Mostrando postagens com marcador Representação. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Representação. Mostrar todas as postagens

12 agosto 2015

Teoria política: governo antes do "parlamento"

Afirma-se habitualmente que, como a Presidência da República no Brasil tem a iniciativa da maioria das leis que são aprovadas e tem exclusividade na iniciativa de inúmeras questões (como administração pública e orçamento), o Presidente estaria "usurpando" as prerrogativas do parlamento.

Essa visão parece-me profundamente errada, ingênua e romântica. Ela parte do princípio de que caberia ao parlamento "fazer as leis" e ao governo, "executar as leis". O problema é que o governo não é um "executor de leis": a função do governo é... governar. E, precisamente na medida em que tem que e que efetivamente governa, é absolutamente natural, e mais do que isso, é necessário que a ele caibam prerrogativas de iniciativa legislativa.

A idéia de que o parlamento é um órgão legisferante, portanto, não faz sentido, exceto se lembrarmos que o parlamento historicamente foi um órgão de oposição ao governo - particularmente, mas de modo algum exclusivamente, às monarquias absolutas. A Inglaterra, no seu tumultuado século XVII (Cromwell e, depois, a chamada "Revolução Gloriosa"), mas também na sublevação feudal dos barões contra o rei João Sem Terra, no século XIII, é o grande exemplo disso. Na França, esses movimentos políticos dos barões foram adequadamente chamados, em meados do século XVIII, de "reação feudal".

O parlamento é o órgão de representação da população, seja da pluralidade da sociedade civil - no caso da Câmara dos Deputados, no Brasil -, seja das relações federativas - no caso do Senado Federal, no Brasil. O exame que ele realiza das propostas legislativas provenientes do chamado "poder Executivo" corresponde ao correto princípio ampliado que os estadunidenses puseram em prática no século XVIII: "no taxation without representation" ("nenhuma taxação sem representação"). Esse princípio pode e deve ser ampliado para "no legislation without representation" ("nenhuma legislação sem representação").

Todavia, é necessário notar que a "representação", embora evidentemente tenha no parlamento um de seus órgãos e mecanismos mais importantes, de maneira alguma esgota-se no parlamento: a própria "sociedade civil" pode e deve representar-se a si mesma. Esgotar a "representação" no parlamento não apenas não faz sentido como, aí sim, trata-se de uma "usurpação".

A teoria política exposta acima tem uma origem ao mesmo tempo histórica e sociológica e afasta-se do juridicismo de origem tardo-feudal que atribui a primazia ao parlamento em detrimento do governo. Adicionalmente, pode-se dizer que essa teoria prevê a idéia de "freios e contrapesos" ("checks and balances").

A teoria acima parte do governo e não da "representação"; todavia, essa teoria não nega nem camufla a necessidade de representação, ao passo que a teoria que dá primazia ao parlamento esconde e até nega a necessidade do governo. Por fim, deve-se notar que, nos termos contemporâneos - que são definidos indevidamente pelas categorias da primazia do parlamento -, esta teoria seria "presidencialista"; mas, seguindo a nossa proposta, é o parlamentarismo que não apenas camufla a existência do governo em nome da "representação", como também potencialmente cria tiranias (afinal, o governo pode ser todo-poderoso, ao originar-se do parlamento) e impede a existência dos "freios e contrapesos" (ao misturar e camuflar governo e "representação").

Não deixa de ser notável a quantidade de cientistas políticos que, mesmo afirmando a necessidade de deixar-se de lado o juridicismo próprio às teorias tardo-feudais e modernas, aceitam as formulações próprias às reações feudais dos séculos XVII e XVIII e que rejeitam as teorias mais claras, mais históricas e, acima de tudo, mais sociológicas, que partem da existência e da necessidade do governo. Em outras palavras, é notável a quantidade de cientistas políticos que aderem ao parlamentarismo, em vez de buscarem aperfeiçoar o "presidencialismo".

29 outubro 2011

Produtividade parlamentar e legitimidade política

Artigo publicado em 28.10.2011, na Gazeta do Povo (Curitiba); disponível aqui:

* * *

Sábado, 29/10/2011
OPINIÃO DO DIA 2

Produtividade parlamentar e legitimidade política

Gustavo Biscaia de Lacerda
Publicado em 28/10/2011
É no controle dos atos do governo que os par­­lamentos assumem sua grande relevância. A fiscalização do dia a dia governativo garante a lisura político-administrativa ou, pelo menos, diminui os casos de desvio
Para que servem os parlamentos? Essa pergunta pressupõe uma série de considerações e suas respostas, embora não necessariamente simples, tem as mais diferentes consequências. Além disso, ela se refere a concepções difusas e arraigadas, por vezes contraditórias; assim, não é uma discussão fácil nem simples; ao mobilizar paixões, pode rapidamente se degenerar.
Em todo caso, podemos tentar uma resposta indicando três ou quatro funções para os parlamentos, percebidas como “clássicas” pela teoria política: 1) fonte de legitimidade política; 2) contrapeso político e institucional aos outros poderes; 3) fiscalização dos atos públicos; 4) elaboração de leis.
As duas primeiras estabelecem, em linhas gerais, que os parlamentos representam “o povo” por meio da eleição (direta ou não) e, daí, têm legitimidade para governar. A partir dessa origem, os parlamentos podem (ou devem, dependendo de quem fala) atuar como um contrapeso aos demais poderes, em particular ao chamado “Poder Executivo”, isso é, ao governo, a fim de evitar os abusos do poder. O parlamento como fonte da legitimidade política sugere a sua supremacia sobre os demais: é a ideia de Locke; o parlamento como contrapeso aos outros sugere a equivalência mútua, atuando em oposição ou em complementaridade uns com os outros: é o que propuseram Montesquieu e os “federalistas” dos EUA (Hamilton, Harrison e Jay).
Em todo caso, todos reconhecem que o parlamento não é o governo: o governante possui uma instituição diferente, com poderes específicos – limitados, sem dúvida, mas é a ele que compete a iniciativa política e administrativa. Nesse sentido, afirmar o parlamento serve mais para limitar os poderes do governo que para constituir um órgão de mando.
Ora, desse modo, é no controle dos atos do governo que os parlamentos assumem sua grande relevância. A fiscalização do dia a dia governativo garante a lisura político-administrativa ou, pelo menos, diminui os casos de desvio. Em particular, como afirmava Augusto Comte, o grande instrumento de controle sobre o governo é a votação do orçamento, com o exame dos gastos passados e a discussão dos gastos futuros.
Todavia, os parlamentares têm de ser eleitos e para isso têm de se mostrar visíveis e supostamente representativos de demandas locais e particulares. A fiscalização do governo, especialmente a orçamentária, é um assunto técnico, enfadonho e de gabinete: quase que por definição não gera visibilidade; da mesma forma, os debates orçamentários – em que as perspectivas sociais são confrontadas, afirmadas e/ou negadas – são mais ou menos breves, durando poucos meses a cada ano.
A produção de leis acaba se tornando o instrumento prático de visibilidade parlamentar. Como a quantidade de parlamentares é sempre grande e suas decisões, de modo geral, podem ser vetadas pelo governo, qualquer parlamentar pode propor leis e projetos inócuos sabendo que sua eventual derrota pode ser atribuída a “interesses ocultos” ou à mesquinhez dos governantes. Como não há critérios objetivos para se aferir a legitimidade de um parlamentar e justificar os custos financeiros com o parlamento, a proposição de leis é um dos principais parâmetros para avaliar-se a “representatividade” parlamentar, por mais inócuas, paroquiais, tolas que sejam essas propostas. E, como se sabe, isso ocorre nos três níveis (federal, estadual e municipal), piorando de cima para baixo.
Pode-se afirmar que esse é o jogo democrático e esse é o custo da democracia. Todavia, essa ideia equivale a dizer que a democracia autoriza a leviandade – o que é o oposto de qualquer conceito digno de “cidadania”. Deixando de lado o custo financeiro – que os escândalos de corrupção nos últimos anos têm tornado cada vez maiores –, o fato é que esse jogo da “produtividade parlamentar” é autodestrutivo, pois mina a legitimidade política.
Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR. E-mailgblacerda@ufpr.br