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29 março 2023

Comentários sobre a metafísica

No dia 3 de Arquimedes de 169 (28.3.2023) fizemos nossa prédica positiva. Na ocasião demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista (no caso, à sua sexta conferência, dedicada ao conjunto do dogma); em seguida, fizemos nosso sermão sobre o conceito de metafísica.

Antes da leitura comentada, lembramos que no dia 29 de março celebramos o aniversário de nascimento de David Carneiro, um dos maiores positivistas do Paraná e do Brasil (nascido em 1904). Além disso, lamentamos profundamente a violência ocorrida em 27 de março de 2023 em uma escola de São Paulo, em que a Professora Elizabeth Tenreiro foi brutalmente assassinada por um pré-adolescente profundamente perturbado.

As anotações sobre a metafísica que nos serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo. A prédica está disponível nos portais Apostolado Positivista (aqui: l1nk.dev/eVa7i) e Positivismo (aqui: l1nq.com/M1Xml); a exposição sobre a metafísica pode ser vista a partir de 1h 12".



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Comentários sobre a metafísica

 

-        A metafísica é um conceito bastante curioso em relação ao Positivismo: ele é secundário em termos intelectuais e políticos, mas, devido a uma série de fatores, acabou ganhando destaque

o   Uma indicação indireta mas eficiente dessa estranha relevância do conceito de metafísica: no meu blogue, o artigo “O Positivismo e o conceito de metafísica” corresponde a 7% das visitas (27.800/393.300), ocupando o primeiro lugar em artigos consultados; o segundo artigo mais lido (“Homem-Aranha positivista”) corresponde a cerca de 3,5% das visitas, ou seja, metade do primeiro lugar[1]

-        A metafísica tem certa relevância atual devido aos seguintes motivos:

o   Da parte do Positivismo: caráter metafísico da política contemporânea (individualismo, igualitarismo, academicismo, irracionalismo, militarismo, permanência do absoluto)

o   Da parte de fatores externos I: recuperação academicista de uma área chamada “metafísica” (ou “ontologia”)

o   Da parte de fatores externos II: confusão intencional entre as expressões “elaborações filosóficas abstratas” e “metafísica”

§  Essa confusão resulta em que a “metafísica” é entendida como sinônima de “filosofia”, de “especulações abstratas”, de “concepções de mundo”, de “moral”, de “epistemologia”

§  Exemplo clássico dessa confusão intencional: o título e o conteúdo de um livro famoso, As bases metafísicas da ciência moderna, de Edwin Burtt (de 1924, com edição brasileira de 1983)

o   Da parte de fatores externos III: crítica do Círculo de Viena à metafísica

§  Aparecem (ou reaparecem) aí o “problema da delimitação” e o “problema do empirismo”

-        Devido ao item anterior, antes de avançar para a exposição sobre o que o Positivismo entende por “metafísica”, é necessário deixar muito claro que, para o Positivismo, valem as seguintes concepções:

o   A filosofia é uma reflexão geral sobre a realidade humana, com caráter sintético

o   A Moral é tanto uma ciência quanto uma prática quanto uma “ética

o   A partir da historicidade humana, todas as concepções positivas têm base empírica; ainda que com freqüência sejam abstratas e passíveis de deduções, nossas concepções não são apriorísticas nem arbitrárias nem “voluntaristas”

-        Para o Positivismo, a metafísica é um conceito secundário, subordinado à teologia e mesmo à positividade:

o   Como sugeriu o equívoco sociólogo inglês Anthony Giddens, o conceito positivista de “metafísica” é metodológico e não substantivo: ele consiste em uma forma de entender (ou interpretar) a realidade

o   A metafísica consiste de modo geral na degradação da teologia, ocupando sempre um papel de transição entre alguma teologia e outro estado intelectual, seja uma outra teologia, seja a positividade

o   A metafísica, portanto, é tanto um elo (de maneira ampla: entre teologia e positividade) quanto teologia degradada

o   Sendo um elo, a metafísica compartilha características dos extremos cuja ligação realiza

§  Na passagem da teologia para a positividade, dependendo do caso em questão, a metafísica compartilha, por um lado, ou mais as abstrações fictícias e irracionais da teologia ou, por outro lado, mais o esforço racionalizante e empírico da positividade

§  Em certo sentido, portanto, é possível entender a metafísica como a secularização da teologia (mas secularização bastante equívoca)

o   Sendo teologia degradada:

§  A metafísica mantém o caráter absoluto da teologia, buscando entender o mundo por meio dos “porquês”, mas atribuindo as explicações, ou melhor, as vontades às puras abstrações, que passam a atuar como se tivessem vontade humana

§  Além disso, a metafísica assume um forte caráter crítico, destrutivo, dissolvente: seu objetivo é destruir, é degradar

§  A combinação das duas características acima – o absoluto e a criticidade sistemática – resultam que é possível verificarmos até mesmo a metafísica científica (ou, inversamente, a ciência metafísica), na forma do academicismo, do cientificismo e dos vícios opostos do materialismo e do espiritualismo

-        A metafísica adota as abstrações personificadas para explicar o mundo: no âmbito da Sociologia, exemplos fáceis são o “mercado” (ou “a mão invisível”), o “capitalismo”, o “patriarcado”

o   Como a metafísica emprega as abstrações, o que fica evidente é que ela surge a partir do desenvolvimento sistemático da abstração; em outras palavras, como o fetichismo é concreto, a metafísica é “pós-fetichista” e, portanto, surge propriamente a partir da teologia

o   A metafísica também pode ser entendida como a desregulação, ou a atividade desregulada, das abstrações, que perdem cada vez mais as relações com a realidade empírica

§  Juntamente com a atividade desregulada das abstrações, a metafísica também apresenta um forte caráter verborrágico

o   As características da natureza humana são mais desenvolvidas durante a teologia (como na tríplice transição ocidental, entre Grécia, Roma e Idade Média); entretanto, cabe à positividade a necessária e imperiosa tarefa simultânea de (1) regular e regularizar as relações entre essas características, (2) restabelecer a dignidade das concepções concretas e (3) regular e regularizar o emprego das abstrações

-        Em termos de história ocidental, o duplo movimento moderno, posterior à Idade Média, combinou a degradação metafísica da teologia e a construção positiva; esse duplo movimento resultou na grande crise de 1789 (a Revolução Francesa)

o   Desde então, o Ocidente já não vive mais sob a égide da teologia – apesar em particular da retrogradação desenvolvida e estimulada pelos Estados Unidos – mas os esforços e o impulso da positividade ainda não foram capazes de superar a dinâmica anárquica entre retrogradação e revoluções, bem como também não conseguiram superar o forte impulso metafísico estimulado pelo Ocidente, em particular após a I Guerra Mundial

-        A política contemporânea, portanto, é amplamente metafísica:

o   Não se trata apenas, por exemplo, da nefasta e atual política identitária, cujas características destruidoras, particularistas e irracionalistas são bastante conhecidas

o   A política contemporânea é metafísica devido aos seus valores profundos, às suas concepções e às suas práticas: seja com o identitarismo, seja com o individualismo, seja com a exaltação do egoísmo e da concepção egoístico-negativa da natureza humana, seja com seu radical impulso destruidor, seja com a concepção de que a vida em sociedade é eterno e permanente conflito (“política agonística”)

§  É evidente que a política contemporânea ser metafísica em geral não impede que muitos políticos sejam mais ou menos positivos

§  Mas, por outro lado, convém lembrar que a permanência e o aprofundamento da metafísica estimulam movimentos retrógrados

-        Para concluir estes comentários, duas citações:

o   Há uma piada corrente na internet, baseada em uma frase de Voltaire, que define da seguinte maneira virtualmente positivista a filosofia, a teologia, a metafísica e a ciência:

Filosofia é estar em um quarto escuro procurando um gato preto.

Metafísica é estar em um quarto escuro procurando um gato preto que não está ali.

Teologia é estar em um quarto escuro procurando um gato preto que não está ali, mas gritando “achei!”

Ciência é estar em um quarto escuro procurando um gato preto usando uma lanterna.

-        A música Hier encore (“Ainda ontem”), do cantor francês Charles Aznavour, apresenta os lamentos de um velho que se arrepende profundamente do tempo perdido em sua vida, especialmente em sua juventude: os vícios de que ele arrepende-se, na segunda e na terceira estrofe, parecem-me todos eles decorrentes de uma postura metafísica em face da vida:

 

Ainda Ontem[2]

Charles Aznavour

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Acariciava o tempo e brincava com a vida

Como se brinca com o amor.

E vivia à noite

Sem contar meus dias, que fugiam no tempo,

Fiz tantos projetos que ficaram no ar,

Alimentei tantas esperanças que bateram as asas,

Que continuo perdido, sem saber aonde ir,

Com os olhos procurando o céu, mas com o coração posto na terra.

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Desperdiçava o tempo, acreditando detê-lo

E, para retê-lo, e até ultrapassá-lo,

Só fiz correr e perdi o fôlego.

Ignorando o passado, conjugando no futuro,

Começava qualquer conversa com “Eu”.

E dava minha opinião, que pensava ser a melhor,

Para criticar o mundo com desenvoltura.

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Mas perdi meu tempo a cometer loucuras

Que não deixam, no fundo, nada de realmente concreto

Além de algumas rugas na testa e medo do tédio.

Pois meus amores morreram antes de existir

Meus amigos partiram e não mais voltarão.

Por culpa minha, criei o vazio à minha volta

E desperdicei a vida e meus anos de juventude.

Do melhor e do pior, descartando o melhor,

Imobilizei meus sorrisos e congelei meu pranto.

Onde estão agora, agora, meus vinte anos?



[1] A medição, mesmo que aproximada, foi feita em 28.3.2023.

19 agosto 2022

Estréia das prédicas positivas: terças-feiras, às 19h

A partir do dia 9 de agosto, todas as terças-feiras, das 19h às 20h, haverá prédicas positivas à distância, transmitidas ao vivo nos canais Apostolado Positivista (Facebook.com/ApostoladoPositivista) e Positivismo (Youtube.com/ThePositivism).

Essas prédicas consistirão sempre em três partes: (1) leitura de trechos do Catecismo Positivista; (2) comentários sobre os trechos lidos; (3) comentários sobre questões interessantes, relevantes, atuais ou apenas úteis.

O objetivo das prédicas é oferecer ao grande público alguns elementos semanais de reflexão sobre o que é (o) ser humano, sobre o que é a felicidade, sobre como sermos felizes; sobre as noções de deveres, de sociedade e indivíduo; sobre o altruísmo e a moralidade; sobre a ciência, sobre as artes, sobre a política - além de inúmeras outras questões.

As leituras comentadas do Catecismo Positivista permitem ao público seguir a mais bela exposição da Religião da Humanidade, que é um sistema humanista de valores e práticas. Com essas leituras, a letra original do fundador do Positivismo, Augusto Comte, é respeitada e seu pensamento surge com clareza e segurança. Além disso, esse procedimento, que era seguido desde 1881 na Igreja Positivista do Brasil, afirma a humildade do expositor, ao mesmo tempo em que se faz um esforço para que essas idéias sejam apresentadas com clareza e simplicidade para o público de hoje.

Se você deseja alguns momentos de reflexão ou se deseja (também) conhecer a Religião da Humanidade, está convidado(a) para assistir e participar das prédicas positivas!

11 abril 2022

Condições e exigências próprias ao sacerdócio positivo

As anotações abaixo correspondem à transcrição de algumas passagens do Catecismo positivista, belíssima obra de divulgação da Religião da Humanidade escrita por Augusto Comte em 1852, voltada às mulheres e aos proletários. 

Essas anotações abordam algumas disposições sobre o sacerdócio positivo: suas funções sociais, sua estrutura, sua base material; implicitamente (mas às vezes de maneira bastante explícita) também seus requisitos morais.

Essas anotações são úteis, ou melhor, são importantes devido a diversos motivos. Por um lado, elas orientam todos aqueles interessados em exercer o belo e exigente ofício de sacerdote da Humanidade; por outro lado, elas indicam os requisitos exigidos de qualquer sacerdote que seja digno desse título e dessa posição, independentemente de se tais sacerdotes são positivos, metafísicos ou teológicos (é claro que as exigências feitas ao sacerdócio positivo são muito superiores, muito mais dignas e muito mais adequadas à realidade humana que aquelas feitas aos sacerdotes "apositivos").

Por fim, vale notar outro aspecto, menos evidente, ou melhor, à primeira vista menos valorizado nos dias atuais, que combinam a decadência da teologia com o cinismo próprio à metafísica. Muitos anos atrás eu ouvi de um professor que as prescrições de Augusto Comte, como as indicadas abaixo, tinham um "ar de século XIX", com isso querendo dizer que eram prescrições exageradas, descabidas e sem sentido... seriam detalhamentos irrealizáveis e irrelevantes. 

Pois bem, o que subjaz a esse gênero de crítica é a concepção de que a indeterminação geral das idéias seria superior à clareza expositiva, que a vagueza seria superior ao exame empírico cuidadoso sócio-histórico e à dedução rigorosa das conseqüências morais, intelectuais, sociais e institucionais dos elementos básicos. Vale notar que esse tipo de crítica provém dos liberais - não por acaso, era justamente um liberal o professor que fez a crítica que comento -; para os liberais, a intuição correta da importância da experiência histórica limita-se e encerra-se na afirmação, vaga, de que a história corresponde a uma espécie de tribunal de longo prazo e que, assim, o que herdamos hoje do passado basta para o futuro... seria uma historicidade pela metade e, no fundo, abortada, estéril. 

De acordo com essa forma de pensar - que, aliás, é amplamente compartilhada com os irracionalistas e os metafísicos pós-modernos -, projetos racionais para a sociedade são sem sentido (embora o ser humano possa e deva empregar a inteligência para entender e projetar a sua existência); as únicas instituições válidas seriam aquelas que reproduzem ou continuam automática e irrefletidamente o que o passado legou, ou, então, o que de maneira confusa, caótica e aos trancos e barrancos o futuro elaborar: em suma, vale qualquer coisa, exceto o que for elaborado racional e conscientemente. Ou seja: a teologia e a metafísica podem continuar exercendo suas influências sociais, por mais impróprias que sejam para a sociedade pacífica, industrial, relativa, humana e positiva - mas a própria positividade é ciosamente proibida de exercer suas influências. Essa crítica, portanto, é uma censura parcial e hipócrita, quando não cínica, cujos efeitos desejados são os piores possíveis. 


*   *   *

 

Funções do sacerdócio:

o   “Eis aí de onde procede este segundo axioma: Nenhuma sociedade se pode desenvolver e conservar sem um sacerdócio qualquer. Semelhantemente indispensável a todos para a educação e para o conselho, só este poder teórico é capaz de consagrar os governantes e de proteger os governados. Ele constitui o moderador normal da vida pública, como a mulher [é] o [moderador normal] da vida privada; conquanto estas duas existências exijam aliás o concurso contínuo da influência moral com o poder intelectual. Podeis resumir o conjunto das atribuições sociais do sacerdócio qualificando-o de Juiz, segundo a expressão bíblica; porquanto seu tríplice ofício de conselheiro, de consagrador e de regulador se efetua sempre julgando, isto é, mediante uma apreciação respeitada” (9ª Conferência (Conjunto do regime); p. 296-297[1])

o   “A MULHER. Meus antigos hábitos católicos inclinam-me, meu pai, a condensar todas as atribuições essenciais do poder Espiritual na direção sistemática da educação universal, onde sua competência exclusiva é incontestável.

O SACERDOTE. Tal é, com efeito, minha filha, o ofício fundamental do sacerdócio, que, quando cumpre dignamente este principal dever, adquire necessariamente uma grande influência sobre o conjunto da vida humana. Suas outras funções sociais constituem apenas a continuação natural ou o complemente indispensável deste destino característico. A prédica torna-se em primeiro lugar um prolongamento necessário desse ofício fundamental, a fim de recordar convenientemente os princípios da harmonia universal, que a atividade especial nos arrasta amiúde a desprezar. É também em virtude daquela base que o poder espiritual adquire sua aptidão para consagrar as funções e os órgãos, em nome de uma doutrina unanimemente considerada como devendo regular sempre a existência humana. Sobre o mesmo fundamento assenta a influência consultiva do sacerdócio acerca de todos os atos importantes da vida real, privada ou pública, em que cada qual sente amiúde a necessidade de recorrer livremente aos conselhos esclarecidos e benévolos dos sábios que dirigirão sua iniciação sistemática. Enfim, a educação permite que o sacerdócio se torne, por um comum assentimento, o regulador normal dos conflitos práticos, por causa da igual confiança que naturalmente inspira aos superiores e inferiores” (9ª Conferência (Conjunto do regime); p. 298-300)

Plena maturidade requerida:

o   “O sacerdócio positivo exige, ainda mais do que o sacerdócio teológico, uma inteira madureza, sobretudo em virtude de sua imensa preparação enciclopédica. Eis aí porque estabeleci a idade de quarenta e dois anos para a ordenação dos padres da Humanidade, pois é então que finaliza todo o desenvolvimento corpóreo e cerebral e termina, ao mesmo tempo, a primeira vida social” (Prefácio; p. 17-18)

Graus do sacerdócio:

o   “[...] Os diversos modos ou graus do sacerdócio positivo, classificados na ordem de sua plenitude crescente. Este grande ministério exige um raro concurso das qualidades morais, tanto ativas como afetivas, com os talentos intelectuais, estéticos e científicos. Se, pois, estes forem os únicos salientes, seus possuidores, após uma cultura conveniente, terão de permanecer, talvez para sempre, simples pensionistas do poder Espiritual, sem aspirarem nunca a ser nele incorporados. Em tais casos, felizmente excepcionais, o maior gênio poético ou filosófico não pode dispensar de ternura e de energia um funcionário que deve estar habitualmente animado de simpatias íntimas e destinado amiúde a lutas difíceis. Este sacerdócio incompleto permite o digno cultivo de todos os verdadeiros talentos, sem comprometer nenhum serviço social.

Quanto ao sacerdócio completo, ele exige, em primeiro lugar, um grau preparatório, que o aspirante não transporá se, apesar de sua vocação proclamada, não passar com bastante êxito pelo noviciado conveniente. Vencida essa prova decisiva, obtém ele, aos trinta e cinco anos, o sacerdócio direto e definitivo, mas exercendo-o durante sete anos no grau secundário, que caracteriza o vigário ou suplente. Depois de ter dignamente preenchido todas as fases de nosso ensino enciclopédico, e mesmo esboçado as outras funções sacerdotais, ele eleva-se, aos quarenta e dois anos, ao grau principal, tornando-se de modo irrevogável um sacerdote propriamente dito. Tais são as quatro classes teóricas que respectivamente celebram as festas hebdomadárias do undécimo mês” (5ª Conferência (Culto público); p. 162-164)

o   “Nosso sacerdócio compõe-se, em geral, de três ordens sucessivas: os aspirantes, admitidos aos vinte e oito anos; os vigários ou suplentes, aos trinta e cinco; os sacerdotes propriamente ditos, aos quarenta e dois.

Conquanto os primeiros, cujo número é naturalmente ilimitado, sejam já considerados como dotados de uma verdadeira vocação sacerdotal, eles não pertencem ainda ao poder Espiritual, do qual não exercem nenhuma função. Por isso sua livre desistência de toda herança é puramente provisória e do mesmo modo seu ordenado, que fixamos em três mil francos. Sem residência sacerdotal, eles são contudo regularmente vigiados em seus trabalhos e costumes.

Os vigários pertencem irrevogavelmente ao sacerdócio, posto que não exerçam ainda senão as funções de ensino e prédica, salvo delegação especial em caso urgente. Além da renúncia definitiva aos bens temporais, sua admissão exige um digno casamento. Eles residem com as suas famílias, porém em separado dos sacerdotes, no presbitério filosófico adjacente a cada templo da Humanidade, paralelamente à escola positiva. A classe que dirige em todas as outras a reação do coração sobre o espírito deve fornecer por sua vez o melhor tipo masculino do surto moral, mediante um pleno desenvolvimento das afeições domésticas, sem as quais o amor universal se torna ilusório. Embora o casamento fique facultativo para os cidadãos ordinários, ele torna-se obrigatório para os padres, cujo ofício não pode ser dignamente preenchido sem a influência contínua, aliás objetiva ou subjetiva, da mulher sobre o homem. A fim de melhor experimentá-los a esse respeito, a religião positiva impõe já esta condição aos simples vigários. Este segundo grau, que conduz sempre ao terceiro, salvo malogro excepcional, proporciona um ordenado anual de seis mil francos.

Durante os sete anos que o separam do sacerdócio completo, cada vigário professou todos os graus enciclopédicos e exercitou suficientemente seus talentos de prédica. Torna-se então um verdadeiro sacerdote e pode preencher, nas famílias ou nas cidades, o tríplice ofício de conselheiro, de consagrador e de regulador, que socialmente caracteriza o clero positivo. Nesse estado definitivo seu ordenado eleva-se a doze mil francos, além das indenizações pelas suas viagens de inspeção diocesana” (9ª Conferência (Conjunto do regime); p. 320-321)

Condições materiais do sacerdócio:

o   “A MULHER. Sou assim levada, meu pai, a pedir-vos que completeis esta apreciação geral indicando a constituição peculiar ao sacerdócio positivo.

O SACERDOTE. Facilmente sentireis, minha filha, que o destino fundamental de nosso sacerdócio exige, como primeira condição, uma renúncia completa ao domínio temporal e mesmo à simples riqueza. É o compromisso inicial que todo aspirante ao sacerdócio deve contrair solenemente ao receber, aos vinte e oito anos, o sacramento de destinação. Nossos padres não herdam nem de suas famílias, quer para se preservarem dos desvios temporais, quer para deixarem os capitais aos que podem utilizá-los. A classe contemplativa deve ser sempre coletivamente sustentada pela classe ativa; primeiro, mediante os livres subsídios dos crentes, depois por intermédio do tesouro público, quando a fé tornar-se unânime. Ela não deve pois possuir coisa alguma em particular, nem terras, nem casas, nem mesmo rendimentos quaisquer; salvo seu orçamento anual, sempre fixado pelo poder Temporal. As vistas gerais e os sentimentos generosos que devem sempre distinguir o sacerdócio são profundamente incompatíveis com as idéias de detalhe e com as disposições orgulhosas inerentes a todo domínio prático. Para que alguém se limite a aconselhar, é necessário que não possa nunca mandar, nem pela riqueza: de outro modo nossa miserável natureza fica disposta a substituir amiúde a força às demonstrações. Essa condição sacerdotal foi sentida até a mais sublime exageração pelo admirável santo que tentou em vão, no XIII século, regenerar o catolicismo exausto[2]. Prescrevendo, porém, aos seus discípulos uma pobreza absoluta, que eles em breve iludiram, esqueceu ele que os distraía assim do seu ofício pelos cuidados diários de sua existência material” (9ª Conferência (Conjunto do regime), p. 318-319)

Sacerdócio, classes sociais e ensino positivo:

o   “A MULHER. Consenti, meu pai, que vos interrompa um momento, quanto a esta última influência. Como nossa instrução enciclopédica não deve nunca tornar-se obrigatória, os ricos talvez sejam levados, por um tolo orgulho, a não deixar que seus filhos participem desse ensino, e sobretudo suas filhas, embora tenham de renunciar aos sacramentos subseqüentes, e mesmo às recomendações sociais que ele há de proporcionar. Isso posto, a influência pessoal que assinalais ficaria essencialmente reduzida à deferência involuntária que por toda parte obtém o talento e a virtude.

O SACERDOTE. Essa objeção incidente, minha filha, é mais forte do que cuidais; entretanto, afastá-la-eis sem custo. De fato, não será necessário ter freqüentado nossas escolas positivistas para ser admitido a receber nossos sacramentos sociais, e mesmo para ser submetido aos nosso exames públicos, nos quais não se indagará nunca de quem provém a instrução, contanto que esta seja real e suficiente. Apenas, quando ela não dimanar do sacerdócio, nossos padres precisarão empregar mais esforços a fim de colher as informações morais que serão sempre tão indispensáveis como os julgamentos intelectuais.

Apesar dessa plena liberdade de ensino, que aliás aumentará o zelo dos professores, as escolas oficiais não serão nunca abandonadas pelos ricos, a menos que o sacerdócio degenere; porquanto eles não hão de querer que seus filhos fiquem abaixo da instrução popular, da qual entretanto não poderão proporcionar-lhes, mesmo com grandes despesas, um equivalente privado. Com efeito, o sacerdócio há de naturalmente absorver os melhores professores, que sua outras funções afastarão sempre do ensino particular, o qual aliás, como sabeis, lhes será severamente proibido. Os mestres privados recrutar-se-ão , pois, entre os homens incapazes de se tornarem padres ou mesmo vigários; de sorte que suas lições serão habitualmente desconceituadas” (11ª Conferência (Regime público); p. 374-376)



[1] A paginação refere-se à quarta edição do Catecismo positivista da Igreja Positivista do Brasil, de 1936. Para entender minimamente o contexto do livro de cada citação, indiquei a conferência (ou seja, o capítulo) de que a citação foi extraída e também o título (ou seja, o tema) de cada conferência.

[2] Nota de Miguel Lemos (p. 482):

“Refere-se a S. Francisco de Assis (1182-1226).

É oportuno observar aqui que a lei religiosa que obriga o sacerdote positivista a desistir de toda herança só será aplicável rigorosamente no estado normal, ou quando o subsídio positivista garantir plenamente a existência material do novo clero. V. sobre esse assunto o trecho da carta de Augusto Comte ao Dr. Foley, reproduzido por nós em nossa Décima Circular Anual (1890), segundo a cópia que nos foi fornecida pelo Sr. R. Congreve. V. também a nota correspondente a esta em nossa edição francesa deste Catecismo”.

Tradução da nota de Miguel Lemos à edição francesa do Catecismo, publicada pela IPB (1891, 2ª ed. 1957; p. 478):

“Augusto Comte fala de São Francisco de Assis (1182-1226). É útil notar aqui que a lei religiosa que obriga os padres a renunciar a toda herança não será aplicável senão no estado normal ou quando o subsídio positivista garantir suficientemente sua existência material. É isso que ensinava Augusto Comte, como se vê no extrato seguinte de uma carta, ainda inédita, que ele endereçou ao Dr. Foley em 17 de Shakespeare de 67 (26 de setembro de 1855): ‘No caso de uma triste eventualidade que vós evitareis, espero, devo aqui prevenir a generosidade demasiadamente irrefletida para a qual vós parecestes-me tender algumas vezes a respeito da herança, sobre o que se poderia impelir-vos mal nesse sentido. Em primeiro lugar, o compromisso normal por essa renúncia não se realiza senão ao receber a ordenação sacerdotal, de que vós estais ainda distante, por mais firme que seja minha segurança de que a obtereis. Sobretudo, é necessário considerar que essa regra é própria ao estado normal e não poderia convir à transição senão quando o subsídio positivista garantir plenamente a existência dos teóricos; de sorte que aceitarei eu mesmo minha parte da herança paterna, por maior que ela jamais fosse’”.