12 junho 2017

"Teoria do Brasil" dos positivistas: composição étnica e unidade nacional

A revista Política & Sociedade - da Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - acabou de publicar, em seu número mais recente (v. 16, n. 35, jan.-abr.2017) um artigo de minha autoria, intitulado "A “Teoria do Brasil” dos Positivistas Ortodoxos Brasileiros: composição étnica e independência nacional".

O texto pode ser obtido aqui.

Eis o resumo e as palavras-chave do artigo:

Resumo: Podemos definir como “teoria do Brasil” o conjunto de concepções que um autor ou um grupo político-intelectual possui a respeito da história e da estrutura da sociedade e do Estado brasileiros, bem como de suas relações mútuas; essas concepções costumam ser incluídas no “pensamento político e social brasileiro”. Nesse sentido, os positivistas ortodoxos brasileiros – ou seja, aqueles ligados à Igreja Positivista do Brasil, especialmente Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes – tinham a sua “teoria do Brasil”. Embora haja estudos sobre alguns aspectos do pensamento e da prática dos positivistas (como a respeito da escravidão), há uma importante lacuna na literatura a respeito da sua “teoria do Brasil”. Dessa forma, o presente artigo pretende abordar precisamente essa questão, tratando de modo específico (1) da formação étnica brasileira e (2) das condições sociais e políticas brasileiras que conduziram à Independência nacional, em 1822; para isso, serão analisados alguns documentos escritos por Teixeira Mendes. Preliminarmente serão expostos alguns elementos da doutrina positivista, conforme definida por Augusto Comte; já nas conclusões são expostas algumas considerações sobre a importância política e intelectual dos positivistas no Brasil e na área acadêmica do “pensamento político brasileiro”.

Palavras-chave: Positivistas ortodoxos. Teoria do Brasil. Evolução sócio-política. Formação étnica. Independência do Brasil. Raimundo Teixeira Mendes. 

Luís Antônio Cunha: Laicidade do Império à I República

Luís Antônio Cunha, fundador e pesquisador do Observatório da Laicidade na Educação (OLÉ), publicou recentemente o livro A educação brasileira na primeira onda laica: do Império à República. O livro está disponível em versão eletrônica gratuita aqui.

Com mais de 530 páginas, é uma obra de fôlego, essencial para quem quer entender a laicidade, a história da laicidade e mesmo partes importantes da história do Brasil.

08 junho 2017

Um elogio à política, a partir de "O discurso do rei"

Um elogio à política,
ou reflexões didáticas a partir de O discurso do rei

Gustavo Biscaia de Lacerda

O filme O discurso do rei (2010) é um grande filme; a história é bem contada e os atores têm grandes desempenhos. Sem ser uma história muito densa, ela entra na categoria de “drama político” ou até “drama histórico”, em que as dificuldades pessoais de um herdeiro do trono inglês são mostradas como um problema, eventualmente um obstáculo, à sua atuação política; assim, a solução do drama pessoal é condição para solução (ou encaminhamento) do drama político. Mais uma vez: isso rende uma excelente história, que é muito bem contada; não foi à toa que ganhou os prêmios Oscar de melhores filme, direção e ator, entre outros, em 2011.

Há diversos aspectos políticos e sociológicos que valem a pena ser destacados a respeito do filme. Esses aspectos são bastante evidentes na história, compõem o seu pano de fundo e também a sua moldura e, portanto, integram o rol de elementos que tornam o filme tão interessante – aliás, interessante e instrutivo.

Sem procurar esgotar as possibilidades teóricas e históricas, vejamos alguns desses aspectos. Procurarei apresentar esses elementos com alguns exemplos, às vezes tirados da história da Inglaterra, às vezes da França, às vezes do Brasil; ainda assim, evitarei ao máximo referir-me aos problemas brasileiros atuais – não porque as reflexões abaixo não podem ser aplicadas ao nosso país (elas podem, sim!), mas para evitar a dispersão mental e polarizações político-intelectuais a respeito de um escrito que é para ser, antes de mais nada, didático. (Aliás, por esse mesmo motivo, não incluirei nenhuma nota de rodapé e reduzirei ao máximo as referências eruditas e a pensadores.)

  1. O respeito aos governantes como elemento integrante da vida política.

Antes de mais nada, é importante notar que sou republicano e que abomino as monarquias existentes neste século XXI; aliás, desde a Revolução Francesa (1789-1799) as monarquias já são relíquias históricas, a despeito de suas sobrevivências mundo afora e dos discursos laudatórios a seu favor. No caso da monarquia inglesa, ela sofreu uma importante solução de continuidade no século XVII, após a Guerra Civil, durante o Protetorado e o Commonwealth de Oliver Cromwell; além disso, até meados do século XVIII, a monarquia inglesa apresentou inúmeras mudanças dinásticas, com golpes orquestrados pela nobreza local e líderes escoceses, franceses, neerlandeses (“holandeses”) e até alemães assumindo o trono.

Dito isso, a noção de respeito aos governantes perpassa todo o filme. Evidentemente, como se trata de uma história centrada no relacionamento entre o Duque de Iorque (futuro Jorge VI) e o fonoaudiólogo Lionel Logue e a importância atribuída ao sucesso do tratamento do herdeiro, não se vê no filme outros atores políticos relevantes além do irmão mais velho do Duque, o futuro Eduardo VIII, bem como alguns primeiros-ministros, Winston Churchill e o arcebispo de Cantuária em papéis secundários. Dito de outra forma, não há verdadeiramente conflitos políticos no filme: não se vê situação e oposição, não se vê os trabalhadores etc. Ainda assim, está subjacente o respeito às tradições e aos governantes; na verdade, em alguns momentos do filme, esse respeito é tornado explícito, como quando o Duque de Iorque afirma que Logue está sugerindo traição.

Na Inglaterra, a monarquia é vista como esteio moral, social e político do país, precisamente por ser uma instituição antiga e tradicional; ela é vista como integrando a identidade do país. A função da monarquia, portanto, é simbólica, não “prática”. Nesses termos, poder-se-ia argumentar que é muito mais fácil respeitar os governantes em monarquias que em repúblicas e que, por outro lado, o que se chama de “política democrática” incentiva precisamente o desrespeito aos governantes.

Até certo ponto isso é verdade; instituições tradicionais, pelo mero fato de sua longevidade, inspiram um respeito “primordial”; da mesma forma, as disputas políticas das democracias estimulam as críticas sistemáticas aos governantes. Mas no caso inglês, o respeito à monarquia deve-se a outros dois aspectos: por um lado, o fato de que o rei (ou rainha) reina mas não governa, ou seja, como já indicamos, o fato de que a monarquia cumpre funções puramente simbólicas: a monarquia em si está afastada, e cada vez mais afastada, da vida política; as notícias mais importantes a seu respeito cabem cada vez mais nas páginas das chamadas “colunas sociais”, isto é, nas páginas de fofocas. Por outro lado, como é expressamente dito em um momento de conflito no filme, a legitimidade da monarquia reside, em última análise, na concepção do direito divino dos reis, que consiste em que os reis governariam por serem emissários dos deuses na Terra – algo feliz e evidentemente fora de propósito nos dias atuais.

Todavia, na república romana – e mesmo no império romano –, dizia-se com freqüência que só pode governar quem soube antes obedecer; em outras palavras, a obediência dos governados integra suas obrigações e permite aos governantes entender os ônus da própria obediência e as responsabilidades vinculadas ao mando, ao exercício do governo, da parte dos governantes. Uma outra forma de entender essa regra romana é que os governados não podem estimular a anarquia; o escrutínio público a que o governo deve ser continuamente submetido não pode equivaler a desprezar sem mais os governantes e, de modo mais direto, não pode equivaler a desrespeitar as instituições governativas. Nesse sentido, observava Pierre Laffitte, no final do século XIX, que uma das obrigações políticas básicas de qualquer cidadão – e, note-se: estamos tratando aí da cidadania, isto é, da participação ativa nos assuntos públicos e coletivos – é justamente respeitar os governantes.

Nesse aspecto, a idéia de democracia como “governo do povo” simplesmente não ajuda muito, na medida em que permite e mesmo estimula concepções como a de que o “povo” governará diretamente a sociedade, o que equivale a dizer que não haverá governo e que qualquer indivíduo, independentemente de sua formação, de sua experiência, de suas reflexões, é capaz de fazer quaisquer críticas que quiser, no tom e na forma que quiser, aos governantes. Nesse caso, a idéia de “república” – como conjunto de instituições e também de práticas voltadas para o bem comum – é muito superior à de “democracia”.

  1. O papel da noção dever na condução da vida.

Ao longo do filme, em diversos momentos o Duque de Iorque observa que suas ações vão no sentido de ajudar ao máximo o reinado de seu irmão mais velho, o rei Eduardo VIII, mesmo apesar da futilidade desse rei, em especial ao descuidar dos assuntos públicos em benefício de uma tola aventura amorosa. O respeito do Duque de Iorque às suas próprias obrigações fica evidente quando ele chama de “traição” a sugestão feita pelo fonoaudiólogo Logue no sentido de que o próprio Duque poderia, em breve, assumir o trono inglês.

O respeito escrupuloso às obrigações pauta-se em uma certa concepção de honra e, de maneira vinculada, à noção de dever. Se deixarmos as ilhas britânicas e passarmos ao arquipélago japonês, é fácil lembrarmos quantos filmes ambientados no Japão feudal tratam de honra: basta pensarmos no um tanto fabuloso 47 ronins (de 2013) e no mais estereotipado O último samurai (de 2003).

A “honra” que aparece nesses filmes é uma virtude ao mesmo tempo militar e pessoal; refere-se por um lado ao respeito que cada um deve às inúmeras obrigações sociais e, por outro lado, à reputação de cada qual. Os valores sociais são internalizados e orientam a conduta dos indivíduos; o desrespeito às regras coletivas é punido e a punição é aceita como correta e necessária pelos punidos. Não há dúvida nenhuma de que uma parte importante do apelo desses filmes do Japão feudal deve-se, precisamente, ao respeito prestado por indivíduos de personalidades fortíssimas às regras sociais, chegando ao limite da auto-imolação. Sem pretender chegar ao ponto do suicídio, o público que assiste a esses filmes com freqüência fica mais que impressionado com essas demonstrações de força de vontade; na verdade, o público reconhece um valor moral em tão possante obediência às regras. Mais que leis externas, a obediência interna impressiona e é valorizada: os deveres, de caráter social, são poderosos.

A dificuldade está no caráter marcial dessa noção de honra. Nos filmes ambientados no Japão feudal, a ordem social é imutável (47 ronins); quando não é mais imutável (O último samurai), a mudança é vista como algo ruim, como necessariamente decadência. Não apenas a ordem social é sacrossanta, como ela é profundamente militarista: como fica evidente de maneira caricata em O último samurai, enquanto o militarismo é visto como virtuoso, a indústria é vista como corrupta e corruptora. Ora, por definição a riqueza e o bem-estar são possíveis apenas com o trabalho, a indústria e o comércio; a guerra produz apenas destruição e dominação. Nesses filmes, a “honra” tem que ser, sempre, recuperada apenas por meio dos conflitos militares. Se sairmos do Japão feudal e voltarmos à Europa, é fácil reconhecermos essa mesma “honra” em ação nos duelos: os duelos eram uma forma privada, militar e feudal de resolver as disputas, entendidas sempre como “honra” ofendida. Não por acaso, no início do século XX a Alemanha militarista caracterizava-se pela prática ritual dos duelos. (Em contraposição, pelo menos desde o século XVII a França envidou sérios esforços para coibir, quando não proibir, os duelos.)

Retornando a O discurso do rei: o respeito do Duque de Iorque às suas obrigações não tem esse caráter militarista e feudal da honra, a despeito de a monarquia inglesa ser propriamente feudal. Como indicamos antes, esse respeito vincula-se muito mais à noção de dever, constituindo-se em obrigações auto-impostas e seguidas com bastante escrúpulo.

É interessante notar que esses deveres são assumidos com liberdade; embora o Duque de Iorque em diversos momentos lamente não poder escolher suas ações – ou seja, lamente não ter liberdade –, nem por isso ele deixa de respeitar suas obrigações. Sua própria vida e a comparação com a vida do irmão realçam esses aspectos: o Duque de Iorque era canhoto, tinha as pernas tortas e era maltratado por uma das babás; agüentou os mal-tratos, foi obrigado a tornar-se destro e a usar doloridos aparelhos corretivos nas pernas; aliás, sendo gago, enfrentava dificuldades quase intransponíveis no início para ler discursos: apesar disso tudo, aceitou suas responsabilidades, persistiu em suas metas, superou suas dificuldades. Seu irmão mais velho livremente escolheu renunciar ao trono para consumar sua aventura amorosa; após isso, o Duque de Iorque livremente aceitou coroar-se.

É certo que se pode argumentar que as obrigações assumidas pelo Duque do Iorque eram próprias à sociedade inglesa, ao ambiente real e ao início do século XX; nesse sentido, o quadro de deveres a serem assumidos pelo futuro Jorge VI estava estruturado com clareza e sua aceitação era mais ou menos “automática” e obrigatória. Todas essas afirmações são verdadeiras; a conseqüência desse fato é que pode parecer um pouco estranho, mesmo um pouco anacrônico, defender a validade dos deveres no início do século XXI, na sociedade civil do Brasil. Ainda assim, parece-me que o fascínio causado pelo respeito aos deveres em O discurso do rei e mesmo nos filmes sobre o Japão feudal vai além da mera admiração pelo exótico e fundamenta-se no reconhecimento de uma realidade humana mais profunda.

Desde o final da II Guerra Mundial o Ocidente passa cada vez mais por “liberações” e “revoluções” nos comportamentos; os movimentos Beat, Hippie, feminista e outros são ilustrações e agentes dessas mudanças. De modo geral, essas alterações consistiram em criticar e, de modo geral, rejeitar os padrões anteriores de comportamento: a expressão “conflito de gerações” era bastante literal e descritiva até há alguns anos. Ora, a crítica aos comportamentos, as “liberações” referiam-se aos padrões, aos hábitos e aos costumes anteriores: nesse caso, os “direitos” ganham espaço, na medida em que a noção dos direitos é basicamente destrutiva; por outro lado, os deveres perdem espaço, na medida em que eles pressupõem valores socialmente compartilhados, não apenas entre indivíduos da mesma geração, mas também de gerações distintas. Nesse sentido, é notável como o “politicamente correto” é uma tentativa bastante acadêmica, de caráter multiculturalista, de tentar converter essas “liberações” (que consistem na ausência de padrões) em novos padrões de relacionamento; em outras palavras, o “politicamente correto” é um esforço (malogrado) para tentar constituir deveres a partir de uma ética radicalmente contrária aos deveres.

A dificuldade em aceitar contemporaneamente os deveres reside, então, em aceitar livremente uma restrição no próprio comportamento em benefício dos demais. O problema está (1) na restrição e (2) no benefício aos demais. Os dois impedimentos consistem na consagração da individualidade, do individualismo, e ambos entendem a liberdade de maneira antissocial e anárquica. A liberdade, nesses termos, não é entendida como passível de fundar uma “ordem” social, pois seria contrária a qualquer ordem; a ação individual, de maneira correlata, é sempre entendida como impassível de ser orientada para os demais, pois essa orientação altruísta é entendida como negadora, como limitadora da própria individualidade. Assim, a rejeição contemporânea aos deveres baseia-se em concepções simplistas e extremas da vida social e dos próprios indivíduos.

Ora, os deveres são parte integrante da sociedade: é necessário, é imperativo que os indivíduos internalizem os valores coletivos, que compartilhem os valores, e que, com base nisso, ajam uns em benefício dos demais. A ação individual em benefício dos demais não impede nem evita o benefício individual; o que ocorre é que a ação individual pode ser orientada para melhorar as condições dos demais, para piorá-las; para satisfazer única e exclusivamente as próprias necessidades ou para satisfazer tanto as próprias necessidades quanto as alheias. Como Augusto Comte indicou faz mais de 150 anos, a harmonia social – e mesmo o progresso – é impossível tendo como base apenas a satisfação egoísta; ao contrário, a orientação altruísta dos egoísmos permite a coordenação das diversas atividades sociais.

Assim, os deveres permitem também a regulação de cada um dos indivíduos, permitindo a harmonia pessoal e evitando o isolamento individualista. Até o início do século XX entendia-se por “disciplina” a regulação das diversas forças disponíveis; a “autoridade” era a figura a ser respeitada e seguida. Não deixa de ser significativa o fato de que a disciplina signifique atualmente militarismo e/ou vigilância, assim como a autoridade seja sempre entendida como autoritarismo: nesses termos, a ordem é sempre entendida como despotismo, a liberdade é sempre anárquica e os deveres tornam-se impossíveis – o que está bem longe de ser o melhor projeto político-social.

  1. A importância da qualidade da liderança política.

O contraste entre os dois irmãos, os sucessivos reis Eduardo VIII e Jorge VI, ressalta um aspecto importante na vida política de qualquer lugar: a importância da qualidade da liderança política. É claro que no filme o comportamento de Eduardo VIII é um tanto caricato e, de qualquer maneira, o seu comportamento objetivo foi bastante insensato, de um romantismo infantil e mesmo idiota. Da mesma forma, é necessário termos clareza de que as lideranças políticas podem ter diferentes qualidades e que mesmo essas qualidades podem ser necessárias em diferentes doses ao longo do tempo: às vezes é necessária maior moderação, às vezes é necessária maior energia etc.

Isso já nos permite duas ordens de reflexões. Em primeiro lugar, há personalidades que não possuem a menor qualificação para ocuparem cargos públicos. Esse, aliás, é um dos grandes problemas práticos ligados às monarquias: se, por um lado, os problemas conexos da sucessão entre os governantes e da continuidade administrativa estão mais ou menos resolvidos previamente, por outro lado os líderes são “escolhidos” apenas porque tiveram a sorte, ou o azar, de nascerem em determinada família. Esse sério problema anda em conjunto com a concepção estamental da sociedade – em que as ocupações dos indivíduos são dadas pelo berço e não pelas qualificações e pelos interesses individuais – e com a legitimação sobrenatural do Estado – em que o governante governa por ordem divina e não como um servidor da sociedade –; o resultado é que as monarquias não são aceitáveis em sociedades livres e racionais.

Em segundo lugar, vale a pena insistirmos na idéia de que diferentes indivíduos possuem diferentes qualidades, que são requeridas em diferentes situações. Isso quer dizer que um político pode desenvolver uma atuação fundamental em um determinado momento, mas que em uma outra conjuntura suas habilidades já não serão úteis ou mesmo acabarão atrapalhando. Há situações que exigem determinadas qualidades para serem enfrentadas, mas nas quais não se apresentam líderes capazes de lidar com eles, isto é, não se apresentam políticos com as habilidades requeridas pelo momento.

É claro que, mesmo quando adequados ao momento, isto é, quando ocupam o poder e possuem as qualidades necessárias para lidar com os problemas que enfrentam, muitas vezes os líderes políticos podem ter idéias parciais sobre como lidar com os problemas e mesmo as soluções que implementarem podem ter implementadas de maneira parcial ou simplesmente não serem as soluções ideais. Isso tudo lembra-nos de que a política é um processo, ou seja, de que ela desenvolve-se ao longo do tempo; soluções parciais de hoje podem ser completadas amanhã; soluções parciais de hoje podem modificar as condições sociais de tal maneira que amanhã tenhamos outras dificuldades, completamente diferentes, para serem enfrentadas; problemas a serem enfrentados hoje podem tornar-se completamente irrelevantes amanhã.

Um exemplo histórico brasileiro. Em 1822, o Brasil enfrentava um sério dilema: após ser explorado economicamente e dominado politicamente ao longo do século XVIII, mesmo a despeito de várias revoltas (como a da Inconfidência Mineira), após a vinda da família real para o país em 1808 as coisas mudaram, para melhor; a antiga colônia subira de status para “reino unido” e a sua infra-estrutura econômica, política, cultural e educacional estava sendo desenvolvida com rapidez. Mas em 1821 o rei português voltou à Europa e eram grandes as chances de os avanços obtidos nos anos anteriores serem todos revertidos, com o Brasil voltando à posição de colônia. O governo do país estava entregue ao príncipe regente, um rapaz de boa vontade mas estouvado, mais preocupado com diversões e casos amorosos que com questões políticas. Nesse momento, surge José Bonifácio, um cientista brasileiro de renome internacional, que, começando uma atividade política como deputado provincial em São Paulo, em pouco tempo tornou-se conselheiro do príncipe regente. Nessa condição, José Bonifácio conseguiu que a independência nacional fosse feita pelo próprio herdeiro do trono – evitando, assim, um conflito armado que seria danoso tanto para o Brasil quanto para Portugal. Além disso, é interessante notar que José Bonifácio era a favor da república e contra a escravidão; mas, ao mesmo tempo, ele entendia ser importante manter a unidade nacional: a república permitiria um fim rápido na escravidão, mas daria azo à fragmentação política; já a monarquia manteria a unidade mas também a escravidão. Face a essas opções, José Bonifácio optou pela segunda melhor, mas que respondia mais prontamente às dificuldades do momento: a monarquia permitiria a independência nacional com integridade territorial e ainda aceitaria a escravidão (que, como se sabe, perdurou até o final do regime dinástico no país).

Um aspecto que ficou subentendido nos comentários acima é o relativo ao “conjunto da sociedade”. Como nos referimos aqui aos líderes políticos, aos indivíduos, pode parecer que eles agem no vácuo, no vazio, mas isso não ocorre; aliás, como são líderes políticos, por definição eles não agem no vácuo. Os líderes só podem liderar se agirem em meio aos vários grupos sociais que, por sua vez, podem facilitar ou dificultar as várias ações sociais. É certo que por vezes os líderes assumem posições proeminentes devido a atuações mais isoladas – foi o caso de Churchill, na Inglaterra –, mas de modo geral os líderes políticos destacam-se em grupos sociais específicos e é como líderes de tais grupos que ascendem ao poder (Um dos principais grupos que permite o acesso ao poder – mas, claro, não o único grupo que o permite – é o partido político.) A ascensão é apoiada ou recusada por outros grupos e outros políticos – e é essa dinâmica que constitui o dia-a-dia da política.

Procuramos insistir até agora nas qualidades dos políticos, isto é, nas suas boas qualidades, mas algumas palavras devem ser ditas sobre as más qualidades, ou seja, sobre os seus defeitos – dois, em particular. Observamos acima que um líder costuma surgir como representante de um grupo específico: ora, ao passar do grupo específico para um cargo de direção, esse líder não deixa de lado seus valores e preocupações anteriores, mas deve ampliá-los, considerando que trata de interesses de toda a sociedade e não mais grupos particulares. Uma frase do francês François Mitterrand ilustra maravilhosamente bem o ponto: eleito Presidente da França por uma coligação entre socialistas e comunistas em 1981, perguntaram-lhe se ele governaria para esses grupos; Mitterrand respondeu que era Presidente dos franceses, isto é, de todos os franceses e não apenas dos socialistas e dos comunistas.

Ora, não é incomum líderes políticos fazerem a transição de cargos ou de funções mas não fazerem a transição de perspectivas, assumindo posições de poder mas mantendo idéias e posturas particularistas. O resultado disso costuma ser desastroso, geralmente com a divisão da sociedade em grupos rivais gradativamente inconciliáveis – o que, em última análise, pode resultar em guerra civil.

O segundo defeito que queremos comentar é o da demagogia. Um dos principais traços dos políticos é sua capacidade retórica; de modo geral, um bom político é um bom orador (embora nem sempre). No filme O discurso do rei, o papel central da retórica fica bastante evidente – mas também fica evidente a crítica aos políticos e aos líderes que são apenas oradores, como no momento em que o rei Jorge V reclama ao Duque de Iorque que o rádio transformou o rei em um mero ator. Assim como indicamos vários e sérios defeitos da monarquia, é importante indicar que a república (mas a monarquia também!) pode ficar sujeita a demagogos, a puros retóricos, a políticos que se destacam por suas habilidades com as palavras mas que são somente faladores habilidosos, sem força de caráter, sem idéias gerais, sem preocupações com o bem comum etc. Nesse sentido, talvez uma das piores combinações é aquela em que um mero orador é fraco de caráter e/ou só entende a política em termos de divisões sociais.

  1. A importância da fala e dos discursos para a vida política.

O tema central do filme é o problema da fala do Duque de Iorque, futuro rei Jorge VI; esse problema é especificamente grave porque, mesmo sem desejar, ele ocupa uma posição social de destaque, podendo ocupar o trono (o que de fato ocorre). Assim, no filme a dificuldade da fala é acima de tudo uma dificuldade política.

No início do filme o idoso rei Jorge V observa, em tom de reclamação, que “até há pouco tempo” (ou seja, até o início do século XX) não fazia muita diferença se um líder não era ouvido pelas massas; conversas mais reservadas eram o comum da política. Mas com a invenção e a difusão do rádio, a palavra falada disseminou-se e tornou-se um elemento central na vida política dos povos. Em sentido semelhante, podemos também notar que até a década de 1950 – quando surgiu a televisão – a aparência física dos políticos também não tinha tanta relevância.

Essas constatações históricas são importantíssimas e realçam um traço da nossa vida contemporânea. Mas o filme também evidencia um outro aspecto, mais amplo e que merece ser comentado: a importância da palavra em geral, dos discursos, para a realização prática da política e para a vida em sociedade. Há pelo menos duas ocasiões em que isso se evidencia, ambas no final do filme: (1) ao ensaiar para o discurso que conclamará a Inglaterra (e, de modo mais amplo, o Império Britânico) para a II Guerra Mundial, Jorge VI reclama que, apesar de ser nominalmente rei, ele não tem poder nenhum: não institui nenhuma lei, não contrata nem demite ninguém, não forma gabinetes etc.; em suma, ele reina mas não governa. A despeito disso tudo, seu papel é o de representar, incorporar a nação – e de ser a sua voz, o que é um trágico problema para ele pessoalmente e para a nação em geral. (2) Em seguida, durante a leitura do discurso, a população inglesa está parada, ouvindo ao redor dos aparelhos de rádio e das torres de difusão: vê-se aí que a própria nação, ou pelo menos a sua unidade, é constituída por meio do discurso.

Vivemos em um mundo caracterizado pela internet; isso, como se sabe, significa muito mais que apenas uma tecnologia largamente utilizada; aliás, assim como nos casos anteriores do rádio e da televisão, a internet modificou profundamente as formas como as sociedades e os indivíduos relacionam-se e, a partir daí, como a política é entendida e praticada. Todavia, no caso específico da internet, há características todas particulares que a distinguem das demais tecnologias de telecomunicações (ou, talvez, que aprofundam bastante algumas tendências sugeridas ou já existentes nas tecnologias anteriores). Deixemos de lado a instantaneidade das informações, pois isso já ocorria desde o rádio: o ponto central aqui é a possibilidade de cada indivíduo ser produtor das próprias mensagens, a todo instante; essa é a diferença que faz absolutamente toda a diferença.

Com o rádio e a televisão, o comum das pessoas era apenas consumidor das mensagens; já houve inúmeros e acerbos debates sobre se esse consumo seria ativo ou passivo, isto é, se as pessoas mais ou menos entenderiam do jeito que quisessem as mensagens ou se as mensagens seriam recebidas prontas e acabadas pelas pessoas. Esse é um debate interessante e importante, mas o fato é que, com a internet e a respeito da internet, essa discussão torna-se um pouco obsoleta, na medida em que com a internet todos podem reagir às mensagens alheias, modificá-las, transmiti-las, aumentá-las, deturpá-las, corrigi-las etc.

É indiscutível que isso representa um passo importante na chamada "democratização do conhecimento", assim como facilita as trocas de informações e de idéias. Contudo, ao mesmo tempo, o imediatismo da produção das mensagens e das respostas virtualmente reduziu a zero o tempo de assimilação e reflexão sobre as mensagens: em outras palavras, as pessoas escrevem o que simplesmente lhes vem à cabeça e reagem imediatamente. Da mesma forma, embora corresponda a um avanço importante a possibilidade de todos expressarem-se a respeito do que lhes interessa – sejam os interesses particulares (como as músicas de que gosta ou desgosta), sejam os interesses públicos (no caso da política) –, essa expressão desimpedida e imediata recusa filtros de inteligibilidade, ou pelo menos reduz suas possibilidades de atuação. O que entendemos por "filtros de inteligibilidade"? Os indivíduos responsáveis pela elaboração de idéias, de valores e de concepções sobre o mundo, que de modo geral também são conhecidos por "intelectuais" e que em outras épocas eram sacerdotes. É certo que estou entendendo aqui que os "filtros de inteligibilidade" teriam o papel de elaborarem idéias e de, ao transmiti-las, apresentarem-nas evitando radicalismos, intolerâncias etc. Também é certo que, historicamente, à direita e à esquerda, muitos desses mesmos intelectuais foram (e são) os responsáveis pela elaboração e pela transmissão de concepções violentas, agressivas, intolerantes; não se deve pensar apenas nas formulações racistas, que são as mais simples de considerar e (com justiça) as mais facilmente criticáveis, mas temos que incluir também pensadores que se diziam (e dizem) "progressistas" e que, em nome de suas concepções de "progresso", incentiva(va)m a violência, a agressividade e por aí vai. Como em outros momentos destas reflexões, é necessário observarmos que, mesmo que haja casos contrários ao ideal que propomos, nem por isso esse ideal torna-se menos correto e menos necessário.

Enfim, a redução brutal da importância dos "filtros de inteligibilidade", dos intelectuais, tem duas conseqüências importantes para a presente discussão.

(1) Cada indivíduo que está postado em frente ao seu computador, ou ao seu tablet, ou ao seu smartphone, arroga-se capacidades intelectuais, morais, técnicas, científicas que o mais das vezes não possui, apenas porque possui os meios técnicos – o acesso à internet – para tal arrogância e porque há a concepção difusa e confusa segundo a qual a cidadania consiste em todos poderem palpitarem sobre tudo o tempo todo. O que está em questão aí é a qualidade moral, científica, técnica e mesmo política dos cidadãos, assim como a responsabilidade que todos deveriam ter ao manifestarem-se na vida política. Muitos pensadores políticos e muitos pensadores ligados à cultura (e mesmo à criação da internet) já alertaram para os sérios problemas políticos e sociais relacionados a tal tipo de comportamento. Sim, sem dúvida que a cidadania implica a participação; entretanto, para participar é necessário estar preparado para isso, além de considerar as conseqüências dos próprios atos: embora palpitar na internet possua custos financeiros baixíssimos, os resultados morais, sociais e políticos do palpitismo desenfreado não são baixos.

(2) De maneira estreitamente relacionada ao problema anterior está o caráter isolado das interações realizadas por meio da internet. A despeito da expressão "redes sociais", não há propriamente interação interpessoal e, daí, social entre os indivíduos na internet; como já se observou inúmeras vezes, o que há são indivíduos que, isolados em seus computadores, publicam mensagens e reagem a elas: o relacionamento pessoal, o tête-à-tête vai perdendo espaço. Em termos políticos, o problema com isso não é somente a perda das relações pessoais diretas, mas a perda dos limites que as interações pessoais impõem à emissão e à reação das mensagens políticas: por exemplo, é muito diferente xingar alguém que não se vê, cujo conhecimento é dado apenas por um abstrato "perfil" na internet, e xingar pessoalmente, face a face, essa mesma pessoa; a diferença em cada um dos casos está em que o tête-à-tête torna muito mais difícil esse gênero de comportamento. Ora, a assustadora facilidade com que se reage na internet tem, cada vez mais, extravasado do ambiente eletrônico para a vida real, de tal sorte que os indivíduos e os grupos tornam-se mais e mais agressivos e menos reflexivos. Um outro aspecto negativo do declínio das interações interpessoais é que a quantidade gigantesca de recursos e elementos presentes na comunicação não-verbal e mesmo variados os recursos da comunicação verbal, como as entonações, os olhares, a linguagem das mãos e do corpo etc., perdem-se na internet; essa perda empobrece a comunicação e facilita os mal-entendidos e os desentendimentos.

Vale notar que os dois pontos acima, conjugados, sugerem que a chamada "democracia digital" é, em larga medida, irrealizável: as propostas de plebiscitos, referendos e mesmo eleições realizadas diretamente dos computadores de cada um prescindem justamente do diálogo, dos debate, das interações interpessoais, além de estimular e basear-se no palpitismo.

Após essa longa e importante digressão, voltemos ao ponto que nos interessa neste momento: o valor dos discursos para a vida política. Já observamos em diversos momentos que a boa política é aquela orientada para o bem comum, para a realização da res publica; ora, para conseguir-se isso, é necessário que os vários indivíduos e grupos interajam entre si – e essa interação ocorre por meio das palavras, dos discursos. As conversas, as negociações, as discussões, os compromissos ocorrem todos por meio das palavras; como se diz popularmente no Brasil, "é conversando que a gente se entende".

O valor que podemos atribuir às palavras e aos discursos é tão grande que já houve autores que afirmaram que a "essência" da política são os discursos – e que, inversamente, quando os discursos cessam, quando as palavras calam-se, acaba-se também a política e entra-se no âmbito da violência. Em sentido um pouco próximo, alguns autores afirmaram que há ações que se realizam única e exclusivamente por meio das palavras: o juiz que declara casados os cônjuges realiza uma ação falando: nesses termos, podemos entender o meio da política como sendo o discurso.

Falamos antes que um dos defeitos que se pode identificar nos líderes políticos é a demagogia, entendida como o traço do político cujos discursos são vazios. É claro que podemos entender a demagogia de outras formas, como no caso do "populismo", isto é, da exploração política das paixões do povo; mas, para as reflexões que desenvolvemos aqui, entender a demagogia como a prática de discursos vazios é aceitável e útil.

As palavras ditas e os discursos pronunciados devem ser valorizadas. Quando, há pouco, notamos que a internet estimula o palpitismo, quisemos com isso preparar o terreno para indicar que nossa época caracteriza-se, tristemente, pelo desperdício das palavras, pela desvalorização dos discursos pronunciados. Há algumas patologias político-intelectuais ligadas às idéias de "discurso" e de "discurso político" e que se desenvolveram nas últimas décadas: por um lado, o pós-modernismo afirma que "tudo é discurso", chegando às vezes a afirmar que "não existe nada fora do discurso": com isso, a realidade concreta, aquela a que a política faz referência e sobre a qual produz seus efeitos, é negada e obscurecida; a vida, suas dificuldades e suas belezas são reduzidas a meros jogos de palavras. Por outro lado, o "politicamente correto" estipula censuras sistemáticas sobre as palavras e os discursos políticos, ou melhor, sobre quaisquer palavras e discursos, em nome da defesa da sensibilidade de minorias que se entendem como essencialmente frágeis e particularistas.

Essas duas patologias deturpam e prejudicam o entendimento do discurso político. Em contraposição a tais patologias, bem como em contraposição às palavras vazias e inflacionadas, à verborragia que caracteriza o demagogo, assistimos no filme a um belo e emocionante discurso, apresentado em sua inteireza como clímax e conclusão da trama: é o pronunciamento de Jorge VI no final de setembro de 1939, conclamando a união nacional da Inglaterra, alertando o povo sobre os terríveis sofrimentos e sacrifícios vindouros, mas afirmando também o apoio dos líderes políticos ao povo, a responsabilidade pelos destinos coletivos, o evitar até o último momento da guerra e defesa incessante dos interesses nacionais (entendidos aí como o combate a um inimigo agressivo). Dito de outra maneira, um grande discurso é aquele que condensa, expõe e orienta os valores, as idéias e os sentimentos coletivos em determinada direção, com isso inspirando a população: é o que vemos Jorge VI fazer de modo exemplar no final do filme.

Podemos pensar em outros exemplos; vêm-nos à mente três trechos de discursos, todos eles tirados da história dos Estados Unidos. Em 1942, quando esse país também ingressava na II Guerra Mundial, Franklin Roosevelt, após afirmar que não queria entrar no conflito e que sacrifícios avizinhavam-se, observou que a única coisa que deveriam temer era o próprio medo. Dando um salto no tempo, nos anos 1960 John Kennedy pronunciou dois discursos que se tornaram justamente lendários: em 1962, ao tratar do programa espacial estadunidense, que acabaria resultando na primeira alunissagem em 1969, Kennedy questionava-se porque se tinha decidido fazer algo tão complicado; sua resposta foi que a viagem à Lua deveria ocorrer não porque era fácil, mas, ao contrário, justamente porque era difícil. No ano seguinte, em 1963, em Berlim, logo após a construção do Muro de Berlim (que dividia a cidade em duas partes, uma controlada pela União Soviética e outra, isolada do resto do país, controlada pelos Estados Unidos), Kennedy disse que o apoio dos EUA à Berlim ocidental era tão grande e tão sério que ele mesmo via-se como um berlinense (é o seu famoso "Ich bin ein Berliner" – "eu sou um berlinense"). Nesses três exemplos, as frases-síntese que apresentamos são muito inspiradoras, ao mesmo tempo em que indicam a direção política a tomar; são discursos "densos", ricos, que honram a prática política.


28 maio 2017

David Carneiro e Henrique Batista da Silva Oliveira: Humanidade, bandeira, Aleijadinho

Reproduzo abaixo três pequenos textos de positivistas brasileiros: um do historiador paranaense David Carneiro, sobre a inauguração de uma estátua da Humanidade em Paris, e dois do Contra-Almirante Henrique Batista da Silva Oliveira, sobre a bandeira nacional brasileira e sobre as estátuas de Aleijadinho.

São textos interessantes, embora curtos; eles têm entre 20 e 30 anos e, sem dúvida alguma, valem a pena serem lidos, mesmo que a título de cultura geral.




15 maio 2017

Contra a retórica da violência

Nos últimos anos tem crescido no país um estilo retórico pleno de violência e agressividade, sob a justificativa de "reação ao politicamente correto".

Claro que o grande nome brasileiro dessa retórica é Olavo de Carvalho, mas ele está acompanhado por outros nomes, como Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi e Rodrigo Constantino e seus seqüazes - provavelmente não por acaso, todos de "direita". (Aliás, embora sejam brasileiros e refiram-se ao Brasil, com base em teorias da conspiração muitos deles auto-exilaram-se.)

Isso serve apenas para tornar o ambiente pior. O "politicamente correto" trouxe sérios danos à racionalidade e aos hábitos sócio-políticos, mas o fato é que não é por meio dos berros e dos xingamentos que se reverterá esses danos.

Adotar a agressividade como uma suposta forma de demonstrar "liberdade" e "ausência de preconceitos" é uma tolice - e uma perigosa tolice. Em vez de consagrar verdadeiramente a liberdade, a retórica da violência e a retórica violenta servem apenas para consagrar a própria violência. Em suma, a despeito de pretender-se a favor de padrões civilizatórios, a retórica violenta/da violência é um dos mais poderosos instrumentos contra a própria civilização; mais que uma reação, é reacionária e retrógrada.

Cabe aqui uma observação de Bertrand Russell, em um contexto um pouco diferente, mas perfeitamente aplicável ao presente caso: "se muitos dos problemas atuais decorrem da racionalidade, não é com menos racionalidade que esses problemas serão solucionados".

(Claro: o que eu disse acima aplica-se da mesma forma a toda a gente da "esquerda" - desde aqueles que pregam a morte à burguesia e a ditadura comunista até a suposta filósofa que afirmou que "a classe média é uma merda", passando por todos os que defendem anarquismos anticapitalistas.)

14 maio 2017

Revista Época: "Justiça anula passaporte diplomático de RR Soares"


A matéria abaixo, publicada pela revista Época na véspera do aniversário da Abolição da Escravidão no Brasil, é extremamente alvissareira. Como se sabe, os passaportes especiais ("passaportes diplomáticos") concedidos pelo governo brasileiro a determinados cidadãos, tornou-se moeda de troca política e prebenda familiar nas últimas duas décadas: líderes religiosos e membros da família Lula da Silva, injustificadamente, receberam-nos. Apesar disso, aos poucos, esses passaportes estão sendo anulados, seja por decisões políticas, seja por decisões judiciais.

No caso em tela, um dos homens mais ricos do país, que amealha fortuna com isenção crescente de impostos, perdeu um de seus inaceitáveis privilégios, isto é, o direito de ter tratamento especial para sair do país. (Aliás, como indica a matéria, não foi apenas R. R. Soares que perdeu esse privilégio, mas também sua esposa.)

Em meio à degradação da vida pública que se constata no Brasil há algumas décadas, bem como da laicidade, a decisão da Justiça traz um alívio para todos os verdadeiros republicanos e para os defensores da laicidade do Estado.

O original pode ser lido aqui.

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Justiça anula passaporte diplomático de RR Soares
Na decisão, a magistrada refuta o argumento dos líderes religiosos de que eles possuiriam “relevância nacional necessária” e aponta que o Estado brasileiro é laico
MATEUS COUTINHO
12/05/2017 - 17h29 - Atualizado 13/05/2017 17h08

A Justiça Federal em São Paulo anulou a portaria do ex-ministro de Relações Exteriores José Serra (PSDB) que concedeu no ano passado passaporte diplomático ao pastor da Igreja Internacional da Graça de Deus, R. R. Soares.



A decisão desta quinta-feira (11) é mais uma derrota de líderes religiosos na Justiça que foram beneficiados com o documento que, na prática, permitia ao pastor e sua mulher, também beneficiada com o documento especial, a ter acesso à fila de entrada separada nos países e vistos gratuitos, quando necessários aos brasileiros.

No ano passado, a Justiça já havia determinado a suspensão e o recolhimento dos passaportes dos pastores. Agora, o juiz anulou o ato do Poder Executivo que concedeu o benefício. A rigor, o documento é concedido a autoridades que, entre outros motivos, viajam para representar os interesses do país.

“A Portaria de 28 de junho de 2016 do Ministério das Relações Exteriores deve ser anulada em razão de manifesta ilegalidade ocasionada tanto pela ausência de motivação idônea, como pelo desvio de sua finalidade, o que, em última análise, fere a moralidade administrativa”, assinala a juíza da 7ª Vara Federal Cível de São Paulo, Diana Brunstein, na decisão.

A sentença foi expedida na ação popular movida pelo advogado Ricardo Amin Abrahão Nacle questionando a concessão do benefício aos religiosos. A decisão é de primeira instância e ainda cabe recurso.

Apesar de citar uma portaria do então ministro José Serra, o tucano não é alvo da ação, pois a Justiça Federal entendeu que ele deveria ser excluído do processo e que a União Federal, por meio da Advocacia-Geral da União, deveria responder pelo caso.

Na decisão, a magistrada ainda refuta o argumento dos líderes religiosos de que eles possuiriam “relevância nacional necessária” e aponta que o Estado brasileiro é laico. “As viagens missionárias dos corréus são indubitavelmente constantes, porém, como dito na própria contestação, visam defender os interesses da Igreja, propagando a doutrina cristã e isto não representa os interesses do país, que como organização estatal é laico e, portanto, neutro em relação às mais diversas crenças e religiões, cabendo apenas garantir e zelar pela liberdade de consciência e de crença, assegurando livres manifestações religiosas, nos termos do artigo 5º, VI da Constituição Federal”, segue a sentença.

A juíza também analisou os argumentos de que a concessão do benefício buscava dar isonomia aos líderes religiosos, já que durante o Brasil Império líderes católicos receberam o passaporte. O magistrado lembrou que, durante o Império, o Estado não era laico e que, portanto, não caberia comparar a situação com a de outros líderes religiosos. “Modificado este princípio fundamental do Estado, a atenção à isonomia se dá com a não concessão do passaporte diplomático a qualquer líder religioso, inclusive os católicos, não a extensão desta prática reconhecidamente arcaica e inconstitucional, que ofende a isonomia entre líderes religiosos e os demais Cidadãos”, afirma a sentença.

O benefício a RR Soares e sua mulher não foi o primeiro concedido pelo governo federal. Em 2013, durante o governo Dilma Rousseff, o líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, Valdemiro Santiago de Oliveira, e a mulher dele, Franciléia de Castro Gomes de Oliveira também receberam o benefício. Outros líderes de igrejas também já receberam o documento, que dá direito ao uso de uma fila especial nos aeroportos, mas não dá imunidade diplomática.

Com menos de uma semana no cargo, em maio deste ano, José Serra concedeu o mesmo benefício para o pastor Samuel Ferreira e a mulher Keila, também pastora, da Assembleia de Deus. Ferreira é investigado na Lava Jato suspeito de lavar dinheiro de propina para Eduardo Cunha (PMDB-RJ) por meio da igreja em Campinas. A assessoria de imprensa de Ferreira afirma que ele devolveu o passaporte em fevereiro.

O sistema de concessão de passaportes diplomáticos foi alterado em 2011, depois de revelado que os filhos e netos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tinham o documento mesmo depois da sua saída do governo e de não serem menores de idade, como determinava o decreto sobre o tema. Na época, a legislação dava ao ministro o poder de decidir quem poderia receber o passaporte em casos considerados de interesse nacional – o então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, concedeu o documento aos filhos de Lula pouco antes do final de seu governo, em 2010.


O advogado Alexandre Henrique, que representa o pastor e sua mulher, diz que vai recorrer da decisão, que classificou de “muito fraca”. “Acredito que a decisão vai ser reformada. O desembargador do caso já negou a liminar que mandava recolher os passaportes no ano passado. Acreditamos que essa decisão também deve ser revista no Tribunal (Regional Federal da 3ª Região)”, disse.

Ricardo Alves: "Fátima e a transformação do catolicismo português"

Reproduzo abaixo um texto pequeno mas extremamente informativo, escrito pelo republicano português Ricardo Alves, a propósito das supostas "aparições de Fátima", que completam um século neste ano. Embora escrito em 2008, a efeméride demonstra que o artigo abaixo é, infelizmente, atualíssimo.

Os dados apresentados por Alves são verdadeiramente chocantes. O mito de Fátima mistura, de modo proposital, profecias sobre o passado, verdades fabricadas, silêncio eterno, campanhas políticas contra a República (e, depois, contra o comunismo), campanhas políticas a favor do longo autoritarismo de Salazar, instrumentalização do Estado em beneficio da Igreja Católica e enriquecimento da Igreja. Ah, claro, também um profundo obscurantismo.

O original pode ser lido aqui.

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Fátima e a transformação do catolicismo português


As «aparições» de Fátima, entre 13 de maio e 13 de outubro de 1917, nasceram em reacção ao laicismo da República e nas circunstâncias da 1ª guerra mundial, mas o culto e o santuário ali instalados adaptaram-se facilmente ao regime reacionário de Salazar, designadamente ao seu anticomunismo, e constituem hoje o coração do catolicismo português, que seria inimaginável sem Fátima e o seu capital simbólico e financeiro.
Fátima I: a manifestação anti-republicana
No dia 5 de outubro de 1910, triunfa em Portugal a República. A laicidade era um elemento matricial do programa republicano, e nas primeiras semanas do novo regime foram expulsas as ordens religiosas, laicizado o ensino e instituído o registo civil obrigatório. Seguiu-se em abril de 1911 a Lei de Separação da Igreja do Estado (inspirada na lei francesa de 1905), através da qual o catolicismo deixou de ser a religião de Estado, se suprimiram as despesas relativas ao culto católico e ao salário do clero, se expropriaram edifícios da Igreja católica, mas também se amenizou a transição cedendo os templos para uso gratuito da Igreja, e concedendo pensões aos sacerdotes em funções que não hostilizassem a lei e a República. Porém, a maioria do clero (incitada por Pio X, que denunciou de imediato o português «ódio à Igreja» na encíclica Jamdudum in Lusitania) não aceitou o novo regime. A Lei de Separação fazia também depender de autorização prévia o culto religioso fora dos templos, o que obstaculizou as procissões populares habituais nos meios rurais.
No dia 13 de maio de 1917, Lúcia dos Santos, Jacinta Marto e Francisco Marto (respectivamente com 10, 7 e 8 anos de idade) dizem à família e aos vizinhos que lhes aparecera, sobre uma azinheira da Cova da Iria, uma «senhora vestida de branco». Mais precisamente: Lúcia vira, ouvira e falara com a «senhora», Jacinta vira e ouvira, e Francisco olhara somente. A entidade ter-lhes-ia pedido para voltarem todos os meses até fazer seis, altura em que lhes revelaria o que pretendia. As três crianças, que naturalmente se aborreciam a guardar ovelhas e viviam submersas num ambiente de religiosidade intensa, são interrogadas pelo pároco da freguesia de Fátima no final do mês, e não mais deixarão de ser devidamente enquadradas, e apoiadas, pelo clero. De tal modo que se na segunda «aparição» estarão presentes cerca de 50 pessoas, na terceira já serão mil ou mais. Até então, a «mensagem» registada nos interrogatórios resume-se a promessas de «levar para o Céu» os três pastores, a encorajamentos para «rezar o terço» e a alusões vagas ao final da guerra (onde havia jovens da freguesia). Mas em julho, a imprensa começa a interessar-se pelo assunto: um jornal católico de Ourém alude, em tom sonhador, à hipótese de «a Rainha dos Anjos fazer desta freguesia uma segunda Lurdes». A polémica atinge rapidamente os jornais nacionais, e o administrador do concelho de Ourém reage levando as crianças para sua casa no dia 13 de agosto, pretendendo evitar uma manifestação que seria uma violação da interdição de concentrações religiosas públicas sem autorização prévia. Os pastores ficarão em casa do administrador durante dois dias, bem hospedados e brincando com os seus filhos, o que não impedirá Lúcia de inventar anos mais tarde (apenas uma das suas muitas invenções…), que teriam estado na prisão com criminosos de delito comum. Sem se atrapalhar com este contratempo, Lúcia «vê», no dia 19 de agosto e noutro local, aquela que agora designa por «Nossa Senhora». E a 13 de setembro comparece, com mais de 20 mil pessoas, na penúltima «aparição», considerada uma «desilusão» pelos presentes, mas na qual está, pela primeira vez e enviado pelo cardeal patriarca de Lisboa, o sacerdote que será o principal promotor do culto de Fátima: Manuel Nunes Formigão. Finalmente, a 13 de outubro a «Nossa Senhora» declara-se «muito ofendida» (presumivelmente pelo anticlericalismo) e anuncia (é Lúcia quem o garante perante várias testemunhas) que a guerra terminou naquele momento e que os soldados voltarão[1]. Nesse dia, nesta cova no cimo de uma serra, em condições atmosféricas instáveis típicas do início de Outono (movimento rápido das nuvens e alternância de Sol e chuva), certas pessoas acharão que o Sol «bailou», outras que «rodou» e outras ainda que quase se «precipitou» sobre a Terra. Individualidades tão diversas como o livre-pensador António Sérgio e o católico conservador Domingos Pinto Coelho, entre outras, assegurarão que nada de especial se passou, para além da variação natural da luz do Sol com a densidade das nuvens em movimento. E (se isso interessa…) milhões de pessoas em todo o mundo nada notaram de anormal, nesse mesmo dia e a essa mesma hora, no Sol que observavam, presumivelmente o mesmo da Cova da Iria[2].
Estes acontecimentos, originados possivelmente por fantasias de crianças ou por uma encenação, aconteceram num momento oportuno para a Igreja católica. O esforço de guerra desestabilizava a jovem República, com o aumento do custo de vida, o crescimento do desemprego e motins causados pela escassez de alimentos. Após a entrada oficial na guerra (fevereiro de 1916), os partidos republicanos uniram-se no apoio ao governo, e os monárquicos receberam ordem, do rei exilado em Londres, para se absterem de política enquanto a guerra durasse. A Igreja católica era portanto, nesse momento, a única oposição organizada ao regime que podia instrumentalizar a aversão à guerra (as pastorais dos bispos portugueses tiveram um tom tão político, em 1917, que seis bispos foram expulsos das suas dioceses). Todavia, as «aparições» poderiam ter caído no olvido como uma episódica manifestação de protesto[3], mas a Igreja católica fará deles o coração da sua «reconquista cristã» de Portugal, talvez porque Fátima, ao contrário de outros locais de «aparições» de «Nossa Senhora» seus contemporâneos[4], reunia condições geográficas excepcionais e o empenho do clero.
Geograficamente, o local é adequado para um santuário de sucesso. Por se situar no cimo de uma serra, a Cova da Iria garante, quando demandada a pé, algum do «sacrifício» que desde o início foi pedido pela «senhora», e conferia inicialmente o isolamento que não se conseguiria numa planície ou num centro urbano. E, embora sendo de difícil acesso quando o uso do automóvel não se generalizara, não se situa muito longe da linha Lisboa-Porto, e portanto ficará sempre na proximidade de quaisquer vias rodoviárias ou ferroviárias que liguem as duas principais cidades do país. Adicionalmente, por se situar numa zona litoral (mais populosa do que o interior) e a norte do Tejo (a sul do qual o catolicismo foi sempre mais fraco), Fátima garantia uma distância não excessiva para ser percorrida pela maioria dos devotos peregrinos das aldeias do Norte e Centro de Portugal.
Quanto ao clero, deve destacar-se o papel do sacerdote Nunes Formigão, que visitou a inspiradora Lurdes pela primeira vez em 1909 (voltará em 1914, em ambas as ocasiões por períodos de semanas ou meses) e ficou impressionado com as «curas assombrosas» e, especulemos, as possibilidades deste género de empresa religiosa, tendo-se comprometido a divulgar a «devoção mariana» em Portugal. Como dizem prosaicamente as biografias devotas, «Nossa Senhora aceitou o seu voto» – e Formigão aparece em Fátima em setembro de 1917. Será um dos primeiros sacerdotes a interrogar os videntes, figura determinante na aquisição dos terrenos da Cova da Iria, relator único da comissão canónica sobre os acontecimentos de 1917, e autor de vários livros e numerosos artigos promotores do santuário em jornais católicos e no boletim mensal Voz de Fátima. Pode arriscar-se dizer que, sem ele e sem o bispo Correia da Silva, os acontecimentos de 1917 não passariam hoje de uma curiosidade histórica.
Fátima II: o santuário do Estado Novo
Em janeiro de 1918 dá-se um acontecimento fulcral para o aproveitamento clerical de Fátima: a diocese de Leiria (cidade a 25 km de Fátima) é restaurada, sendo nomeado bispo, em maio de 1920, José Alves Correia da Silva (1872-1957), que peregrinara já a Lurdes doze vezes e era tão devoto de «Nossa Senhora» que consagrou a diocese à Virgem Maria dez dias depois de tomar posse. Após um atentado à bomba contra a capela recentemente fundada na Cova da Iria, Correia da Silva nomeia, em maio de 1922 e a pedido de Formigão (que aponta explicitamente o exemplo de Lurdes) uma comissão eclesial para estudar o caso, declara catolicamente correcto o culto no local e manda fundar (outubro de 1922) o boletim mensal Voz de Fátima (que atingiria 366 mil exemplares em 1936, e no qual o incansável Formigão recenseará mais de mil «curas milagrosas»). Seguem-se os trabalhos de construção civil, coroados em 1929 pela inauguração da central eléctrica do santuário, em que estiveram presentes o Presidente da então Ditadura Militar (Óscar Carmona) e o ministro das Finanças, o católico conservador Oliveira Salazar[5]. A afluência de peregrinos aumentara ao longo da década, apesar da correcção eclesiástica aos aspectos mais «pagãos» que as romarias populares tinham tomado entre 1917 e 1922, mas auxiliada pelas visitas de quase todos os bispos portugueses e outras personalidades católicas. Fátima encontrara, entretanto, o regime político que lhe convinha. Nas palavras do cardeal Cerejeira[6]: «Desde que Nossa Senhora de Fátima apareceu em 1917 no céu de Portugal, uma especial bênção de Deus desceu sobre a terra portuguesa. Encerrou-se o ciclo violento da perseguição religiosa e começa uma época nova de pacificação das consciências e de restauração cristã».
Tendo reunido um total de duas vezes, a comissão diocesana conclui os seus trabalhos em 1930, e Correia da Silva publica seguidamente uma carta pastoral onde declara dignas de crédito as «visões» e autoriza o culto a «Nossa Senhora de Fátima». A mina estava aberta, bastava agora explorar o filão.
O que acontecera, entretanto, às três crianças? Francisco e Jacinta tinham adoecido um ano depois das «aparições», enfraquecidos pelos jejuns que a «senhora» recomendara e vitimados pela epidemia de pneumónica que grassava pela Europa. Morreram em abril de 1919 e em fevereiro de 1920, respectivamente. Quanto a Lúcia, foi levada em maio de 1921 para um internato religioso. Na véspera da sua partida, o bispo de Leiria chamou-a para a proibir de falar sobre as «aparições» com quem quer que fosse. Lúcia tinha 14 anos, e ficará reclusa em conventos e casas religiosas desde então até à sua morte, com 97 anos, em 2005. No final dos anos 30 escreveu as Memórias da Irmã Lúcia, ostensivamente em obediência à «vontade de Deus» tal como transmitida através do representante por ela reconhecido – o bispo de Leiria – e assumidamente acrescentadas e corrigidas pelo bispo e seus ajudantes. O livro pretende proceder à fixação da mitologia de Fátima, mas contradiz em vários aspectos relevantes a versão dos acontecimentos que ela e os primos tinham dado vinte anos antes. Interessa aqui referir que o conteúdo ideológico da «mensagem» se torna agora nacionalista (pela primeira vez, uma «visão» menor de 1916 é identificada como «o anjo da guarda de Portugal») e anticomunista. O «segredo» transmitido às crianças é revelado, dividido em três partes. A primeira, a célebre «visão do inferno», com fogo, animais e demónios aterradores, e que parece ser um resultado directo da catequese terrorista a que Lúcia fora sujeita na infância. A segunda, um pedido de «estabelecimento no mundo» da «devoção ao imaculado coração de Maria», meio que, teria garantido a «Nossa Senhora», evitaria que rebentasse a 2ª guerra mundial – o que não foi possível fazer, como é óbvio, por este pedido apenas ter sido revelado… em 1941 (a revelação de uma «profecia» em data posterior ao acontecimento profetizado não impede os católicos fatimistas, evidentemente, de verem ali uma prova da intervenção do «sobrenatural»[7]). Reveladoramente, a segunda parte do «segredo» insistia em que era necessário «consagrar a Rússia ao coração de Maria», sob risco de esta nação «[espalhar] os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à igreja». No entanto, em julho de 1917, data suposta desta preocupação celestial com a Rússia, Kerenski governava. A viragem anticomunista da «mensagem de Fátima» pode dever-se tanto a razões internacionais (o desenvolvimento da URSS nos anos 30 e o crescente apelo do comunismo na Europa ocidental) como internas (à data da publicação das Memórias…, a principal força de oposição ao salazarismo eram já os comunistas e não os republicanos). Como diria lapidarmente o cardeal Cerejeira em 1953: «Fátima – Altar do Mundo – opõe-se a Moscovo – capital do reino do Anti-Cristo». A nova «mensagem de Fátima», no fundamental e sem esquecer a sua insistência no «sacrifício» e na «obediência», servia o presente e o futuro do Estado Novo. Lúcia, com a autoridade de quem falara com «Nossa Senhora», chegará mesmo a escrever que «Salazar é a pessoa por Ele [Deus] escolhida para continuar a governar a nossa Pátria».
Fátima III: manifestações de massas e consumismo na era da democracia
Quase um século depois, Fátima fornece ao catolicismo português um ponto de foco e uma fonte de receitas financeiras (através de donativos, hotéis, museus e outros negócios, religiosos e profanos, isentos de vários impostos). O número de visitantes anuais, segundo o santuário, encontra-se entre quatro e cinco milhões, o que rivaliza com Lurdes. As receitas são inestimáveis (poderão atingir vinte milhões de euros, apenas metade consumidos em despesas), e já possibilitaram a construção de uma faraónica catedral de 70 milhões de euros, inaugurada em 2007.
Quanto ao capital simbólico, o catolicismo popular português seria hoje inimaginável sem a «Nossa Senhora de Fátima», e a «Virgem Maria» tornou-se a figura central em tantas novas igrejas que parece quase mais importante do que Cristo. Porém, até alguns católicos (não fatimistas) notam que aquele culto contém aspectos pagãos. Realmente, «ir a Fátima» é, para os peregrinos, um negócio em que o sofrimento das caminhadas e das deslocações de joelhos ou de rastos à volta do recinto do santuário deve ser pago, pela deusa de Fátima, com o cumprimento de pedidos e promessas. O «pagamento», contraditoriamente com o «universalismo» católico, só pode ser feito naquele local do concelho de Ourém e em nenhum outro. Quando não têm pruridos com estes «desvios pagãos», as elites católicas lidam com Fátima através do mecanismo de transferência a que o filósofo Daniel Dennett chama «crer na crença»: o mais importante, dizem-nos, não é a veracidade das «aparições» ou a credibilidade da «mensagem», mas sim o facto de tanta gente ter fé nessas mesmas «aparições» e nessa mesma «mensagem». Assim, a generalidade dos intelectuais católicos, e muitos sacerdotes, evitam um debate em que as contradições do fatimismo e o simples bom senso lhes seriam desfavoráveis, e deixam o literalismo da crença para as multidões que enchem o santuário.
Faltam, evidentemente, os santos. Em maio de 2000, foram beatificados os dois pastorinhos já falecidos, invocando a «cura» de uma paralisia histérica, comprovada por três médicos «independentes» (pai, mãe e filha) e «imparciais» (todos membros da Servitas de Fátima). Nessa ocasião, foi lida a terceira parte do «segredo», onde um «bispo de branco» e os seus acompanhantes são dizimados por «tiros e setas» de um «grupo de soldados». Em 2000, Lúcia identificou esta cena com o atentado de Ali Agca, em 1981. E, no documento interpretativo do «segredo»[8], Angelo Sodano agradeceu à «Virgem Santíssima» a derrota do bloco comunista. Morta Lúcia em 2005, a santidade é uma questão de tempo.
Fátima entrou numa nova fase. No período democrático, as peregrinações ao santuário, entre maio e outubro de cada ano, conferem ao catolicismo português um aspecto de religião de massas que seria impossível conseguir anualmente de outra forma, e que permite à hierarquia amplificar as suas campanhas políticas, as mais recentes contra a despenalização do aborto e o casamento entre homossexuais (as novas «ofensas ao coração imaculado de Maria»). O catolicismo português, religião oficial do Estado até 1910, substituiu o apoio estatal pelo apoio na crença na visita a Portugal de uma figura celestial.[9]
Manuel Nunes Formigão, principal promotor de Fátima (Tomar, 1883 –  Fátima, 1958; doutorado em Teologia e Direito Canónico em Roma em 1909).
Manuel Nunes Formigão, principal promotor de Fátima (Tomar, 1883 – Fátima, 1958; doutorado em Teologia e Direito Canónico em Roma em 1909).
Ricardo Alves
Setembro de 2008

[1] Evidentemente, a guerra não apenas não terminara como continuou durante mais de um ano. O pior momento para as tropas portuguesas, aliás, aconteceria no dia 9 de abril de 1918, quando o Corpo Expedicionário Português foi destroçado na batalha de La Lys.
[2] Os «videntes» também não viram o «bailado do Sol», mas pode-se-lhes perdoar por se terem distraído a ver a «sagrada família» no próprio Sol.
[3] Em 1822, a «Virgem Maria» aparecera a dois pastorinhos de Carnide, aflita com a primeira Constituição do liberalismo, e conferindo assim a «autoridade divina» ao pretendente absolutista D. Miguel. Em dezembro de 1917, Sidónio Pais tomou o poder, e durante um ano esforçou-se por «acalmar» a questão religiosa.
[4] Nomeadamente, a «aparição» de uma «senhora de branco» na remota localidade do Barral, concelho de Ponte da Barca (maio de 1917) e em Pardilhó, concelho de Estarreja (junho de 1916).
[5] No dia 28 de maio de 1926, o exército, apoiado nos sectores conservadores e na Igreja católica, derrubara a República e instaurara uma ditadura da qual Salazar se tornou claramente a figura preponderante em 1932.
[6] Companheiro de quarto de Salazar em Coimbra, Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977) foi cardeal de Lisboa entre 1929 e 1971.
[7] O mesmo aconteceria com a terceira parte do «segredo», que seria também divulgada (2000), após o acontecimento que alegadamente profetizaria de forma muito alegórica, o atentado a Karol Wojtyla (1981).
[9] Uma versão em língua francesa deste texto foi publicada na revista L´Idée Libre nº283 (dezembro de 2008).

"Vatileaks" e a violenta corrupção financeira no Vaticano

A entrevista abaixo foi recentemente publicada na revista portuguesa Visão; ela indica o fato escandaloso de que o Vaticano, isto é, a Cúria da Igreja Católica, embolsa por baixo 80% dos recursos arrecadados para auxílio aos pobres. Além disso, a entrevista também indica que a canonização é um negócio como qualquer outro e no qual é necessário fazer pesados investimentos financeiros.

Chama a atenção o fato de que a sede mundial de uma igreja tenha leis soberanas próprias, um governo teocrático, e que, por meio de acordos internacionais, um outro Estado soberano aplique as decisões jurídicas dessa igreja. Tal situação verdadeiramente anômala existe desde 1929, quando o regime fascista de B. Mussolini celebrou o Tratado de Latrão, reconhecendo à Igreja Católica personalidade jurídica de Estado soberano - mesmo que o Vaticano seja, no final das contas, apenas um pequeno bairro na cidade de Roma.

O livro já recebeu uma tradução brasileira, publicada em 2016 - pode ser adquirida aqui. É de questionar-se, de qualquer maneira, se ele ensejará investigações aprofundadas sobre a riqueza da Igreja Católica no Brasil, além de maiores investigações sobre as igrejas evangélicas também aqui operantes.

O original da entrevista encontra-se disponível aqui.

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"O meu livro é um mapa da corrupção no Vaticano. Todo o dinheiro recolhido fica para os cardeais, em vez de ir para os pobres"
MUNDO 09.05.2016 às 9h47






Entrevista a Emiliano Fittipaldi, o jornalista que passou um ano a investigar a gestão das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. A investigação resultou no livro Avareza, e a fuga de informação que relata já mereceu o nome de Vatileaks

Isabel Nery
ISABEL NERY
Jornalista

O dinheiro do Vaticano entra sobretudo pela mão dos fiéis, que esperam vê-lo aplicado em obras de caridade. Mas, afinal, está investido em ações como as da petrolífera Exxon, e bens imobiliários. Depois de receber uma lista de propriedades da Igreja em Londres, Paris e Roma, no valor de 4 mil milhões de euros, o jornalista da revista italiana L'Espresso passou um ano a investigar a gestão das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. Fittipaldi descobriu que as esmolas são transformadas em fundos e que as beatificações são verdadeiras máquinas de fazer dinheiro. Chegou a dizer-se que a fuga de informação teria vindo de elementos próximos de Francisco, mas o Papa também já criticou publicamente o livro. Avareza é agora lançado em Portugal, pela editora Saída de Emergência, numa altura em que o autor, de 41 anos, enfrenta um processo, acusado do crime de “subtração e divulgação de notícias e documentos reservados”, previsto na lei do Estado do Vaticano. Se perder, poderá ser condenado a um máximo de 8 anos de prisão. Por isso, confessa-se “cansado”. Pela reação negativa de Francisco, “surpreendido”. As revelações, e fuga de informação inscrita em documentos sigilosos, já mereceram o nome de Vatileaks.

Quais foram as descobertas mais chocantes desta investigação jornalística?
Em 2012, as esmolas recolhidas para apoiar os pobres somaram 53,2 milhões, mas só 11 milhões foram para ajudar os mais desfavorecidos. A Cúria romana ficou com 35,7 milhões. Há cardeais a viverem em luxo. No meu livro digo o nome e apelido de cada um. Descobri que há cardeais a viver em Roma em apartamentos de 400 metros quadrados. E não usam esse espaço nem para pobres nem para refugiados.

Como é que usam o dinheiro das esmolas?
Descobri que Tarcisio Bertone [ex-secretário de Estado] usou 200 mil euros de um hospital pediátrico para fazer restauros na sua casa. Um cardeal pedófilo pagava 50 mil euros por mês à secretária.

De onde vinha todo esse dinheiro?
Um dos negócios incríveis que denuncio no meu livro é o das beatificações. O caminho mais rápido para chegar a santo é pagar a um bom advogado para tratar do processo. Pela beatificação da espanhola Francisca Ana de las Dolores cobraram-se 482 693 euros.

Quer dizer que nos países pobres não pode haver santos?
Não. Em África ou nas Filipinas não há dinheiro para isso. Mas o Banco do Vaticano ganhou 100 milhões de euros. Francisco quis fechá-lo e depois mudou de ideias. Todo o dinheiro devia ir para os pobres. Mas, em dois anos, o fundo do Banco do Vaticano só entregou 17 mil euros, embora tenha amealhado cem milhões. Daí o título do meu livro, Avareza.

O Vaticano é avarento?
O Vaticano comporta-se como uma offshore. Nem sequer dá toda a informação à polícia sobre quem tem contas no seu banco. Por vezes, o Vaticano decide como um banco e não como uma Igreja. Francisco quer mais transparência para o futuro, mas não quer que se descubra o passado. Quer limpar a Igreja por dentro sem que ninguém saiba. Mas eu não trabalho para o Vaticano nem para o Papa. Sou jornalista.

Vive num país que alberga o Estado do Vaticano. Como conseguiu escrever sobre um tema tão sensível?
Em Itália é muito difícil escrever sobre isto. Temos o Vaticano dentro do nosso país. E o Vaticano tem uma relação muito estreita com a televisão, com muito poder sobre ela. Mas o tema é bom para quem faz jornalismo de investigação, como eu.

Conseguiu publicar artigos e livros sobre o tema, apesar de tudo.
Sou um jornalista sortudo: tenho toda a liberdade no meu jornal. Em Itália é muito difícil escrever sobre corrupção na Igreja Católica. A comunicação social italiana está em 77º lugar no índice de liberdade de imprensa. O Governo é muito próximo da Igreja e não diz nada sobre este escândalo. A informação que publico está a ser revelada pela primeira vez na história.

Ficou isolado com a publicação do livro?
Os meus colegas dizem que roubei os documentos, uma rádio católica sugeriu que me enforcasse. Mas tenho todo o apoio do meu editor. E já muita gente leu o meu livro. Fico feliz com isso. Porque o que um jornalista mais quer é ser lido. Comecei há 4 anos a escrever sobre o tema para a minha revista.

Quem lhe passou a informação queria prejudicar o Papa ou ajudá-lo?
As minhas fontes são seculares e do Vaticano. Não se conhecem. Algumas gostam do Papa e outras não. Não sei se querem ajudar ou destruir o Papa. Mas os jornalistas não têm de perguntar “porquê” às fontes. As motivações da fonte não são um problema nosso. Nós só temos de fazer o nosso trabalho.

Que leitura faz do facto de aparecerem estes documentos na altura em que o Papa é Francisco, visto como moderado e defensor dos mais fracos?
É estranho.

Mas, lendo o seu livro, parece que é mais uma questão de imagem do que de conteúdo.
A propaganda do Vaticano é muito forte. Francisco é um comunicador perfeito. Escrevemos que este Papa mudou tudo em apenas 3 anos no Vaticano. Mas não é verdade. Não é possível. O Papa é o homem mais poderoso do mundo. O grande escândalo é em Roma. Todos sabem que a Igreja Católica tem problemas com as finanças.

Por haver demasiados vícios e demasiado antigos na Igreja?
O Vaticano é um Estado rico. Mas todo o dinheiro recolhido fica no Vaticano, para os cardeais, em vez de ir para os pobres. Isso é incrível! É aí que está o problema. Mas fico feliz por estar a denunciar. Depois do meu livro, Francisco mudou o sistema para haver mais controlo.

Está desiludido com Francisco?
Francisco e o Vaticano estão muito zangados comigo porque destruí essa propaganda. Ele queria reformar, mas não teve tempo para isso. E agora está sozinho. Tem muitos inimigos.

O Papa corre mais perigo de vida por ter querido reformar a Igreja?
Não me parece. Mas, na Cúria romana, muitos odeiam-no.

Tendo em conta tudo o que denuncia, pode ser bom sinal, ser odiado pela Cúria?
Para um papa que quer mudar a Igreja, sim. Mas não sei se será capaz. Espero que ele ganhe esta batalha, mas não tenho a certeza. O meu livro não é contra a fé, mas contra a corrupção na Igreja. Os padres devem rezar, não andar em casa dos políticos. Em Itália, a Igreja tem negócios, incluindo na área da saúde, casas e palácios. A ingerência da Igreja em Itália é muito forte e Francisco quis mudar isso.

A popularidade ajuda-o ou prejudica-o?
Ser tão popular é muito importante. Pode fazer algumas reformas por ter o povo com ele. Mas cometeu erros.

Quais?
Quando mudou os homens próximos de Benedict [Bento XVI, anterior Papa] deu a sua confiança a Pell [responsável pelas finanças do Vaticano]. Foi um grande erro de Francisco. Pell trabalha dentro do banco do Vaticano e não quer transparência. Francisco viveu muitos anos em Buenos Aires. Talvez não soubesse bem o que se passava no Vaticano.

Como reagiu àquilo que revelou sobre o Vaticano no seu livro?
A reação deixou-me muito surpreso. Ele é um rei no Vaticano e eu tenho um problema com a justiça dele. O Papa está muito zangado com a edição do meu texto. Levou-me a tribunal. Depois da publicação disse em público, na Praça São Pedro, em Roma, dirigindo-se à multidão, que o meu livro era mau para a Igreja.

Porquê?
Não percebo porque é um problema para a reforma que Francisco quer fazer. O meu livro é um mapa da corrupção no Vaticano! Acho que o livro poderá ajudar no futuro.

Preocupa-o que os radicais islâmicos usem investigações como esta para denegrir a Igreja Católica e ganharem terreno?
Nunca me tinham perguntado isso… Não tenho o poder de mudar o mundo. Não sei se pode destruir a fé na Igreja. Mas isso não é um problema meu. Sou jornalista. Toda a informação que divulgo é verdadeira.

Ninguém o acusa de publicar informações falsas ou erradas?
Não. Nem uma linha do livro foi desmentida.

Nos processos que tem contra si, de que o acusam, então?
Acusam-me de ter revelado informação confidencial. Dizem que os meus documentos são privados e pessoais. Mas ninguém diz que publiquei mentiras. Se digo a verdade, não devo ter problemas com a justiça.

Mas está a ter.
Sim. A sentença deverá ser conhecida em meados de maio. Mas fiz outro trabalho jornalístico sobre Bertone e estou com problemas porque um tribunal de Roma diz que o difamei. Nos próximos tempos, vou passar mais tempo em tribunal do que no jornal.

Que pena poderão aplicar-lhe?
Uma lei do Vaticano de há 3 anos prevê penas para quem publique informações confidenciais como as que divulgo no livro.

A possível ilegalidade surge à luz da lei do Vaticano?
O meu crime é ser jornalista. O Vaticano não tem imprensa livre. Rege-se por leis próprias, que não são as mesmas das italianas. Mas há um acordo entre Itália e o Vaticano, e quem cometer um crime no Vaticano pode ter problemas com a lei italiana.

Que problemas?
Podem aplicar-me uma pena de 5 a 8 anos. Mas será difícil porque Itália tem lei de liberdade de imprensa.

Sendo pouco provável a condenação judicial, que outras consequências lhe trouxe a publicação deste livro sobre os escândalos financeiros do Vaticano?
Tentaram destruir a minha reputação. E a reputação é o mais importante para um jornalista. Fui ao Vaticano para me defender deste ataque. Eu não ameacei ninguém. Para o Vaticano eu sou culpado. Mas terão um problema político se me acusarem.

O seu livro mudará alguma coisa?
Às vezes podemos mudar alguma coisa. Denunciei 10% do escândalo económico dentro do Vaticano. Sei de cardeais que têm milhões de euros no banco do Vaticano. Se outros quiserem investigar, terão muito sobre o que escrever.

Quer dizer que não continuará a escrever sobre o tema?
Estou muito cansado. Fui muito atacado em Itália. Dei entrevistas a jornais dos EUA, Espanha e Portugal. Mas, em Itália, nem um jornal quis ouvir as minhas denúncias.

É Católico?

Sou agnóstico.