artigo de minha autoria publicado em 23.2.2016 na Gazeta do Povo. O original pode ser lido aqui.

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Tributação contra a imoralidade

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Texto publicado na edição impressa de 23 de fevereiro de 2016

Consideremos duas situações históricas. A primeira: quando da Proclamação da República no Brasil, em 1889, os positivistas tinham uma preocupação particular: garantir que o governo e o Estado não interferissem no chamado “poder espiritual” (as diversas religiões e igrejas) e nas liberdades de pensamento e expressão. O fundamento da ação do Estado é o uso da violência, mesmo que essa violência atue sob o amparo da lei; assim, o Estado pode interferir na liberdade de pensamento de diferentes maneiras, das quais duas mais óbvias são a censura e a imposição de currículos escolares específicos. Isso não é novidade e mesmo neste início do século 21 vemos como tais possibilidades são bastante concretas.
Mas outra forma de o Estado interferir na liberdade religiosa, menos evidente, é via tributação. Para pagar os impostos é necessário ter recursos; como o “poder espiritual” não gera riquezas, os impostos podem ser uma forma extremamente eficaz e simples de impedir que organizações da sociedade civil manifestem suas perspectivas. Foi levando em consideração essa possibilidade, também não desprezível, que os positivistas foram favoráveis à isenção tributária das igrejas, em uma regra que se manteve desde então.
A justificativa político-moral da isenção tributária perde intensidade face à imoralidade da situação eclesiástico-religiosa brasileira




A outra situação é a da enorme e crescente riqueza material da Igreja Católica no fim da Idade Média. Recebendo donativos de seus fiéis, bem como tendo o apoio oficial dos governantes, os clérigos acumulavam cada vez mais bens, na forma de dinheiro ou de terras. Com isso, o clero tornava-se cada vez mais venal, preocupado mais com suas posses que com o bem-estar material e moral dos fiéis (que, por sua vez, eram em sua maioria pobres ou miseráveis). Contra tal estado de coisas levantou-se Francisco de Assis, que não por acaso defendeu a necessária pobreza do clero e fundou uma ordem religiosa mendicante. Como tal situação não se tenha modificado, a reação a ela foi um dos motivos para que, alguns séculos mais tarde, a Igreja Católica tenha sofrido um abalo mais sério, do qual jamais se recuperou e que foi o início da derrocada do monoteísmo no Ocidente: trata-se, é claro, do protestantismo, com as teses de Lutero.
Essas duas situações compõem a moldura histórica para o debate teórico-político que se apresenta atualmente no Brasil, em que se propõe a tributação de igrejas. Por que essa proposta? No Brasil, há uma situação consolidada há tempos e de que as igrejas – Católica e protestantes – se aproveitam, buscando, aliás, aumentar cada vez mais suas prerrogativas, com frequência sem entender que essa isenção é um gigantesco privilégio e sem se preocupar em fazer jus a ele. Vê-se proliferarem igrejas com templos cada vez maiores e ostentatórios, pregando o enriquecimento a qualquer custo e sendo proprietárias de enormes conglomerados comerciais, industriais, de serviços e financeiros; da mesma forma, sob as alegações mais estapafúrdias, auferem diariamente pequenas fortunas, cujos destinos, devido à isenção tributária, não podem ser controlados pelo governo (ou seja, com facilidade são canais para lavagem de dinheiro e evasão de divisas). Em outras palavras, a justificativa político-moral – e é disso que se trata aqui: de um problema político com um intenso fundamento moral – da isenção tributária perde intensidade, ou relevância, face à imoralidade da situação eclesiástico-religiosa brasileira.
É claro que as liberdades de pensamento e de expressão têm de ser preservadas, mas a imoralidade atual – que se agrava diante da crise financeira por que passa o país, que tende a piorar nos próximos anos – também tem de ser combatida com seriedade. Assim, um meio-termo é necessário, com várias medidas: fiscalização pública dos “rendimentos” eclesiásticos; tributação progressiva, com isenção para pequenas igrejas e índices crescentes para “rendas” maiores; proibição sumária de igrejas (e sacerdotes!) possuírem empresas de qualquer tipo. Por fim, proibição completa de que sacerdotes possam disputar cargos políticos.
Essas poucas medidas podem corrigir (ou evitar) alguns problemas seculares que o Brasil enfrenta. Irônico ou não, é necessário moralizar muitas (mas não todas) as instituições que, justamente, deveriam zelar pela moralidade pública e privada.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e pós-doutor em Teoria Política pela UFSC.

02 maio 2015

Marxistas ricos e condenação moral da riqueza para Marx

Nos últimos meses, nas chamadas “redes sociais”, várias pessoas têm afirmado que nas obras de Karl Marx não há nenhuma afirmação que impeça socialistas, comunistas ou “marxistas” de serem ricos – ou, por outra, que não é incoerente ou hipócrita da parte dos marxistas, socialistas ou comunistas criticarem a riqueza concentrada e serem eles mesmos ricos: talvez essa inexistência de condenação seja verdade. O problema é que tal argumento é uma falácia, por definição destinada (1) a enganar (2) os incautos: o conjunto da obra de Marx pretende demonstrar que a concentração da riqueza – seja o processo de geração da riqueza, seja o processo de concentração da riqueza, seja a simples posse da riqueza concentrada – é imoral de qualquer maneira.

Em O capital e em outras obras, Marx argumenta que os ricos são ricos porque sistemicamente exploram os não-ricos. No capitalismo isso quer dizer que a burguesia explora o proletariado; tal exploração é “sistêmica” e objetiva: o funcionamento do sistema conduz os burgueses a explorar e os proletários a serem explorados, independentemente da vontade individual. Não importa a vontade, a consciência, os valores, a intenção de quem explora: a exploração ocorrerá quer os capitalistas queiram, quer não queiram. Em outras palavras, o que o marxismo pretende demonstrar é que ser rico é explorar o proletariado –  sempre.

Além de ser o produto da exploração, a riqueza também é o índice por definição da desigualdade social; a desigualdade, por sua vez, é ruim em si mesma. Por esse motivo, na sociedade socialista – nunca definida por Marx –, as desigualdades devem desaparecer, juntamente com a luta de classes que a produz, que a perpetua e que a justifica. A desaparição das desigualdades, das classes e da luta de classes fará desaparecer, também, a própria idéia de “riqueza”.

Em suas obras, Marx condena a exploração e a desigualdade: esse valor moral específico – condenação da exploração e da desigualdade – é um valor “aceitável”. Mas outros valores morais a respeito dos quais Marx não faz nenhuma ressalva são a hipocrisia e o cinismo; na verdade, o que se percebe nos escritos marxianos é a idéia de que a condenação e a rejeição da hipocrisia e o cinismo são valores morais burgueses ou até pré-capitalistas. 

Enquanto Marx pretende fazer uma crítica objetiva (que, como vimos, afirma que no capitalismo ocorre a eterna e necessária exploração do proletariado pela burguesia), as críticas "subjetivas" - que se baseiam em e que consistem na aplicação de valores morais a situações sociais - são sempre hipócritas, cínicas, ingênuas. Aliás, seguindo nessa mesma linha, para Marx, bem como para seus inúmeros seguidores, a crítica ao cinismo e à hipocrisia é “moralismo” e é ela mesma cínica e hipócrita.

Para Marx, a rejeição moral de idéias ou situações, de modo geral, é uma característica “burguesa” e, como tal, é desprezível e um instrumento da luta de classes – logo, é um instrumento da dominação burguesa de classe e da exploração do proletariado realizada pela burguesia. Em suma: rejeitar a hipocrisia e o cinismo (ou a corrupção) – em todo caso, rejeitar a falsidade – é um valor burguês que serve apenas para manter a exploração do proletariado e a desigualdade social.

O resultado disso tudo é que: (1) rigorosamente, pode ser que Marx não fosse contrário a socialistas serem “ricos”, mas (2) a riqueza é sistemicamente o resultado da exploração classista sofrida pelo proletariado. Ao mesmo tempo, contraditoriamente, (3) não há problema em socialistas serem ricos, pois (4) a rejeição da hipocrisia é um valor (ou preconceito) burguês.

As soluções habituais encontradas pelos marxistas (teóricos e/ou práticos) para tal situação profundamente “contraditória” – isto é, para essa incoerência – são as seguintes: (1) afirmar que a riqueza mantida pelo Estado (“propriedade coletiva dos bens de produção”) é progressista e libertadora, ao contrário da riqueza individual, vista como reacionária ou conservadora; (2) denunciar ou desprezar a denúncia moral como sendo burguesa, logo, como sendo ela mesma hipócrita e instrumento da luta de classes; (3) silenciar a respeito dessa incoerência. É claro que essas estratégias não são mutuamente excludentes.

É dessa forma que é possível aos marxistas, socialistas e/ou comunistas denunciarem a riqueza mas eles mesmos serem ricos.

04 janeiro 2007

Sobre a responsabilidade social

Sobre a responsabilidade social

“Os deveres sociais do capital podem reduzir-se a dois: produzir riqueza e sustentar os seres humanos”.
Luís Lagarrigue 

A vitória de Luís Inácio Lula da Silva para a Presidência da República pôs na ordem do dia uma tendência que lentamente se formou no Brasil ao longo dos anos 1990: o valor da “responsabilidade social”.

Esse conceito tem sido aplicado por diversas empresas que – preocupadas com as condições de vida, não apenas de seus funcionários, mas de todos os cidadãos – desenvolvem programas de auxílio a necessitados, com a “adoção” de alunos carentes, doação de alimentos, reciclagem de lixo reutilizável, campanhas de “conscientização social” e assim por diante.

Ora, esses atos, por si sós, não constituem novidade alguma; com maior ou menor ênfase, há vários anos, talvez décadas, diferentes grupos têm-nos defendido. O mais notável nesse movimento são seus defensores: empresários, capitalistas, donos de empresa – justamente aqueles que, pela profissão ou mesmo pela mentalidade, seriam os menos propensos a tal tipo de conduta.

Ainda mais interessante é o fato de que o valor da responsabilidade social, ainda que possa ser comparado ao da “caridade”, não é igual a ela, pois não se trata de remediar a condição de vida de quem sofre, mas de evitar que quem sofre sofra, ou seja, é um comportamento preventivo, ao invés de paliativo.

Sem dúvida alguma é uma alteração profunda, absolutamente necessária para a sociedade, e que, se tem sido mais difundida (no Brasil) apenas nos últimos anos, a verdade é que é um valor, um conceito existente há mais de um século e meio.

Foi o filósofo francês Augusto Comte (1991), autor da frase que está em nossa bandeira nacional, Ordem e Progresso, quem pensou pela primeira vez os termos da responsabilidade social; são eles muito simples.

A idéia básica, fundamental, é que a sociedade é um todo e não uma coleção de indivíduos que, por acaso ou por necessidade, interagem. Essa totalidade caracteriza-se mais por sua existência ao longo do tempo, através das gerações sucessivas, que pelo mero tempo presente; além disso, nela cada um tem seus deveres para com os demais, a começar pelo respeito mútuo. A segunda idéia é que o trabalho, isto é, a atividade humana, não é apenas a econômica, pois envolve tudo o que fazemos: as idéias, os pensamentos, a política, a produção material, as obras artísticas e assim por diante. A terceira idéia é que o ser humano tem uma constituição tal que somos naturalmente altruístas, ou seja, somos venerantes, fraternos e bondosos, cumprindo apenas exercitar esses sentimentos e desenvolvê-los.

Essas percepções – que não são idéias abstratas, porém questões de fato – têm algumas conseqüências claras: quando trabalhamos, não o fazemos apenas ou principalmente para nós mesmos, para satisfazer nosso egoísmo presente. É claro que precisamos viver e, nesse sentido, não há como não ser egoísta: mas os frutos de nossa ação ultrapassam a mera satisfação de nossos próprios desejos ou necessidades, tanto “neste momento”, no presente, quanto ao longo do tempo; o que fazemos influencia a vida dos demais, incluindo-se aí as gerações posteriores, que serão as principais afetadas por nossos atos de hoje.

Além disso, as pessoas não iguais; cada um é diferente dos outros, e disso resulta que as habilidades e as competências são, também, diferentes. Da mesma forma como há indivíduos mais propensos e habilitados a serem filósofos, ou poetas, ou engenheiros, ou médicos, ou artesãos, ou políticos, há indivíduos hábeis na condução dos negócios econômicos, e são eles que devem cuidar desses assuntos, com a máxima liberdade possível. Mas essa “máxima liberdade possível” só se justifica porque são os empresários que sabem como lidar com os assuntos sob sua responsabilidade, assim como sabem quais são os problemas que enfrentam; nesse sentido, a liberdade, que deve ser garantida, exige, em contrapartida, a máxima responsabilidade na condução dos negócios. E, como dissemos antes, a sociedade não é uma coleção de indivíduos egoístas que interagem para satisfazer seus desejos...

Outra tendência que tem se acentuado no Brasil, desde os anos 1990, é a difusão dos cursos de Administração. Fora os aspectos técnicos dos diversos tipos de administração, é interessante notar que um “administrador” é alguém que gere o patrimônio alheio, tendo para isso muita liberdade – afinal, é ele que sabe quais são os problemas que enfrenta na gestão – mas, da mesma forma, tendo que prestar contas periodicamente aos donos da empresa ou ao corpo de acionistas; caso malverse os recursos à sua disposição, ou seja incompetente, é substituído por alguém mais capaz.

É exatamente essa mentalidade que deve generalizar-se pela sociedade; mas, ao invés de sermos “administradores de empresas”, seremos “funcionários sociais”, responsáveis pela gestão da sociedade naquilo que nos cabe; ao invés de buscarmos o lucro para a satisfação mesquinha de desejos egoístas de acumulação material e ostentação, buscaremos a melhoria das condições de vida e de existência do ser humano.

Da mesma forma, a concepção que temos da propriedade mudará, ou deverá mudar: não sendo nunca “coletiva”, como propõe o socialismo, ela será social; não teremos a “propriedade” dos bens, mas apenas a “posse” ou seu “usufruto”. Ao dispormos dos bens, temos liberdade para tanto, sujeitando-nos também à completa responsabilidade (social) implicada. Ou, como disse o filósofo Comte, “O capital é social em sua origem; deve ser também em sua destinação”.