A IPB e a República
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Antes de mais nada: desejo congratular os todos
os presentes por sua participação no II Ciclo de Palestras do Centro
Positivista do Lavradio, bem como todos os expositores e palestrantes
o
Da mesma forma, importa parabenizar nosso correligionário
Erlon Jacques de Oliveira por ter tomado a frente e organizado este novo evento
o
Por fim, mas não menos importante, devemos
agradecer e parabenizar a direção da Sociedade Brasileira de Belas Artes por
participar do evento e permitir que o Centro Positivista do Lavradio tenha
lugar em suas instalações
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Quando fui convidado para participar deste
evento, o tema sugerido foi o do título oficial desta exposição: “a Igreja
Positivista do Brasil e sua atuação na República”
o
A primeira idéia que me ocorreu, a partir disso,
foi estabelecer uma relação de atividades da IPB por um lado desde 1881, quando
Miguel Lemos fundou a Igreja, até o glorioso dia de 15 de novembro de 1889 e,
por outro lado, desde essa data até 1927, quando ocorreu a transformação de
Teixeira Mendes
o
Todavia, por mais útil que seja uma tal relação
– e o fato é que esse tipo de lista é cada vez mais e urgentemente necessário!
–, parece-me que o tipo de problemas por que a República brasileira atravessa
desde há vários anos, bem como o tipo de filosofias políticas que se propõem,
atualmente, a oferecer soluções para problemas que elas mesmas criam; enfim,
parece-me que a situação presente da nossa República exige um tipo um pouco
diferente de reflexão: não estritamente um rol de atividades, mas, antes disso,
a inspiração profunda dessas atividades
o
Assim, se o título desta exposição é “A atuação
da IPB em favor da República”, o seu subtítulo deve ser: “República brasileira
e republicanização do Brasil”
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Indo diretamente ao ponto: sem ignorar ou
desprezar os períodos posteriores, que já se referem a outras conjunturas, o
fato é que o esforço da IPB, no meio século que vai de 1881 a 1927, foi o de instituir a República no Brasil e o de republicanizar o país
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O devemos entender por “instituir a República” e
“republicanizar o país”?
o
Instituir
a República significava substituir a monarquia – regime caracterizado pela
sociedade de castas, em que uma família, meramente por decreto divino, tinha o
direito nato de governar o país e, daí, supostamente, a capacidade moral,
intelectual e prática para tanto – por um regime humano, caracterizado
francamente pela busca do bem comum, em que a moral estabelece os parâmetros
gerais dos objetivos sociais e da conduta, além do relativismo e da fraternidade,
ou seja, em outras palavras, mudar o
regime monárquico pelo regime republicano
o
Republicanizar
o país significa(va) desenvolver os usos e costumes próprios à república,
ou seja, desenvolver na prática o conteúdo social e moral indicado no projeto
da instituição da república; de maneira mais concreta, esse aspecto consiste em
proscrever a violência nas relações internas e nas relações externas,
substituindo-a pela fraternidade universal; estabelecer e garantir as plenas
liberdades de pensamento, expressão e associação; garantir a plena liberdade
industrial; desenvolver as relações industriais no sentido dos deveres mútuos
entre patrões e empregados
o
Em termos de sociologia política contemporânea,
um aspecto é institucional (proclamar
a República), o outro é social-cultural
(republicanizar o país); mas talvez muito mais importante que isso é indicar
que cada um desses aspectos corresponde aos dois âmbitos do programa
revolucionário na França, em termos de republicanismo, conforme indicado por
Augusto Comte no Discurso sobre o
conjunto do Positivismo (p. 70):
“Em seu significado negativo, o princípio
republicano resume definitivamente a primeira parte da Revolução [Francesa], ao
interditar todo retorno de uma realeza [...]. Por sua interpretação positiva,
ele começa diretamente a regeneração final, ao proclamar a subordinação
fundamental da política à moral, a partir da consagração permanente de todas as
forças quaisquer ao serviço da comunidade”
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Isso pode parecer pouco, mas não é; muito foi
feito, especialmente no sentido da republicanização do país, mesmo antes do 15
de Novembro: a assombrosa marca de mais de 600 publicações da Igreja
Positivista entre 1881 e 1927 é um sinal claro disso
o
Da mesma forma que os positivistas, a República
e o republicanismo eram ideais levados a sério no Brasil – apesar do que a historiografia
neomonarquista e marxista afirma desde 1930, para quem a I República foi um
longo período (de 41 anos!) em que a população teria vivido no mundo da Lua,
permanentemente alienada, fingindo que levaria a sério o republicanismo, mesmo
apesar das vívidas disputas intelectuais, sociais e políticas da época
§ Os
marxistas não têm muito compromisso com as instituições sociais que não sejam
as propostas pelos comunistas, o que equivale a dizer que eles não tinham nenhum
compromisso com a I República e sua adesão a quaisquer propostas seguia a
orientação da União Soviética; os regimes contemporâneos não comunistas são genericamente tachados de "burgueses" e, como tais, são desprezíveis por definição
§ Igualmente,
os neomonarquistas por definição não tinham e não têm nenhum compromisso, nem
com a I República nem com o republicanismo
o
Deveria ser evidente, mas não é: a adesão à I
República e, ainda mais, ao republicanismo, não equivalia a ignorar os
eventuais problemas do regime: assim, a maior parte dos republicanos, preocupados
com o regime e com o caráter republicano da I República, apontavam problemas e
indicavam sugestões
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De qualquer maneira, desde a Proclamação da
República, os ideais difundidos durante a monarquia passaram a ter que
enfrentar o teste da realidade, com todas as dificuldades que isso implica;
concomitantemente e em parte em conseqüência disso, surgiram as desilusões,
juntamente com as críticas ao novo regime: embora o republicanismo fosse forte
durante todo o período da I República, o fato é que nem sempre as críticas
foram contrabalançadas por necessárias reafirmações do ideal republicano
o
Em face das desilusões e das críticas feitas à
República após 1889, temos que perceber pelo menos três aspectos:
o
1) Os positivistas foram, desde o início,
republicanos históricos e sempre tiveram enorme clareza de que há uma distância
entre os ideais e a realidade e que, por mais que a realidade possa não corresponder
aos ideais, isso não é motivo para desistir dos ideais em si – e, é claro,
ainda menos no caso de ideais humanos, científicos, relativos, históricos e
altruístas
§ Adicionalmente
a esse aspecto, o enorme prestígio conferido pela República ao Positivismo –
dado, entre outros motivos, pela fundamental participação de Benjamin Constant
no movimento revolucionário, resultando no Decreto n. 4 de 19.11.1889 (bandeira
nacional), no Decreto n. 119-A, de 7.1.1890 (separação igreja-Estado), e no
Decreto n. 155-B, de 14.1.1890 (feriados nacionais) – associou a sorte do
regime à sorte do próprio Positivismo, de tal maneira que um certo declínio do
prestígio da República foi interpretado como declínio moral e intelectual do
Positivismo
o
2) Houve críticas à República provenientes de
republicanos históricos e de personagens ligadas estreitamente à fundação do
regime; não consideramos aqui as críticas feitas nos anos imediatamente
posteriores ao 15 de Novembro, mas as de décadas após, como as de Alberto
Torres, que, na década de 1910, embora considerasse ponto pacífico a república
presidencialista, afirmava a necessidade de desenvolver a nação no país e
revalorizar a política, na forma específica de uma revisão constitucional – tão
profunda que, na prática, equivalia a uma nova constituição
o
3) Passadas algumas décadas do advento do
regime, na década de 1920 a adesão ao republicanismo era mais fraca, novas
filosofias despontavam como “verdadeiramente democráticas” (a exemplo do
comunismo e do nascente fascismo) e, portanto, a defesa tanto da República como
regime concreto quanto do republicanismo como ideal político já era bem mais
fraco: nesse ambiente, requentadas defesas da monarquia e inovadoras defesas do
autoritarismo ganhavam guarida nas críticas à República – mas, a essa altura e
em tal situação, o republicanismo já não era mais uma opção viável para muitos
pensadores e muitos políticos
§ Temos,
assim, por exemplo, Oliveira Vianna, que corresponde exatamente às
características que indicamos acima: críticas extremas à República (talvez
mesmo desprezo pelo regime e pelo ideal), saudades mal disfarçadas da monarquia
(com idealizações fantásticas, quase alucinadas, desse período) e simpatia,
também mal disfarçada, por propostas e regimes autoritários
§ Essas
críticas foram aproveitadas e aglutinadas após 1930, quando um político surgido
em um ambiente influenciado pelo Positivismo mas que não reconhecia nenhuma
dívida e certamente pouco valor no Positivismo, assumiu o poder e implementou
um regime que, não por acaso, era a negação prática do Positivismo: trata-se de
Getúlio Vargas, que, também não por acaso, não teve nenhum pudor em associar-se
à Igreja Católica em 1931 para retomar a religião oficial de Estado e aos
fascistas, em novembro de 1937, para estabelecer o chamado “Estado Novo” (em
1941, com o objetivo de justificar o golpe de 1930 e, por extensão, o golpe de
1937, o Ministro da Educação e da Cultura do Estado Novo, Gustavo Capanema,
retomou largamente as virulentas críticas de Oliveira Vianna à República)
-
A situação descrita acima é problemática devido
a uma série de aspectos, estreitamente vinculados entre si:
o
Por um lado, considera-se que a I República
acabou porque, acima de tudo, ela teria merecido acabar, supostamente porque
ela teria sido “oligárquica”, antipopular, dissociada da realidade da nação:
certamente ela tinha inúmeros problemas, mas isso não quer dizer que ela não
tivesse virtudes nem que a população não a levasse a sério, não a considerasse
um regime e um projeto sérios e dignos de serem defendidos
§ Por
exemplo: nunca na história do Brasil tivemos nenhum regime político que levasse
a sério a laicidade do Estado como ocorreu na I República; não era perfeita,
mas pautada por leis sérias; inversamente, todos os regimes “democráticos”
posteriores desprezaram, como desprezam, a laicidade do Estado (a despeito de
declarações formais de autoridades), ou seja, fazem questão de usar o poder do
Estado para impor doutrinas políticas, sejam teológicas, sejam metafísicas,
sejam científicas
o
Como indicamos, o próprio sucesso do Positivismo
no advento da República conduziu a associar a Religião da Humanidade ao regime;
se o regime mereceu ser posto abaixo – juízo que, revelando o estrondoso
sucesso do golpe de 1930, basicamente não é posto em questão –, o Positivismo
também mereceu, como supostamente mereceria, ser deixado de lado
o
Em termos de republicanismo, o desprezo pela
República, manifestado por Oliveira Vianna e consagrado por Getúlio Vargas e
Gustavo Capanema, tornou-se uma característica do pensamento político brasileiro
desde a década de 1920 (ou, se quiserem, desde 1930), criando um vazio político
e intelectual em termos de regime político, que foi ocupado pelas diversas
concepções de “democracia”, que vão desde a democracia iliberal de
Vargas-Oliveira Vianna-Francisco Campos, passando pela democracia liberal dos
nossos liberais católicos conservadores, como Miguel Reale, Alceu Amoroso Lima,
Antônio Paim, Roberto Campos e outros, e chegando a outras democracias, como a
comunista, de Luís Carlos Prestes
§ O
vácuo político foi substituído, portanto, por filosofias políticas totalmente
anti-republicanas, demorando décadas até que tivéssemos a maturidade política,
institucional e social para tentarmos, de alguma forma, voltar a praticar
alguma coisa parecida com o republicanismo – mas, note-se, ainda de maneira
muito distante do que era o republicanismo da I República
§ Importa
insistir: no Brasil, o juízo emitido por Oliveira Vianna e assumido por Gustavo
Capanema-Getúlio Vargas, segundo os quais a República mereceu ser posta abaixo,
foi assumido em 1930 e considerado legítimo desde então, basicamente sem
contestação séria: isso era válido nas décadas de 1930 e 1940, mas,
desgraçadamente, continua válido até hoje, 2023: não há verdadeira tradição
republicana no país, como se vê na plêiade anti-republicana de partidos de
aluguel que usam as palavras “república” e “republicano” sem nenhuma
preocupação com o significado dessa palavra (aliás, não por acaso, o mesmo
valendo para as palavras “ordem” e “progresso”)
§ No
lugar do republicanismo afirmou-se a “democracia”; nós, positivistas, não temos
nenhuma ilusão a respeito do caráter potencialmente autoritário da democracia:
a proclamada “vontade do povo” é vazia por si só, correspondendo apenas aos
caprichos irrefreados e absolutos de uma genérica, indefinida e indefinível
“vontade geral”, que considera odiosa as liberdades de pensamento, de expressão
e de associação e que também rejeita a submissão da política à moral com a
necessária separação institucional entre igreja e Estado
Portanto, a
oscilação entre autoritarismos e períodos liberais, que ocorreu após 1930,
corresponde à própria concepção de “democracia”, mas afasta-se da de
“república”; inversamente, a democracia só se torna aceitável quando, apesar de
si mesma e dos seus próceres, ela aproxima-se da república
§ Por
fim, devemos notar que a rejeição da república a partir da década de 1920
correspondeu, não apenas ao desprezo por um regime e por um alto e belo ideal,
mas também a implantação consciente de um largo período de amnésia
institucional, política e social no Brasil: afinal de contas, tornou-se um
anátema defender o republicanismo, que dirá defender a I República: não é por
acaso que, fingindo que a I República e o republicanismo não existiram, de
maneira escandalosa tornou-se de bom tom defender a monarquia (como se ela não
um regime de castas, escravista e escravocrata!) e mesmo a Era Vargas, aí
incluído o Estado Novo!
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Podemos voltar, então, ao início desta exposição:
como dissemos, celebrar a atuação republicana da Igreja Positivista do Brasil
não é, não pode ser e não tem como ser apenas a enumeração, seqüencial ou não,
da longa, duradoura, corajosa, profunda campanha republicana dos positivistas
ortodoxos brasileiros
o
Evidentemente, essa atuação foi importante por
si só, pelos seus inúmeros resultados concretos e também pelos valores
difundidos por ela
o
Mas o conjunto dessa atuação talvez seja o mais
importante para nós, atualmente: muito longe de serem propostas e ideais
“antigos”, “datados”, “ultrapassados”, que supostamente “mereceram perecer”, o
fato é que os positivistas ortodoxos (mas não apenas eles!) indicaram com
clareza como é possível conciliar o apoio a um regime político sem que com isso
se degrade a sifocantas aduladores, “acríticos”: a concepção de “poder Espiritual”
legitimador, avaliador, fiscalizador, associada necessariamente à separação
entre os poderes Temporal e Espiritual (vulgarmente chamada de “laicidade do
Estado”) e também à bela concepção dantoniana, ao mesmo tempo moral, política e
histórica, de que “só se destrói o que se substitui” – tudo isso e muito mais
garantiu a autonomia e, portanto, a dignidade do poder Espiritual (e, por
extensão, da chamada “sociedade civil”); as preocupações e as propostas dos
positivistas, longe de serem “datadas”, revelam-se cada vez mais atuais,
necessárias e urgentes: esse é o verdadeiro republicanismo, o que,
evidentemente, cumpre com urgência retomar e reafirmar