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03 setembro 2014

L. A. Becker sobre o clericalismo na UFPR

Ainda a respeito da existência de (1) uma capela (2) explicitamente católica na UFPR, meu amigo L. A. Becker leu os argumentos apresentados pelos defensores do clericalismo. Ele notou alguns vários e sérios problemas na argumentação dos clericalistas; como Becker foi tão claro nos comentários, reproduzi-los-ei ipsis literis abaixo.

O artigo dos defensores do clericalismo na UFPR - publicado na Gazeta do Povo curiosamente ao mesmo tempo que o meu em favor da laicidade - pode ser lido aqui.

Abaixo, os comentários de L. A. Becker, com realce verde escuro:
  • o fato de clérigos participarem da fundação de uma universidade pública não cria o "direito" de nela instalar um espaço religioso; se assim fosse, o fato de flamenguistas participarem criaria o direito de nela instalar uma filial da torcida organizada do Flamengo;
  • laicidade não tem nada a ver com culto idólatra à razão - é questão conceitual;
  • também não se trata de atrapalhar o rendimento acadêmico; muito menos fechar a universidade porque tem origem na Igreja; o autor inventa acusações não feitas para atacá-las; é como seu eu dissesse: "é mentira que existe um cavalo de duas cabeças lá em casa!";
  • comparar a capela da UFPR com a Notre Dame é descabido; não só pela desproporção histórica e arquitetônica, mas porque a Notre Dame não está instalada dentro de uma universidade pública;
  • porque o Estado reconheceu o valor histórico da capela não significa que se está proibido de reconhecer que o lugar é inadequado; um erro não justifica o outro;
  • a proteção aos lugares de culto não significa a convalidação de sua instalação em lugares inadequados; caso contrário, instalemos o Templo de Salomão sobre as pistas do aeroporto Afonso Pena e, em seguida, proibamos que seja derrubado;
  • não se trata de apagar os rastros da religião, mas de retirá-la dos espaços laicos; igrejas fora deles, nada contra elas;
  • um espaço de laicidade não é o mais adequado a receber uma capela; assim como uma igreja não é o espaço mais adequado para instalar o gabinete de um prefeito: a Cesar o que é de Cesar.
Acrescento ainda quatro aspectos: 
  • os clericalistas, no artigo mencionado acima, reconhecem implicitamente que a capela universitária da UFPR seria da Igreja Católica, ao referirem-se à Concordata de 2010 para justificarem a obrigação do Estado brasileiro (e, por extensão, da UFPR) de defenderem templos católicos. Em outras palavras, eles levam tão pouco a sério a separação entre igreja e Estado; defendem com tanta naturalidade os privilégios da Igreja Católica, que não entendem (e nem querem entender) que o espaço da UFPR é um espaço do Estado brasileiro e não uma representação eclesiástica no ambiente universitário;
  • a capela foi criada em 1958; todavia, desde 1950 a antiga Universidade do Paraná é uma autarquia federal: em outras palavras, a capela foi, desde o início, construída irregularmente e ofendendo francamente a laicidade do Estado;
  • os clericalistas afirmam que, devido ao fato de a Capela Universitária ser tombada pelo Serviço de Patrimônio Histórico, não se pode mexer nela. Todavia, não é a capela, mas o complexo da Reitoria da UFPR que é tombado; além disso, o tombamento refere-se aos elementos arquitetônicos do prédio, não à decoração interna e ao uso que os prédios fazem de seus espaços internos. Nesse sentido, como argumentamos em nosso artigo inicial, não há absolutamente óbice algum à utilização do espaço para outros fins que não os cultuais, ou, por outro lado, para o uso de outros cultos e ritos;
  • devido ao uso ostentatório do espaço da Capela Universitária pela Igreja Católica, muitos indivíduos têm a impressão de que esse espaço pertence a essa igreja, isto é, de que se trataria de um enclave católico na UFPR. Não: a Capela Universitária é um espaço da Universidade (o que equivale a dizer que é um espaço do Estado brasileiro, ou seja, da República Federativa do Brasil) e sua decoração católica é devida à ação completamente ilegal dos administradores da UFPR, tanto os de 1958 quanto os de 2014.

(A primeira versão desta posta é de 3.9.2014; em 5.9.2014 fiz uma atualização.)

02 setembro 2014

Artigo na Gazeta do Povo: "Novamente: UFPR clerical?"

Artigo de minha autoria publicado na Gazeta do Povo de 2.9.2014. O original pode ser lido aqui.

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Novamente: UFPR clerical?

No dia 7 de agosto, ocorreu no câmpus da Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR) uma cerimônia curiosa: a reinauguração da capela universitária, realizada pelo magnífico reitor em pessoa. Após um longo processo de reforma, o curioso em tal evento não foi a sua reabertura ao público, mas a reabertura com a sua “reconsagração”, por meio da realização de uma missa católica conduzida pelo bispo auxiliar dom Rafael Biernaski. Além disso, em todo esse espaço há, de modo ostensivo, imagens de santos católicos e símbolos cristãos. Talvez, à primeira vista, pareça não haver nada errado com isso; entretanto, como já indicamos em outros momentos neste espaço da Gazeta do Povo, é tudo altamente problemático.
A UFPR é uma autarquia federal e deve seguir as leis gerais da República e as específicas que regulam o Estado brasileiro. Dessa forma, a UFPR deve pautar-se pelo cuidadoso e rigoroso respeito à laicidade do Estado. A laicidade do Estado brasileiro foi definida pelo Decreto 119-A, de 1890, bem como afirmada e reafirmada por todas as Constituições republicanas, incluindo a de 1988 (em seus artigos 5.º e 19). De acordo com essas leis, não é facultado a nenhum órgão e/ou servidor público – presidente da República, reitor de universidade ou o mais humilde servidor do menor município do país – apoiar ou subvencionar qualquer religião.
Ora, a “reconsagração” especificamente católica, os símbolos presentes e, aliás, o próprio nome da capela, “Nossa Senhora do Carmo”, constituem apoios claros a uma religião por um órgão público. Como conciliar os preceitos legais com a existência da capela na UFPR?
Em primeiro lugar, em face da laicidade, a UFPR não deveria ter capela. Nesse sentido, deve-se notar que a universidade apresenta uma séria falta de espaço para alojar gabinetes de professores, grupos de pesquisa, grupos artísticos e de extensão, órgãos administrativos: o amplo espaço da capela poderia ser utilizado para qualquer uma dessas utilidades.
Mas, caso aceite-se a existência da capela como um fait accompli – o que não é nenhuma obrigação política ou jurídica –, para que ela respeite a laicidade são necessárias mudanças ao mesmo tempo radicais, mas simples: a retirada de todos os símbolos religiosos, guardados para uso quando da prática episódica dos cultos católicos e/ou cristãos; a mudança do nome, para simplesmente “Capela Universitária”; a definição urgente de critérios de utilização do espaço pelos diversos grupos religiosos e filosóficos (convém notar que, entre 2012 e 2014, solicitamos inúmeras vezes à administração da UFPR a apresentação dos critérios de utilização da capela; ou as respostas eram evasivas ou não havia resposta).
A religião é uma questão de foro íntimo e é ilegítimo ao Estado – e às suas autarquias – promover qualquer uma delas. Por outro lado, não se sabe a que ou a quem serve essa capela: se à comunidade universitária que deseja um espaço de reflexão íntima ou ao proselitismo paraoficial de determinados credos e igrejas. Se a UFPR deseja realmente ser um espaço da prática e da reflexão democráticas, cidadãs e republicanas; se deseja ser um símbolo do que o Paraná e o Brasil produzem de melhor, é imperativo que a capela seja efetivamente um espaço laico.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor e pós-doutor em Teoria Política pela UFSC.

07 julho 2013

Notícia sobre mesa-redonda sobre laicidade

A mesa-redonda "Laicidade em ação" foi noticiada com foto pela UFPR alguns dias após sua realização. Eis a matéria. (O original encontra-se disponível aqui.)

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3 de julho de 2013

Estado laico não é Estado ateu, ressalta cientista político

Por Celsina Favorito
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Mesa redonda sobre estado laico, no Anfiteatro 100, no complexo da Reitoria - Foto: Rodrigo Juste Duarte
Todos os cidadãos ficam, ou devem ficar, pelo menos 5 horas diárias durante 200 dias por ano durante 13 anos na escola. Em função desta permanência constante e longa dos alunos no ambiente educacional , como fica a questão da laicidade? ( Estado não impor aos cidadãos crenças, doutrinas, nem pressionar a sociedade).
Segundo a professora de políticas públicas, Maria Tarcisa Silva Bega, que participou da mesa redonda: “Laicidade em ação: princípios e políticas públicas” realizada na UFPR no último dia 27, a Lei de Diretrizes e Base (LDB) determina, através de legislação específica, que cabe ao Estado oferecer o ensino religioso.
O cientista político Gustavo Biscaia, no entanto, ressalta que os princípios gerais das políticas públicas são democráticos, republicanos, laicos etc., mas sua aplicação, na ponta do serviço e na prática, é problemática. No caso de desejar-se o ensino religioso, ele deve ser obrigatório ou facultativo? Se for obrigatório, deve ser proselitista ou histórico?, questiona o cientista.
Saúde X Crença
Além do aspecto educacional, também foi abordado no debate questões relacionadas às políticas de saúde, em que muitas vezes as crenças religiosas impedem que os agentes de saúde vejam os pacientes como pacientes, como pessoas que necessitam de serviços específicos. Elas são vistas, explica Gustavo, “pelos agentes como pessoas que aderem a determinadas crenças ou que são “do demônio”, como são exemplos gays, lésbicas, ateus e agnósticos”.
Mesa redonda sobre estado laico, no Anfiteatro 100, no complexo da Reitoria - Foto: Rodrigo Juste Duarte
Uma questão interessante, destaca Gustavo, apresentada pelos participantes do debate foi: se o Estado é laico, pode um estabelecimento comercial privado ser proibido de adotar símbolos religiosos e a ser laico? Para o cientista político da UFPR, a resposta é não, não pode ser proibido. A explicação para a não adoção de símbolos na decoração do estabelecimento é, segundo Gustavo, devido ao fato da sociedade ser secularizada e plural, e a presença dos símbolos afastarem os clientes.
Relações Problemáticas
Segundo Gustavo, atualmente pós-doutorando em Teoria Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, “no Brasil, desde sempre, as relações entre Igreja e Estado são problemáticas, seja porque a Igreja impunha-se com o poder do Estado, seja porque o Estado costuma intrometer-se nos assuntos das religiões e/ou beneficiar-se das religiões”.
Nos últimos anos, explica o cientista, essa relação tornou-se mais problemática devido a, pelo menos, três grandes acontecimentos notáveis: (1) a Concordata, isto é, o acordo diplomático entre o Brasil e a Igreja Católica, ambiguamente com o Vaticano; (2) a afirmação de perspectivas e temas religiosos na campanha presidencial de 2010 (perspectivas e temas que se têm repetido desde então); (3) a eleição do pastor-deputado Marcos Feliciano para Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
O evento foi promovido pelo Setor de Ciências Humanas e Aliança Estudantil Secularista da UFPR.
Celsina Favorito

Princípios da laicidade - roteiro da apresentação

Na noite do dia 27 de junho de 2013, quinta-feira, teve lugar uma mesa-redonda no anfiteatro 100 da Reitoria da UFPR sobre a laicidade do Estado. O evento, intitulado "Laicidade em ação: princípios e políticas públicas", ocorreu graças à Aliança Estudantil Secular de Curitiba e ao Setor de Ciências Humanas; teve como palestrantes Gustavo Biscaia de Lacerda e Maria Tarcisa Silva Bega.

Minha exposição seguiu o roteiro abaixo: 

1. Observações preliminares: exposição de conceitos teóricos de origem histórica
1.1. Conceitos gerais: por falta de tempo, não é possível abordar em profundidade a história da laicidade no Brasil

2. Definição básica: separação entre Igreja(s) e Estado, em que o Estado não se intromete na organização interna das igrejas e as igrejas não se valem do Estado para imporem suas doutrinas
2.1. Idéia do "muro de separação", de Thomas Jefferson
2.2. Ausência do crime de heresia
2.3. Estado laico não é Estado ateu

3. Processos sociais subjacentes:
3.1. Secularização: grosso modo, perda de validade social dos valores e das referências religiosas (ou teológicas); ação cada vez mais humana
3.2. Em parte como conseqüência da secularização, em parte devido a uma dinâmica própria: pluralização das crenças

4. Esboço da laicidade na Idade Média
4.1. Separação entre os dois poderes (temporal e espiritual), via choques entre Papado e Império no século XIII
4.2. Deve-se notar que não era uma sociedade secularizada

5. Categorias teórico-históricas de Catherine Kintzler:
5.1. Tolerância restrita: John Locke: deve-se tolerar todas as religiões, menos os ateus, vistos como incapazes de respeitarem pactos
5.2. Tolerância ampliada: Pierre Bayle: deve-se tolerar todas as religiões, incluindo os ateus, vistos como especialmente capazes de respeitarem pactos
5.3. Laicidade propriamente dita: Condorcet: o Estado abstém-se de professar doutrinas e as igrejas não podem usar o Estado; cria-se um espaço de liberdade (liberdades de pensamento, de expressão, de associação)

6. Modelos "nacionais" de laicidade
6.1. Modelo estadunidense: "pela via negativa": o Estado é laico porque não há uma seita predominante sobre as demais
6.2. Modelo francês (de Condorcet): "pela via positiva": o Estado é laico para garantir as liberdades de pensamento, de expressão etc.
6.2.1. Ambigüidade atual da expressão "laicidade francesa": intromissão do Estado na esfera individual (proibição do uso dos véus islâmicos em espaços públicos) -> negação da laicidade
6.3. Modelo brasileiro: realização da proposta de Condorcet, entre 1890 e 1930

É desnecessário dizer que, em linhas gerais, minha exposição, defendendo a laicidade, segue as idéias de Augusto Comte a respeito.

08 setembro 2010

Tese de doutorado sobre Augusto Comte: "O momento comtiano"

Está disponível na rede minha tese de doutorado em Sociologia Política sobre o projeto sociopolítico de A. Comte, intitulada "O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte". Ela foi defendida em 29 de março de 2010, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC, e tive a satisfação de ter como orientador o Prof. Ricardo V. Silva.

Em 2019 essa tese deverá ser publicada como livro pela Editora da UFPR.

http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf


O resumo da tese é este.


A pesquisa visa a expor e a explicar os principais traços da teoria política de Augusto Comte, considerando em particular seu projeto de república. Para isso, é necessário compreender o caráter sistêmico de tal pensamento, que implica que o todo precede as partes e que cada aspecto é ligado a todos os demais; assim, aplicando essa regra ao que Augusto Comte chama de “natureza humana” e à própria história humana, o que podemos chamar de “teoria política comtiana” é somente um aspecto de um pensamento englobante que abarca a inteireza da realidade humana.

Isso nos conduz a um novo princípio para compreendermos as idéias de Comte: o “englobamento de contrários”, conforme definido por Louis Dumont. Tal princípio consiste em que os valores sociais estabelecem ordens englobantes, que indicam a importância relativa de cada elemento face ao conjunto da sociedade; se o valor principal modificar-se ou alterar-se, a ordem dele derivada também se modifica. Assim, o Positivismo estabelece um princípio geral: o mais nobre modifica o mais grosseiro ao submeter-se a este; esse princípio é de caráter epistemológico, social e político e é completado por um par conceitual: “objetivo” e “subjetivo”. A combinação desses elementos resulta que o mais geral precede lógica, teórica e politicamente o mais específico, seja em termos humanos (subjetivos), seja em termos cosmológicos (objetivos); a essas oposições, especialmente na ordem humana, acrescenta-se outra: masculino-feminino, que pode ser convertida para intelectual/prático-moral/afetivo. Esses pares de oposições geram duas ordens gerais e englobantes de classificação: uma “oficial”, baseada em aspectos materiais, presentes e objetivos (políticos e econômicos), e outra “subjetiva”, baseada em aspectos espirituais e passados e futuros (intelectuais e morais).

Em termos metodológicos, como nos propomos a levar em consideração a lógica interna do pensamento comtiano, baseamo-nos nos conceitos elaborados por Mark Bevir: “tradições”, “dilemas” e “agência humana”. Grosso modo, eles referem-se respectivamente às correntes de pensamento que informam as idéias de alguém; as diferentes idéias que resultam em dificuldades que cada qual tem para confrontar ou para acomodar às suas próprias idéias na vida adulta; as capacidades e a liberdade individuais para criar novas formas de pensar e de organizar as idéias. Aplicando essas categorias analíticas a Comte, o resultado é o seguinte: as tradições que o informaram foram, de acordo com suas próprias observações, a dos “reacionários” (com Joseph de Maistre), a dos “revolucionários” (com o Marquês de Condorcet) e uma terceira, chamada genericamente de “positiva”, relacionada aos “enciclopedistas” (com Denis Diderot); seus dilemas eram os diálogos que realizou entre essas tradições a partir da terceira delas e, de maneira mais específica, a respeito dos problemas políticos, sociais e filosóficos com que se defrontou a França após a Revolução Francesa e, depois, com que o próprio Comte defrontou-se durante a década de 1840, particularmente durante a II República francesa (1848-1851).

Antes e durante a apresentação das idéias políticas comtianas, tratamos do ponto de vista teórico de alguns conceitos-chave tanto para a Teoria Política contemporânea quanto para a de Comte: “política”, “liberdade”, “igualdade”, “direitos e deveres”, “república”, “autoritarismo”, “ditadura” e, last but not the least, “democracia”. Após isso, apresentamos o projeto político positivista – nomeado em referência à realidade social, isto é, como “sociocracia” –; em termos gerais, esse projeto afirma que não há sociedade sem governo (nem vice-versa: não há governo sem sociedade); o governo, por seu turno, pode ser de dois tipos: espiritual ou temporal. A partir do “princípio de Aristóteles” – que estabelece que a sociedade consiste na separação dos ofícios e na convergência dos esforços –, o objetivo do governo é buscar a convergência dos esforços parciais: o poder Temporal no âmbito material, prático, e o poder Espiritual no que se refere às questões de idéias, valores e crenças. Além disso, enquanto o poder Temporal é responsável pelas pátrias (“cidades”, “cités”), o poder Espiritual atua no âmbito da educação, unindo entre si os cidadãos de cada cidade e as repúblicas do mundo inteiro.

As principais características das sociedades modernas, republicanas, são estas: pacifismo, altruísmo, generalidade de vistas; acima e antes de tudo, a estrita separação dos dois poderes (Temporal e Espiritual), conjugando a liberdade espiritual (isto é, as liberdades de pensamento e de expressão) com a ordem material (isto é, civil); ao mesmo tempo, deve ocorrer a consolidação dos poderes sociais (ou seja, políticos e econômicos) com afirmação das suas responsabilidades sociais, sob vigilância constante da opinião pública. A partir de tais valores e medidas práticas, segue-se uma detalhada e arrazoada relação de medidas específicas: transformação das grandes Forças Armadas em gendarmarias; fragmentação livre e pacífica dos grandes estados em pequenas unidades políticas; fim dos orçamentos teóricos (teológicos, metafísicos e científicos); estabelecimento da “hereditariedade sociocrática”; concentração do governo em um governante, seguida de um triumvirato, com a redução do parlamento a funções apenas e estritamente orçamentárias.


Palavras-chave: Teoria Política; englobamento de contrários; república; Augusto Comte; sociocracia; poder Espiritual; poder Temporal; liberdade.

20 outubro 2008

Problemas do Estado laico brasileiro: a Universidade (Confessional) Federal do Paraná


(Uma versão bastante resumida deste artigo foi publicada na Gazeta do Povo em 28.10.2008; cf. aqui.)




Para iniciar este artigo, convido o leitor a considerar as seguintes situações:
  1. Em um final de semana em Curitiba, vou a um supermercado e sou abordado por servidores de uma universidade paranaense pedindo doações para o hospital universitário; ao fazer minhas compras, procuro colaborar com a campanha e separo feijão e leite mas, ao entregar as doações, sou saudado com um “deus lhe pague”.
  2. Cotidianamente os servidores dessa mesma universidade usam o serviço institucional de correio eletrônico para fazerem propaganda religiosa ou tendo versículos bíblicos com assinatura institucional.
  3. Comissões internas de caráter técnico-administrativo iniciam ou terminam seus relatórios rogando a deus seus favores.
  4. Tendo que usar os serviços do hospital universitário, ao sair fui presenteado por servidores dessa universidade com alguns folhetos explicativos, entre os quais se encontrava um papel com alguns versículos bíblicos, explicando como deus é bom.
  5. Na biblioteca dos cursos das Ciências Naturais e das Engenharias, logo na entrada, em uma mesa em destaque e decorada com uma toalha de renda e um ramo de trigo, há uma grande bíblia, aberta em um “capítulo edificante”.
  6. Na biblioteca dos cursos de Ciências Humanas, sozinho em uma parede e com grande destaque, há um crucifixo com cerca de um metro de comprimento, belamente entalhado.
  7. Nos corredores do prédio que abriga os cursos de Ciências Humanas há vários cartazes em que se lê: “Missa”, “Culto”, “Encontre Jesus”.
  8. Para comemorar o cinqüentenário da Capela Universitária, a Reitoria da universidade encomendou uma missa e deu grande destaque a esse evento.
  9. Ao perguntarmos se essas situações são corretas, as respostas que ouvimos são no sentido de que isso é correto, ou que “sempre foi assim”, ou recebemos um raivoso descaso.
O leitor deve pensar que se trata ou de uma universidade católica ou de alguma outra instituição confessional de ensino superior. No entanto, todas as situações descritas acima são verídicas e ocorrem na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Além disso, todas elas são absolutamente corriqueiras, ou seja, estão longe de serem exceções ou de serem fatos isolados. Aliás: elas são corriqueiras em inúmeras outras universidades e outras instituições públicas do Brasil, de tal sorte que a UFPR é apenas um exemplo de uma situação generalizada no Estado brasileiro.

E daí que essas situações ocorrem na UFPR? Daí que a UFPR é uma instituição laica, que não professa nem pode professar nenhuma crença religiosa. Isso significa que a Universidade não pode ostentar crucifixos nem colocar bíblias para “reflexão pública” nas bibliotecas ou em qualquer outro recinto; também significa que a Universidade não pode encomendar missas ou cultos religiosos para o que quer que seja; também significa que os servidores da Universidade não podem referir-se a deus ou a suas crenças pessoais enquanto estiverem trabalhando na Universidade ou estiverem representando-a. As universidades particulares ou as confessionais têm total liberdade para exprimirem as crenças que lhes aprouverem, das maneiras que considerarem corretas: essa é uma possibilidade que as universidades públicas, entretanto, não possuem. Por que não?

Porque as universidades públicas integram o Estado brasileiro e o Estado brasileiro é laico, ou seja, não tem crença nenhuma. Há quem afirme, com bastante maldade, que o Estado laico é um “Estado ateu”, mas isso é falso. O Estado laico estaria mais para “Estado agnóstico”: afinal, o ateísmo consiste em negar deus, o que equivale a assumir uma posição religiosa, ao passo que o “Estado agnóstico” seria aquele que não decide a respeito das crenças individuais e, portanto, nesse sentido, não assume nenhuma perspectiva.

O princípio da laicidade do Estado é tão simples de enunciar quanto, à primeira vista, difícil de praticar. Como vimos, ele consiste simplesmente em que o Estado não tem religião, o que equivale dizer que as estruturas políticas e burocráticas – os órgãos públicos, em outras palavras – não podem beneficiar nenhuma religião nem podem professar nenhuma fé.

A crença religiosa dos cidadãos brasileiros é matéria de foro íntimo, não de foro público. Isso tem uma conseqüência muito clara e direta para o que se refere ao Estado: nem os servidores públicos nem os ocupantes de cargos públicos podem referir-se às suas crenças íntimas enquanto estiverem no exercício de suas funções. Afinal de contas, enquanto estão no exercício de suas funções, esses cidadãos referem-se ao conjunto da coletividade, isto é, a todos os brasileiros, e não apenas aos membros de suas próprias igrejas[1].

Embora a laicidade baseie-se em uma negação – a proibição de o Estado professar qualquer crença –, os benefícios que ela traz são enormes; na verdade, o Estado laico é o garantidor das liberdades que podemos chamar, sem margem para dúvidas, de liberdades verdadeiramente fundamentais, que são as de pensamento e de expressão: sem elas, ou seja, sem que seja possível a cada indivíduo pensar por si próprio e dizer o que pensa sem medo de retaliação, nenhuma outra liberdade é possível e a cidadania torna-se apenas uma palavra.

O Estado laico não é uma instituição gratuita. Isso quer dizer que ele não é nem fruto do acaso nem que não ele não tem valor – nem, além disso, que ocorra sem custos.

Ele começou a ser praticado e teorizado quanto as guerras motivadas pelas religiões cessaram na Europa, no século XVII. Até então, ser cidadão de um país equivalia a professar uma crença específica; a partir de então, que cada cidadão devia ao seu governo obediência às leis, mas não necessariamente devia seguir a mesma religião que seu governante. Foi mais ou menos nessa época que as religiões tornaram-se tema de foro íntimo, ficando no foro público os temas propriamente políticos[2]. Ainda assim, apenas no transcurso das revoluções Americana e Francesa, no final do século XVIII, é que surgiram os primeiros estados completamente laicos, em que o Estado não obriga os cidadãos a seguir nenhuma religião porque o próprio Estado não professa nenhuma religião.

No Brasil, o Estado laico foi instituído em 1890, com a proclamação da República, contra o privilégio que a Igreja Católica possuía como religião oficial. Com Benjamin Constant à frente, os participantes da proclamação buscavam uma sociedade de liberdades, com desenvolvimento e justiça social. Nos Estados Unidos, a separação entre a Igreja e o Estado foi uma solução de compromisso, pois não se determinou nenhuma religião como oficial porque não houve acordo a respeito de qual seria a melhor: aqui, ao contrário, consagrou-se desde o início como princípio norteador do Estado republicano que a garantia fundamental para as liberdades seria o Estado não possuir nenhuma religião.

Os fundadores da UFPR tinham exatamente os mesmos valores: há quase um século, ao criarem em 1912 a então Universidade do Paraná, Benjamin Lins, Victor Ferreira do Amaral e, mais do que todos, Nilo Cairo queriam desenvolver a sociedade paranaense em termos materiais, intelectuais e morais por meio dos estudos de nível superior. Juntamente com esses valores fundamentais, tinham clareza de que a separação entre a Igreja e o Estado é uma condição fundamental para que qualquer sociedade progrida. Não seria exagero dizer que eles tinham horror à idéia de um Estado que patrocinasse ou permitisse em seu interior práticas religiosas – mas, detalhe: práticas religiosas no e pelo Estado, mas não na sociedade.

Como dissemos, a laicidade não ocorre sem custos. Qual o seu custo? É este: cada indivíduo e cada igreja deve limitar suas ações no que se refere ao Estado, no sentido de respeitar a laicidade: não impor sua crença ao Estado nem usar o Estado para impor sua crença. No que se refere às igrejas, como há um aspecto institucional, é mais simples de perceber quando ocorre a sua interferência, mas no que se refere aos indivíduos a fiscalização da sociedade é bem mais difícil. Ainda assim, é necessário formular sem rodeios como deve ocorrer a autolimitação da parte dos indivíduos.

De maneira bastante direta: os indivíduos que atuam no Estado têm que ter claro que, como servidores ou agentes públicos, não podem professar nenhuma religião: não podem falar em deus, não podem distribuir panfletos de caráter religioso, não podem exibir símbolos religiosos em seus ambientes de trabalho. Isso pode parecer um esforço muito grande, mas não é – e por dois motivos.

Em primeiro lugar, quando um cidadão comum vai a uma repartição pública e vê um servidor público falando em deus, portando símbolos religiosos ou distribuindo panfletos com esse teor, o que o cidadão percebe não é um outro cidadão manifestando sua fé particular, mas o Estado como um todo, representado pelo servidor, demonstrando sua adesão a determinados princípios religiosos. Em outras palavras, o cidadão comum verá que as autoridades beneficiam uma crença e, portanto, afirmam que essa crença é a “correta” para ser seguida. Não há dúvidas de que essa é uma forma de constrangimento, de imposição de crenças, de opressão.

O segundo motivo porque a autocontenção de servidores e agentes públicos não exige um grande esforço ou não é muito pesada é o seguinte. Imagine-se um trabalhador no mercado de trabalho: ao ingressar em qualquer emprego, ele submete-se a uma disciplina específica – a um código de conduta. São regras escritas e não-escritas que devem ser seguidas para o bom desempenho das atividades, com procedimentos a realizar e ações a evitar. Eis alguns exemplos simples mas que ilustram com clareza a idéia: não se pode falar palavrões, não se pode ir mal-vestido (ou, por outra: em vários casos é necessário usar determinados tipos de roupas), não se pode ir trabalhar alcoolizado e assim por diante. Todos esses exemplos são proibições que os trabalhadores aceitam como corretas para o bom desempenho de suas funções. Essas proibições ocorrem para o ambiente do trabalho, não para o espaço doméstico: em suas casas, no foro íntimo, os indivíduos têm liberdade para fazer mais ou menos tudo o que desejam.

Ora, se é aceitável que os indivíduos adaptem suas condutas para o trabalho em geral, deixando de agir de determinadas maneiras e agindo de outras formas em relação a como procedem em suas famílias, é ainda mais aceitável que os servidores públicos tenham um comportamento claro para realizarem suas atividades: afinal de contas, de modo geral é possível aos cidadãos escolherem uma empresa ou outra, mas os serviços públicos são universais. A bem da verdade, no âmbito do serviço público federal, existe uma lei que estipula precisamente esses comportamentos aceitáveis e inaceitáveis: trata-se do Decreto n. 1 171/94, o Código de Ética do Servidor Público Civil Federal. No caso da religião, se mesmo em empresas privadas é consensual que não se deve conversar esse assunto, o que se dirá no âmbito do Estado!

Apesar de todos esses motivos para a laicidade do Estado, há dois argumentos especialmente daninhos que se utiliza para tentar justificar o uso de símbolos e a prática de cultos religiosos no âmbito público: digo “argumentos”, mas são mais sofismas políticos. O primeiro diz respeito às crenças da população em geral; o segundo baseia-se em uma certo tradicionalismo.

Comecemos pelo segundo sofisma. Para justificar a celebração pelo Estado de determinada crença religiosa, muitos afirmam que se tratam de práticas há muito tempo praticadas e que já se tornaram tradicionais. Exemplos: a transmissão em emissoras públicas (isto é, estatais) de missas e cultos e a presença de crucifixos em bibliotecas públicas, tribunais, parlamentos e espaços públicos de modo geral. O problema aqui é que essa “tradição” baseia-se no desrespeito a um dos princípios fundamentais da República brasileira: é como querer justificar o coronelismo ou a corrupção ou a miséria no país afirmando que eles são “tradicionais”; é querer justificar algo errado porque esse errado existe faz tempo e é mais ou menos comum. Além disso, essas “tradições” são vistas como imutáveis e, literalmente, sacrossantas, isto é, intocáveis: é o raciocínio que se utiliza para justificar, por exemplo, o uso da violência física no trote aos calouros das universidades; ou para que bares, lanchonetes e restaurantes sofram enormes calotes por estudantes de Direito no dia 11 de agosto (o “dia do pindura”); ou que mulheres sejam espancadas por maridos supostamente traídos; ou que, em países que aceitam a xaria – a lei tradicional do islã – ladrões tenham as mãos decepadas e mulheres consideradas adúlteras sejam apedrejadas até a morte.

O argumento que se refere à religião da população brasileira é mais especioso, mas não é menos falso. O fato de a maioria da população brasileira ter uma determinada crença é freqüentemente invocado como justificativa para que o Estado adote práticas derivadas diretamente dessa crença; em outras palavras, a “vontade da maioria da população” é uma justificativa para que a (vontade da) minoria seja desconsiderada. “Maioria” e “minoria”, aqui, podem variar, é claro: no caso específico do Brasil podemos considerar a “maioria católica” – cerca de 73% da população – ou a “maioria cristã” – cerca de 90% da população –; assim, apenas em casos específicos é possível falar simplesmente em “maioria”, de tal sorte que na prática há apenas maiorias, no plural. Mas a questão é que tanto faz quem é maioria ou quem é minoria: o que importa é que as minorias devem ser respeitadas como cidadãs, ou seja, em seus valores e, portanto, a maioria não pode usar sua força numérica para impor suas crenças à minoria.

A relação entre maioria e minoria remete a uma diferença entre “democracia” e “república”. Enquanto a democracia é o governo da maioria, a república é o governo baseado na lei e que respeita as minorias. Sem dúvida que essa definição que apresentei de democracia é sujeita a polêmicas, mas a verdade é que não existe uma democracia tout court, exceto se considerarmos a experiência da Atenas antiga, que foi celebrizada durante a magistratura de Péricles, no século V a. c.; por outro lado, se pensarmos nos grandes teóricos republicanos, especialmente os das revoluções Francesa e Americana, eles sempre objetaram à democracia a possibilidade de tirania das maiorias que ela pode criar.

Para evitar mal-entendidos, quero deixar claro que de maneira alguma considero que a democracia, como ela é percebida nos dias atuais, seja simplesmente a imposição das vontades da maioria sobre a minoria oprimida. Entretanto, a verdade é que o argumento que justifica ser legítimo, no Brasil, o Estado assumir ares cristãos baseia-se exatamente nessa concepção de democracia, ignorando os elementos republicanos de respeito às diferenças e de Estado de Direito. Essa concepção de democracia, claro, é bastante conveniente, pois beneficia quem pode mais e manda às favas quem pode menos, desconsiderando a idéia de cidadania, isto é, o respeito universal aos membros de uma coletividade política.

Essa idéia de democracia religiosa majoritária já foi utilizada no Brasil: durante a Guerra Fria, governos progressistas, como o de Juscelino Kubitschek, e governos autoritários, como os dos militares, fizeram apelo constante ao caráter supostamente cristão do país. O problema que surge é o seguinte: se tivermos que escolher – e não há dúvidas de que se trata aqui, precisamente, dessa escolha – como definiremos o Brasil, como um país republicano ou um país cristão? O que nos define como comunidade política é uma crença compartilhada pela população ou é o respeito universal a leis universais?

Cada uma dessas definições tem conseqüências claras e muito diversas entre si. Se o Brasil é definido pelo respeito às leis, para ser brasileiro basta respeitar as leis brasileiras e cumprir as obrigações cívicas definidas por essas leis: esse é o conceito de cidadania definido durante a Revolução Francesa. De acordo com essa perspectiva, a partir de 1792 – ano da proclamação da I República francesa – para ser francês não importava mais se cada indivíduo era judeu, católico, huguenote (protestante) ou se nascera na Alemanha, na Inglaterra, na China ou no Zaire: bastava aceitar e seguir as leis e os usos franceses (além de falar francês).

Por outro lado, se o que define o brasileiro é a adesão à religião cristão, a conseqüência direta é que os não-cristãos não são brasileiros, ou melhor, não são “verdadeiros” brasileiros; discordar de ou criticar alguma das religiões cristãs é alta traição, é crime de lesa-pátria. No contexto da Guerra Fria, era comum denunciar os crimes que os soviéticos praticavam contra quem discordava dos dogmas comunistas – afinal de contas, o comunismo era a doutrina oficial do Estado –, incluindo aí todos os que confessavam crenças religiosas; mas muitas das pessoas que denunciavam esses distantes crimes do comunismo praticavam as mesmas ações em casa, ou seja, para o que nos interessa, o Brasil: os não-cristãos eram sujeitos a suspeitas a que os cristãos não estavam.

Outros exemplos semelhantes são as perseguições que religiosos nos Estados Unidos promovem contra quem discorda deles ou simplesmente não é da mesma religião que eles (nos dias atuais, em particular os muçulmanos): não é o que a candidata a vice-Presidente na chapa de John McCain, Sara Palin, tem feito a respeito de Barack Obama, ao sugerir que “ele não é como nós [cristãos]”? Ou, ainda, os atos de profunda intolerância praticados pelos talibãs no Afeganistão ou pelo regime dos aiatolás no Irã[3]?

A verdade é que os governantes brasileiros não estão muito atrás desses exemplos e dão péssimo exemplo à população, rejeitando de maneira demagógica a laicidade do Estado: sejam os presidentes da República que inscreveram nas cédulas “Deus seja louvado” e, depois, deixaram essa frase em negrito; sejam os autores da Constituição Federal de 1988 que inseriram um agradecimento a deus no “Preâmbulo” da Carta Magna; sejam governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores que afirmam governar com base na vontade divina; seja o Presidente da República que a todo instante fala em deus; sejam os ministros de Estado que usam verbas públicas para viajarem a encontros religiosos ou para patrocinar encontros de suas seitas; seja o governador do Paraná que em 2003 resumiu as comemorações dos 150 anos do estado a uma missa pública e a palavras de ódio contra empresas transnacionais de soja transgênica.

Mais do que isso. Nas recentes eleições para vereadores municipais, os analistas políticos indicaram uma série de fatores interessantes: as conseqüências eleitorais dos mecanismos de votação; as “vontades populares” expressas pelas novas bancadas de vereadores e assim por diante. Entretanto, um elemento central foi completamente ignorado ou desprezado: a quantidade assustadora de candidatos que fizeram suas campanhas apelando diretamente para os valores religiosos. “Acredita em deus e valoriza o ser humano”, “Evangelizando na política”, “Com deus, por você” foram alguns dos motes das campanhas não apenas em Curitiba, mas, pelo que se pôde perceber pelas matérias jornalísticas divulgadas nos meios de comunicação, no país inteiro. Considerando que os parlamentares devem representar interesses, a pergunta que não quer calar-se é a seguinte: quais os interesses que os candidatos religiosos representam? Quaisquer que sejam, certamente que a laicidade do Estado não está entre eles[4].

À parte algumas importantes iniciativas da sociedade civil – como as organizações não-governamentais Brasil para Todos e Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos e o Observatório da Laicidade do Estado, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) –, a única iniciativa política de que temos conhecimento e que visasa a combater esse gênero de desvio institucional é da autoria da ex-Deputada Federal e ex-Juíza Denise Frossard, que propôs o Projeto de Lei Complementar n. 216/2004, vedando aos sacerdotes o exercício de funções eletivas. Não por acaso, Denise Frossard é da cidade e do estado do Rio de Janeiro, onde, como se sabe, há teocracias em germe faz tempo. É forçoso reconhecer que, também não por acaso, o seu projeto de lei foi rejeitado no Congresso Nacional, onde há crescentes bancadas especificamente religiosas.

Começamos este artigo fazendo referência à UFPR; é importante concluí-lo voltando a ela. Há algum tempo a Universidade comemorou seus 90 anos: apesar da propaganda a favor do “papel que desempenha na sociedade paranaense”, não houve uma única menção aos seus fundadores; na verdade, exceto os historiadores e alguns especialistas em história do Paraná, o fato é que a comunidade universitária ignora completamente quem foram esses fundadores e quais os ideais que os moveram ao criar a então Universidade do Paraná. Pois bem: face à missa que a Reitoria da UFPR mandou rezar e face a todas as manifestações de imbricação entre igreja e Estado na Universidade, essa ignorância não poderia ser mais emblemática. Passamos da Universidade Federal do Paraná para a Universidade Confessional Federal do Paraná.





[1] Isso tem uma outra conseqüência: as religiões não são temas políticos, ou seja, não é possível e não é aceitável, nesse sentido, que se faça campanhas políticas fazendo apelo às crenças individuais de cada um.

[2] Conforme indicou meu amigo Valter Duarte, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na verdade o processo de laicização como é conhecido atualmente começou no final da Idade Média – mais precisamente na Inglaterra –, quando, por motivos políticos e filosóficos, passou-se a buscar fundamentações não-religiosas para a autoridade política. As obras de John Locke sobre a tolerância, sobre a organização política e sobre o entendimento humano foram importância capital nesse sentido.

[3] Convém notar: esse mesmo raciocínio de comunidade política fundada em valores religiosos – com as conseqüências indicadas acima – foi recentemente utilizado pelo Presidente da República da França e pelo Papa para proibir o ingresso da Turquia na União Européia. Ora, o que Nicolas Sarkozy e Bento XVI pressupõem é que a Europa é essencialmente cristã, deixando de lado 1) o profundo e crescente secularismo das sociedades européias; 2) o caráter principalmente republicano das democracias européias; 3) a importância capital que tiveram os muçulmanos para o desenvolvimento da Europa e mesmo do catolicismo – afinal, sem os árabes não existiria São Tomás de Aquino –; 4) o longo e multimilenar relacionamento político, econômico e cultural entre os europeus e os muçulmanos (particularmente turcos) e 5) o fato de que o único país muçulmano que assumiu convictamente os valores (ocidentais) da secularização e da democratização foi a Turquia. Em suma: essa proibição é uma pérola da intolerância religiosa convertida em argumento político, a serviço do “choque de civilizações”. Não por acaso, por outro lado, Sarkozy e Bento XVI têm defendido o conceito de “laicidade positiva”, segundo o qual é lícito ao Estado professar alguma religião – o que, em outras palavras, é a própria negação da laicidade.

[4] É tão grande a quantidade de infrações ao princípio da laicidade do Estado que seria verdadeiramente cansativo tentar citá-las todas. Por isso, para encerrar aqui essa lista, citamos apenas mais dois exemplos: 1) a existência de capelães concursados na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e, claro, nas Forças Armadas; 2) as reiteradas propostas de “Ensino Religioso” obrigatório no Ensino Fundamental (e, se duvidar, também no Ensino Médio), a ser ministrado, sem dúvida, por sacerdotes.