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10 junho 2025

Monitor Mercantil: Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

No dia 9 de junho o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o meu artigo "Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas".

A versão do jornal está disponível aqui.

Reproduzimos abaixo o texto.

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Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

Jornalismo reduz política às fofocas em associação com financismo 

Por Gustavo Biscaia de Lacerda

TV digital aberta (foto de Valter Campanato, ABr)

Considera-se, de modo geral, que jornalismo e política devem andar juntos e que tanto cada um deles, em particular, quanto sua união são virtuosos. Entretanto, essas concepções são altamente discutíveis e, com frequência, equivocadas.

A princípio, não há o que discutir a respeito da importância da política. Ela é importante porque organiza a vida coletiva; gostemos ou não, queiramos ou não, todos estamos sob a influência necessária da atividade política. Mas a submissão necessária à política gera, amiúde, confusões práticas e teóricas, nas quais se considera que “tudo é política”, ou seja, que tudo se reduz à disputa de poder.

Por mais importante que seja a política, a sociedade não se reduz a ela: os aspectos filosóficos, culturais e morais regulam, moldam e orientam a política; já os aspectos materiais sempre exercem sua pressão. O resultado é que a política molda, mas também é moldada.

Mas há várias maneiras de entender a política; em inglês, distingue-se a politics (a política do dia a dia), a polity (a estrutura sociopolítica geral, que alguns traduzem como “constituição”) e a policy (cada uma das políticas públicas). A disputa de poder corresponde à politics, ao passo que as policies e, ainda mais, a polity exigem consensos, convergências, legitimidade e aceitação de regras. Claro que a politics influencia a polity e as policies, mas confundir uma coisa com as outras, reduzir a polity à politics, é um grave erro, resultando apenas em cinismo e violência.


Passemos ao jornalismo. Sua missão básica é informar os acontecimentos; assim, há vários tipos de jornalismo: investigativo, científico, econômico, de amenidades etc. Mas talvez o mais famoso e prestigiado seja o político. O jornalismo político dedica-se a narrar o dia a dia da política: ele se concentra na politics. Como as policies e a polity são de longo prazo e conceituais, elas são “chatas”, desinteressantes e não recebem atenção jornalística.

A preferência jornalística pela politics e a rejeição da polity-policy têm várias consequências. Uma primeira é a concentração das coberturas na atividade parlamentar; uma segunda é a defesa (implícita ou explícita) da atividade dos parlamentares contra o governo. A política do dia a dia é das disputas, das briguinhas, dos ciúmes, das intrigas… Com frequência, isso recebe o título edulcorado de “negociações”, mas essa é apenas uma forma empolada de referir-se ao que costuma ser apenas mesquinhez.

O jornalismo especializado em intrigas e mesquinhez não é outra coisa senão fofoca. Como as intrigas são incessantes, mas despertam interesse e paixões, os fofoqueiros têm prestígio e legitimam a concepção de que as fofocas que noticiam (“repercutem”) são a “verdadeira” política. Claro que os políticos — ou melhor, os parlamentares — saem ganhando com isso, obtendo exposição pública e sendo apresentados como “ativos”, “representativos” etc.

Esse é um sistema que se retroalimenta, em que os parlamentares (especialmente no parlamentarismo) e os jornalistas beneficiam-se mutuamente: as intrigas mesquinhas são vendidas como a verdadeira política, e as fofocas parlamentares são vendidas como verdadeiras notícias. Esses dois blocos falam em causa própria e apoiam-se mutuamente, de maneira altissonante ou até estridente; com isso, as fofocas são apresentadas como a opinião pública, e as intrigas, como a manifestação do bem comum.

Tudo isso é péssimo. Para piorar, no Brasil, o jornalismo econômico não se preocupa em informar, mas atua ativa e conscientemente como porta-voz do liberalismo econômico, isto é, de elites financistas internacionais que não querem a regulação do capital nem sua taxação e, para isso, impõem as concepções de Estado mínimo, de iniciativa privada “eficiente” e de servidores públicos incompetentes. É fácil ver que o jornalismo de fofocas é convergente com os porta-vozes do financismo internacional.

Augusto Comte, o fundador da Sociologia, já criticava e denunciava, no século 19, essa união entre o jornalismo de fofocas e a política parlamentarista — que, devemos repetir, finge ser a opinião pública e despreza a política como projeto social amplo. Desgraçadamente, o que o fundador do Positivismo criticava já em 1824 corresponde à realidade brasileira atual.

O que se vê nos grandes jornais do país é exatamente a fofoca parlamentar vendida como jornalismo político e as intrigas parlamentares vendidas como grande política. Esse vínculo é camuflado pelas críticas reiteradas que se fazem à “falta de habilidade” do presidente Lula para “negociar” com o Congresso Nacional: o parlamento é fortemente reacionário e assustadoramente corporativista, duas características que foram estimuladas pelo governo anterior em sua busca dupla de dar um golpe de Estado e de evitar o impedimento.

Claro que o viés conservador do atual parlamento torna-o mais reticente às propostas do governo; mas os recursos que a Constituição Federal de 1988 legou ao presidente da República sempre bastaram para acomodar ou contornar dificuldades ideológicas. Entretanto, desde 2019 — na verdade, desde antes, desde 2016 —, o Congresso Nacional aprofundou cada vez mais o seu caráter clientelista, corporativista e — não há como evitar — parasitário, cobrando um preço cada vez maior para manter um simulacro de “governabilidade”. Esse parasitismo, associado ao golpismo/anti-impedimento, encontrou seu paroxismo no aberrante “orçamento secreto”.

Uma característica notável do atual governo Lula é sua moderação; seu lema de campanha — “União e reconstrução” — dá a exata medida das necessidades atuais do país e evidencia o aspecto profundamente republicano de sua proposta. Sendo bem direto, essa é uma proposta de um verdadeiro estadista. É claro que Lula não é perfeito e que as mais diversas críticas podem ser feitas contra ele, como a respeito da política identitária, com suas cotas divisionistas, e das ambiguidades em relação à Rússia e à China; mas, no conjunto, o governo está na direção certa e adota as medidas urgentes e necessárias para o desenvolvimento social e econômico do país.

Se está na direção certa, o que dificulta a ação de Lula? Basta bom senso e honestidade para perceber que é o parlamento parasitário, que é mesquinho, impede o desenvolvimento nacional, trai a confiança do governo e protege — senão estimula — o golpismo fascista. Por seu turno, o jornalismo político, reduzindo a política às fofocas e em associação com os porta-vozes do financismo internacionalista, finge que tudo isso não é uma agressiva chantagem nem o bloqueio de um programa social e político verdadeiramente republicano.

Não há país que vá para frente nessas condições. Mas também não há soluções simples: é necessário evitar — ou combater — a demagogia extremista (atualmente na versão fascista) e as fake news, que correspondem às versões extremas e irmanadas do parlamento parasitário e do jornalismo de fofocas. O caminho é longo.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

12 maio 2025

Monitor Mercantil: "Carreiras típicas de Estado" e estabilidade

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou no dia 12.5.2025 um artigo de minha autoria intitulado "'Carreiras típicas de Estado' e estabilidade". 

Reproduzimos abaixo o texto. A versão eletrônica está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/carreiras-tipicas-de-estado-e-estabilidade/.

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“Carreiras típicas de Estado” e estabilidade 

Há algumas semanas fiz uma visita técnica à Biblioteca Pública do Paraná, em sua bela e imponente sede atual, inaugurada em 1954. Aprendi que tal sede foi construída para que a Biblioteca seja um centro cultural – o que de fato é, com grande competência –; mas, para o que nos interessa aqui, também descobri que o seu quadro técnico permanente, desde os anos 1980-1990, foi reduzido para cerca de 20% atualmente. Esse dado estarrecedor levou-me às reflexões abaixo.

Nos anos 1990, o então Ministro da Administração e Reforma do Estado, Luís Carlos Bresser Pereira, em seu projeto de reforma do Estado propôs a noção de “carreiras típicas de Estado”. Em dezenas de publicações, ele jamais indicou quais seriam de fato essas carreiras; entre percalços, sua proposta de reforma foi implementada pela metade, mas no final das contas a expressão “carreiras típicas de Estado” deitou raízes na administração pública, expandindo-se do nível federal para, principalmente, os níveis estadual e municipal.

Abstratamente, a concepção de “carreiras típicas de Estado” até faz sentido: são carreiras de serviços que só se podem realizar pelo Estado; assim, essas carreiras precisam ter servidores públicos com estabilidade (ou seja, enquadrarem-se no Regime Jurídico Único, o RJU, como “estatutários”). O conceito subjacente a isso é que as carreiras “não típicas” não precisam ter estabilidade, podendo ser celetistas (enquadrados na Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT); na verdade, as carreiras não típicas não precisam nem se constituir em “carreiras”. A diferença de enquadramento jurídico é profunda: a estabilidade dos estatutários é obtida após três anos de serviço efetivo, durante os quais são continuamente avaliados (e, diga-se de passagem, também são avaliados das mais diferentes maneiras após esse prazo); essa estabilidade também os torna impermeáveis às pressões políticas e, dessa forma, eles podem desenvolver de fato carreiras profissionais, elaboradas considerando o longo prazo, paralelamente a projetos públicos de longo prazo. Não há dúvida de que a estabilidade também beneficia o aumento dos salários.

Em contraposição, os servidores celetistas podem ser demitidos a qualquer momento (ad nutum). Isso impede todos os benefícios trazidos pela estabilidade: os servidores não têm perspectivas efetivas de longo prazo, não consideram a possibilidade de carreiras e, portanto, não incorporam em suas práticas profissionais a realização de projetos públicos de longo prazo. E, ao contrário do que o senso comum privatista argumenta, a demissão ad nutum é usada como arma contra os trabalhadores, a fim de manter os salários mais baixos.

Além disso, embora Bresser tenha sido ambíguo a respeito, falando em reforma “republicana”, os defensores da substituição dos estatutários pelos celetistas não por acaso falam em seguir os parâmetros da “iniciativa privada”. Ao fazerem-no, repetem o mito da eficiência privada – esquecendo-se das sucessivas mancadas da Enel em São Paulo, da Light no Rio de Janeiro, da Vale em Minas Gerais e da Oi no país inteiro, além de dezenas de outros exemplos cotidianos –, buscam sujeitar os servidores às conveniências políticas de plantão, desmobilizar os trabalhadores, baixar os salários e impedir projetos públicos de longo prazo.

Esses raciocínios são repetidos por políticos de direita (não por acaso, é o programa do novo partido do Centrão, o “União Progressista”) e mesmo por institutos de pesquisa que se dizem “republicanos”: ambos compartilham não saberem o que é o republicanismo nem o que é o bem comum.

Dito isso, voltemos a Bresser Pereira e à sua proposta. Como Bresser jamais definiu quais seriam as carreiras típicas de Estado, todo governo decide qual é a carreira típica. Há algumas funções, especialmente no nível federal, que por definição só podem ser executadas pelo Estado: militares, polícias federais, Casa da Moeda, Tesouro Nacional, Receita Federal, diplomatas. Não são muitas carreiras e, no fim das contas, não é muita gente. (Entretanto, eles, sim, fazem questão de terem salários e privilégios nababescos.)

O problema é que o grosso do serviço público prestado pelo Estado para a sociedade – isto é, pelo poder Executivo civil, que é de fato o governo e que se sujeita a controles públicos efetivos, ao contrário do poder Judiciário, do Ministério Público, do poder Legislativo e dos militares – não se enquadra nas “carreiras típicas de Estado”. São médicos, enfermeiros, assistentes sociais, sociólogos, museólogos, bibliotecários, economistas, pesquisadores, agrônomos, arquitetos, engenheiros, físicos, químicos, historiadores e até professores e dezenas de outras profissões de nível superior, além de uma gama gigantesca de servidores enquadrados em denominações mais genéricas e em cargos de nível médio e fundamental.

É essa quantidade enorme de servidores que presta de verdade os serviços para a população. Todos esses servidores, que respondem pela grande maioria dos serviços públicos, entram na categoria de “carreiras não típicas de Estado”; ou seja, cada vez mais eles podem ser passíveis de demissão com facilidade. Ou melhor, cada vez mais eles podem ser e são substituídos por celetistas e, ainda mais (e pior), por estagiários.

A substituição dos servidores permanentes, estatutários, por servidores não permanentes, celetistas, ocorre com mais facilidade nos níveis estadual e municipal que no federal: é o que se vê no dramático exemplo da Biblioteca Pública do Paraná. Mas a substituição dos estatutários por celetistas e estagiários não se dá pelos procedimentos ultraliberais, por decreto, como proposto durante os anos 1990 e novamente durante os anos do fascista; os meios adotados são mais insidiosos: simplesmente não há a reposição do pessoal que se aposenta. Em nome da mítica eficiência do setor privado – eficiência que busca o lucro e não o bem público – joga-se fora todo o conhecimento técnico acumulado pelos servidores com estabilidade.

O bem público é mantido e gerido pelo Estado com seus servidores, de carreiras “típicas” ou “não típicas”. Essa divisão, embora abstratamente pareça sensata, na prática serviu – e serve – apenas como instrumento para degradar o serviço público e piorar a qualidade dos serviços prestados. No dia a dia, quem serve a população na ponta, no nível da rua, são as carreiras “não típicas”; são esses servidores que justificam a existência e os custos do Estado.

Ora, se a noção de “carreiras típicas do Estado” não se sustenta e serve apenas para degradar os serviços públicos, parece claro que já passou da hora de abandonarmo-la e de pararmos de repetir essa lenga-lenga criminosa e antirrepublicana.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.


14 abril 2025

Monitor Mercantil: A validade do "Ordem e Progresso"

No dia 14.4.2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo "A validade do 'Ordem e Progresso'".

A versão eletrônica do texto encontra-se disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/a-validade-do-ordem-e-progresso/.

A versão original do texto está reproduzida abaixo.

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A validade do “Ordem e Progresso”

 

A ninguém escapa o aspecto profundamente dividido da sociedade e da política atuais; essa divisão por vezes é afirmada na oposição “direita-esquerda”, mas ela também pode ser estabelecida como “reacionários vs. revolucionários”. Esses vários termos descrevem clivagens profundas, sem oferecerem soluções para o problema de fundo. Ora, é nesse quadro que se justifica e ganha renovada relevância a fórmula positivista “Ordem e Progresso”.

Quando Augusto Comte (1798-1857) – o fundador da Sociologia, da História das Ciências e do Positivismo – propôs a fórmula “Ordem e Progresso”, no início do século XIX, o quadro que ele tinha à sua frente era muito parecido com o que vivemos atualmente. Por um lado, ocorriam profundas e necessárias mudanças sociais, que eram tanto uma questão de fato (as mudanças ocorriam de qualquer maneira) quanto uma questão de valores (as mudanças eram desejadas): esses processos foram resumidos nos debates e nos choques da Revolução Francesa (1789-1798). Por outro lado, havia resistências às mudanças – e essas resistências aconteciam também como realidades sociopolíticas e como valores. Os defensores das mudanças eram revolucionários; os resistentes às mudanças eram reacionários.

Para o liberalismo político, a disputa entre revolucionários e reacionários era, e é, apenas a disputa entre “situação” e “oposição”, que devem alternar-se no poder do Estado e na direção geral da sociedade. A idéia da alternância entre situação e oposição tem um aspecto central e importantíssimo de civilizar a disputa, impedir a violência e estimular a tolerância; mas essa idéia serve apenas para isso: ela não explica a origem do problema nem propõe nenhuma solução efetiva de longo prazo.

Em face da dramática disputa política, social e moral entre revolucionários e reacionários, Comte percebeu que ela é devido a uma dinâmica histórica mais ampla e mais profunda, decorrente de processos contados em séculos e vinculada a necessidades humanas efetivas. Com um orgulho estranho e chocante, muito da sociologia atual afirma que despreza as teorias gerais da sociedade e as concepções históricas amplas. À parte a irracionalidade radical desse desprezo, isso impede que se entenda de maneira profunda e cuidadosa o ser humano em geral e o Ocidente em particular. Ora, as investigações de Comte (1) evidenciaram que toda sociedade conjuga instituições que mantêm a unidade social ao longo do tempo e que permitem que ocorram mudanças ao longo do tempo (são a Estática e a Dinâmica sociais); (2) Comte descobriu que ao longo do tempo o Ocidente desenvolveu a filosofia, a política e a afetividade mas que, desde a Idade Média, desenvolvem-se processos intensos opondo a ordem ao progresso (incluindo aí a ciência, a tecnologia, o “capitalismo” etc.).

Esse entendimento conduziu o fundador da Sociologia a reconhecer de uma única vez vários aspectos importantes:

(1) a mera justaposição liberal entre revolucionários e reacionários não resolve nada e, considerando as possibilidades de choques, violências etc., com freqüência essa justaposição serve apenas para estimular as disputas;

(2) embora os termos empregados pelos próprios grupos revolucionários e reacionários para exprimir suas concepções políticas, morais e filosóficas sejam com freqüência equivocados, essas concepções apresentam aspectos importantes e verdadeiros;

(3) sem ignorar que as sociedades têm sempre aspectos de disputas políticas e sociais, o fato é que a oposição entre revolucionários e reacionários é mais profunda que as disputas políticas habituais e sua solução envolve a ultrapassagem simultânea das pressões contraditórias entre revolucionários e reacionários, por meio do reconhecimento dos aspectos legítimos de seus programas e da rejeição de seus extremismos e seus erros.

Em outras palavras, o “Ordem e Progresso”, então, surge como um programa múltiplo: ao mesmo tempo ele é a afirmação de aspectos sociológicos (as condições de ordem, as exigências do progresso), o reconhecimento da legitimidade de perspectivas divergentes (reacionários e revolucionários) e a afirmação de que a solução do problema exige a ultrapassagem conjunta das perspectivas opostas, reconhecendo-se o que elas têm de real, útil, relativista e orgânico.

Basta um pouco de atenção e honestidade para perceber-se que o quadro descrito por A. Comte no início do século XIX é, infelizmente, ainda o nosso no início do século XXI. Por certo que muitas coisas mudaram, alguns problemas surgiram e outros agravaram-se: mas a dinâmica social fundamental, baseada em problemas profundos, ainda é exatamente a mesma indicada pelo fundador da Sociologia. Mais do que isso: não apenas o diagnóstico proposto por ele é o mesmo como, ainda mais importante, a solução proposta é a mesma. Frente a tal programa, os pares direita-esquerda, situação-oposição e até revolucionários-reacionários tornam-se banais, mesmo simplistas e esquemáticos. É claro que no dia a dia esses pares são operacionais: mas elas são úteis exatamente porque são superficiais.

Para concluir, dois comentários da política atual.

As explicações correntes que direita e esquerda dão do “Ordem e Progresso” ignoram totalmente as reflexões acima e evidenciam os seus próprios preconceitos. A direita costuma desprezar o progresso, visto como ateísmo ou revolucionarismo: o marxismo é o grande símbolo desses traços, mas isso nada tem a ver com A. Comte. Já a esquerda entende a ordem como capitalismo, paz de cemitério, violência autoritária: novamente o marxismo é o grande promotor dessas concepções, que, novamente, nada têm a ver com Augusto Comte. A direita quer a ordem, sacrificando o progresso; a esquerda quer o progresso, sacrificando a ordem: em ambos os casos, suas concepções são estreitas e enviesadas, suas propostas são contraditórias, parciais e desastrosas.

Além disso, vários artistas brasileiros, bem intencionados mas ignorantes, têm difundido nos últimos anos o mito de que o “Ordem e Progresso” sacrifica o “Amor”, afirmado por Augusto Comte na expressão “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Esperamos ter deixado claro que isso é um erro; são fórmulas distintas, com objetivos diferentes. Mas o amor não está ausente do “Ordem e Progresso”: a superação das perspectivas parciais e contraditórias só é possível com e pelo amor: a palavra “E”, que liga a ordem ao progresso, subentende o amor.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

18 março 2025

Monitor Mercantil: Conservadorismo curitibano como reflexo do Brasil

No dia 17 de março de 2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de nossa autoria, intitulado "O conservadorismo curitibano como reflexo do Brasil".


Reproduzimos abaixo o texto.

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O conservadorismo curitibano como reflexo do Brasil 

Curitiba é reconhecidamente uma cidade conservadora. Esse conservadorismo sempre conjugou o respeito às tradições com inovações profundas; alguns exemplos disso são (1) o pronto apoio dos paranaenses à proclamação da República, em 1889, (2) o apoio ao regime republicano na Revolução Federalista (1893-1894), (3) a fundação da Universidade do Paraná (atual Universidade Federal do Paraná), em 1912, e, (4) entre os anos 1970 e 1990, as reformas urbanísticas de Jaime Lerner e sua equipe.

Como se sabe, o conservadorismo consiste em uma predileção pelos resultados acumulados historicamente e uma rejeição às inovações, em particular as inovações planejadas. Dessa forma, os conservadores mantêm uma grande distância da noção do progresso e aproximam-se dos reacionários, embora os reacionários rejeitem o progresso, enquanto os conservadores só mantenham reservas a respeito.

O conservadorismo curitibano consiste nessa reserva em relação ao progresso; no século XX isso significou reserva, oposição, rejeição da “esquerda”. É uma questão mais política que filosófica: afinal, em termos filosóficos, os quatro exemplos que demos acima foram defendidos explicitamente como progressos. É claro que perspectivas reacionárias também foram defendidas, como quando Flávio Suplicy de Lacerda afirmou em 1939 que os poloneses tinham invadido a Alemanha e que, portanto, a atuação nazista em relação à Polônia era uma questão de defesa. (Diga-se de passagem, a mesma estrutura de argumentos é mobilizada atualmente em defesa da invasão russa sobre a Ucrânia.)

Todavia, nos últimos dez ou 15 anos o conservadorismo curitibano tem mudado de natureza, deixando a abertura a mudanças progressistas e enveredando cada vez mais por sendas reacionárias, em direção a mudanças regressivas. O primeiro sinal disso é que o projeto de destruição da República brasileira – projeto efetivo, consciente e racional, anunciado até em artigo acadêmico (“Considerações sobre a Operação Mani Pulite” – Revista CEJ, Brasília, v. 8, n. 26, p. 56-62, 2004) – foi pensado, constituído e levado a cabo em seus primeiros anos em Curitiba. Um segundo conjunto de sinais é que a equipe (curitibana) que se reuniu ao redor do autor do artigo acima, incluindo aí o próprio autor do artigo, apoiaram convictamente as ações e/ou integraram o governo de um líder político violento, autoritário, com notórios vínculos com a milícia carioca e cuja preocupação com o enriquecimento e com a família anda a par com explícitas intenções retrógradas. O terceiro exemplo é que por pouco Curitiba não elegeu como Prefeita uma jornalista radicalmente alinhada a esses políticos reacionários – jornalista para quem o transporte público deveria ser cobrado como se fosse um aplicativo, por quilometragem percorrida pelos passageiros, sem se preocupar que o transporte público é direcionado à população trabalhadora e com fundamentais efeitos sociais, econômicos e ambientais. (Na verdade, exatamente devido a esses efeitos, o transporte público deveria ser usado por toda a população – mas isso é outra discussão.)

Há traços menos evidentes ou, pelo menos, menos chamativos desse conservadorismo cada vez mais reacionário em Curitiba. Muitos desses traços têm orientações sociais diversas, mas no final apontam para uma única e mesma direção, que é, precisamente, o reacionarismo. Entre muitos casos possíveis, queremos citar dois exemplos, um que indica exclusão social imediata e outro que degrada o próprio conservadorismo.

Como costuma acontecer nas grandes cidades, o Centro e os bairros nobres recebem vultosos recursos públicos, enquanto bairros periféricos e populares são deixados à míngua ou abandonados. Curitiba é modelar a respeito, em que o desprezo pelo popular tem sido acompanhado pela “gentrificação”, com um recente e brutal aumento do IPTU em bairros populares devido à especulação imobiliária – e, claro, sem que isso se reverta em melhoria da qualidade de vida desses bairros.

Além disso, a principal via que liga o Centro da cidade e a rodoferroviária ao aeroporto Afonso Pena (no município de S. José dos Pinhais) – a av. Comendador Franco, apelidada de “Avenida das Torres” –, passou há cerca de uma década por um intenso processo de renovação, que tornou o seu trânsito mais fluido. Embora a Avenida das Torres seja margeada por bairros habitacionais, com trechos intensamente povoados, ela tem poucas faixas de pedestres, poucos sinaleiros e nenhuma passarela transversal. Esse problema é menor no início da via, onde há uma antiga favela, a Vila das Torres, e a Prefeitura viu-se obrigada a pôr três faixas de pedestres em cerca de dois quilômetros; mas, depois, há faixas apenas a cada quilômetro (ou mais). Dessa forma, é uma via que ficou realmente muito bonita após sua remodelação; mas é uma via para veículos, não para pedestres. Que qualidade de vida isso promove?

Por outro lado, o cemitério municipal de Curitiba – que, em face da laicidade, tem o inadequado nome clericalista de “São Francisco de Paula” – é a área em que o Paraná antigo está enterrado, com belíssimos túmulos, alguns deles enormes monumentos. É claro que também estão enterradas ali muitas famílias que não são da elite, mas simples cidadãos.

Ora, durante a pandemia de covid-19 o cemitério municipal foi arrasado: as placas de metal foram roubadas em série e túmulos foram depredados ou destruídos, sem que, desde então, tenha-se feito nada para corrigir esses problemas. A manutenção individual dos túmulos é problema das famílias, mas a conservação do espaço como um todo é obrigação da Prefeitura de Curitiba, especialmente com furtos e depredação de bens sob responsabilidade municipal, contra uma parte importante da memória pública do estado e da cidade e durante uma longa e agressiva pandemia. Aliás, a omissão – escandalosa – é também do Ministério Público, que nada fez. Mas, ao mesmo tempo, nos últimos dez anos a Prefeitura de Curitiba promoveu inúmeras ações explicitamente de apoio à Igreja Católica, com reforma de templos, parcerias institucionais muito vantajosas para a Igreja etc. O ativo apoio municipal à Igreja Católica ocorre ao mesmo tempo que a omissão a respeito do cemitério (cemitério “São Francisco de Paula”): ao mesmo tempo é o mais ativo clericalismo e o mais chocante desprezo pela memória pública.

Poderíamos dar muitos outros exemplos: a derrubada em série de prédios e casas antigos na região central da cidade, em favor da especulação imobiliária de espigões; a imposição de serviços públicos apenas via internet de celular no Centro de Curitiba etc.

Mas o que vimos já dá o tom do atual conservadorismo curitibano: é cada vez mais um reacionarismo clericalista e antipopular. Lamentavelmente, esse é cada vez mais o retrato do conservadorismo brasileiro – e, cada vez mais, das elites políticas nacionais em geral.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e Doutor em Sociologia Política.

17 fevereiro 2025

Monitor Mercantil: Trump e a importância sistêmica dos EUA

No dia 17.2.2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de minha autoria, "Trump e a importância sistêmica dos EUA".

O texto está disponível no portal do periódico, aqui: https://monitormercantil.com.br/trump-e-a-importancia-sistemica-dos-eua/.

Reproduzimos abaixo o artigo.

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Trump e a importância sistêmica dos EUA

 Muito se tem falado sobre o retorno de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos; com certeza, muito ainda se falará, não somente porque seus valores, suas idéias e suas ações têm conseqüências enormes, como porque estamos longe de esgotar o que se deve falar a respeito. Nesse sentido, um aspecto que tem sido pouco destacado é a produção intencional de instabilidade internacional.

 A relevância das ações de Trump vincula-se diretamente à centralidade dos Estados Unidos no ambiente internacional e sua importância sistêmica. O que significa a “importância sistêmica”? Significa que eles ocupam um papel central na constituição do ambiente internacional. O sistema é uma totalidade com regras próprias, constituída por partes que são ao mesmo tempo autônomas e interdependentes: o ambiente internacional criado em 1945 e que, cada vez com mais dificuldade, subsiste até hoje, foi largamente patrocinado, apoiado e mantido pelos EUA.

Desde o final do século XIX os EUA foram tornando-se a principal economia do mundo, rivalizando àquela época com a Rússia e com o Japão e ultrapassando as nações da Europa ocidental; tal proeminência aumentou, confirmou-se e tornou-se indiscutível com as duas guerras mundiais. Mas uma coisa é ter importância econômica; outra coisa é ter importância política; outra coisa é ter importância sistêmica.

Até o final da II Guerra Mundial, os estadunidenses tinham importância econômica, mas resistiam a ter maior importância política e, em definitivo, apesar de alguns importantes e centrais esforços que se tornaram excepcionais (Woodrow Wilson e a Liga das Nações), não queriam ter importância sistêmica; isso tudo resumia-se em um isolacionismo militante. Essas disposições não aconteceram sem ambigüidades: o isolacionismo referia-se à Europa, mas não à América Central, em que os EUA eram fortemente intervencionistas; para os estadunidenses, o intervencionismo na América Central não tinha implicações políticas (!).

A partir de 1942, com F. D. Roosevelt, os Estados Unidos passaram a mudar a sua atitude frente ao mundo, passando do isolacionismo militante para um universalismo militante. Na base de ambas as posturas pode-se perceber a mesma concepção da excepcionalidade redentora estadunidense, em que os EUA seriam a bíblica “terra prometida”: o isolacionismo implica o nojo em relação ao resto do mundo, o universalismo implica o messianismo.

Após 1945 os EUA assumiram conscientemente o papel de constituidores e garantidores do sistema internacional, em múltiplos aspectos: político, econômico, militar, jurídico, cultural. Tudo isso se resumiu em algumas instituições: a Organização das Nações Unidas e o Conselho de Segurança; o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional; a Organização do Tratado do Atlântico Norte e muitas outras. Foi sem os EUA quererem e um pouco sem perceberem que se constituiu a Guerra Fria a partir do desafio soviético, até 1989-1991; mas, bem vistas as coisas, a Guerra Fria confirmou e reforçou o papel sistêmico dos EUA. Esse país voluntariamente financiou as instituições internacionais e cumpriu compromissos – muitos deles bastante custosos – para fazê-las valer: bancaram a reconstrução da Europa e do Japão, bem como a responsabilidade pela segurança militar dessas regiões; também se embrenharam em conflitos de outra maneira incompreensíveis, como as guerras da Coréia (1950-1953) e do Vietnã (1965-1975).

O papel de constituidor e garantidor do sistema internacional foi desempenhado com um misto de idealismo e de interesse nacional, combinação de qualquer maneira compartilhada pelos demais países. É necessário clareza aí: mesmo que tenha havido problemas e dificuldades (muitas delas bastante graves), o ambiente internacional criado em 1945 pelos EUA foi estável e promoveu em larga medida a paz e o desenvolvimento internacional. Isso gerou um capital político duradouro para os EUA.

Vistas assim as coisas, parece que a longo prazo o final da Guerra Fria paradoxalmente conduziu à ruína dos EUA. O colapso da União Soviética e do marxismo de modo geral representou a vitória do liberalismo, do individualismo e capitalismo estadunidense, assim como também acarretou um triunfalismo desmedido, a noção de que os Estados Unidos abrangeriam o planeta inteiro e o fim do idealismo político: o resultado dessa combinação foi o economicismo “sem fronteiras” neoliberal. A partir daí, as elites estadunidenses – as conservadoras republicanas, as “progressistas” democratas – avançam projetos políticos, sociais e econômicos incapazes de perceber os efeitos de longo prazo de suas ações, mesmo as sistêmicas. B. Clinton destruiu a regulação internacional da especulação financeira; H. Clinton promoveu o particularismo ressentido do identitarismo; G. W. Bush desprezou as fronteiras internacionais na guerra teológica ao terror teológico; D. Trump despreza tudo o que não é estadunidense.

Trump retoma um bairrismo paroquialista e isolacionista, demonstrando nojo ou ódio por tudo o que não é dos EUA. Não se sabe se ele realmente acredita nisso, mas com certeza ele pratica-os. Essa mentalidade é própria aos EUA do século XIX e meados do século XX; desde então, bem ou mal esse país moldou o mundo conforme os seus próprios valores. Assim, a destruição sistemática que Trump promove das instituições internacionais é cega, burra e retrógrada. Ela quer voltar ao isolacionismo do século XIX, agindo como se o mundo de hoje fosse a América Central desde sempre.

Essa mentalidade também é incapaz de reconhecer que, apesar dos efeitos negativos sobre os próprios EUA, as instituições internacionais atuais foram criadas e patrocinadas pelos EUA, para benefício também dos EUA, benefícios que incluem a estabilidade e boa vontade internacional. Ao destruir essas instituições, Trump destrói não só o legado de seu país, como também as bases do poder internacional dos EUA. E mais: também destrói o capital político acumulado na forma de boa vontade e confiança para com os Estados Unidos, além de gerar grande instabilidade. Por si só a destruição de Trump gera conflitos agressivos; se não fosse pouco, esse líder deseja conscientemente mais e mais os conflitos, que ele vê como provas de virilidade, firmeza e liderança (!). O resultado disso tudo é fácil de perceber e tem muitos exemplos históricos: os antigos amigos e aliados tornar-se-ão parceiros reticentes, depois aliados forçados, em seguida adversários velados e então adversários declarados. A Alemanha, em 1914 e em 1933-1939, exibiu a mesmíssima mentalidade.

Em tais condições, não há como “a América ser grande novamente”. Se fosse só para os EUA, isso não seria motivo de preocupação geral. Mas o papel central no sistema internacional desempenhado por esse país torna desastrosas as práticas de Trump. Ou, para usar uma expressão cara à teologia bíblica: essas práticas têm conseqüências apocalípticas. 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

10 fevereiro 2025

Monitor Mercantil: Bacharelismo jurídico contra a República

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou, em sua edição de 10 de fevereiro de 2025, o nosso artigo "O bacharelismo jurídico contra a República".


Reproduzimos abaixo o texto. Boa leitura!

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O bacharelismo jurídico contra a República 

Há talvez uma década assistimos no Brasil a uma crise dura e sistemática da República, em que os poderes Executivo e Legislativo têm sido utilizados para degradar e assaltar o Estado e as instituições. De maneira frágil, em 2022-2023 resistimos a esses ataques, embora permaneça a chantagem contra as instituições republicanas, como se vê na cínica avidez com que se mantém as “emendas ao orçamento”.

Isso não é casual. Misturam-se aí a oportunidade de assaltar o Estado com a mais completa confusão a respeito de quais são os princípios que devem regular a conduta republicana, sem deixar de lado alguns dos piores costumes na vida em comum. Em outras palavras, oportunidades, confusão intelectual e péssimos costumes.

As próprias instituições que deveriam resguardar o conjunto da República atentam contra ela. As críticas geralmente vão contra o poder Executivo – que, bem vistas as coisas, é o governo e é o principal ramo do Estado – e contra o Legislativo – que consiste no fiscal do orçamento –, mas cada vez mais o Judiciário, que em outros períodos manteve uma atuação discreta, apresenta-se como disfuncional.

Na verdade, o problema não é só o poder Judiciário em si, embora ele por si só seja um crescente problema. No Brasil repetimos a teoria dos “três” poderes, mas desde 1988 temos quatro poderes, na medida em que o Ministério Público é autônomo em relação aos demais. Ora, o próprio Ministério Público é extremamente problemático, como as atuações estranhamente conjuntas e conflitantes da Lava Jato, Rodrigo Janot e Augusto Aras ilustram com clareza.

Deixando de lado os graves problemas institucionais, culturais e políticos do Judiciário e do Ministério Público – irresponsabilidade e ausência total de prestação de contas, sem contar a atuação conjunta para aumentarem cada vez mais seus salários –, um traço muito claro deles é o espírito bacharelesco do Direito, ou, simplesmente, o bacharelismo jurídico.

Certamente outras pessoas já definiram o bacharelismo. Para o que nos interessa, o bacharelismo jurídico é o conjunto de hábitos mentais e concretos, ou melhor, de preconceitos compartilhados por estudantes e profissionais formados no curso de Direito, segundo os quais quem tem “formação jurídica” é melhor que quem não tem essa formação. Essa mentalidade implica um respeito automático para quem possui essa formação e – mais importante – implica também um desrespeito, uma desvalorização, uma desconsideração igualmente automática para quem não tem a formação jurídica. É uma das formas mais grotescas e degradantes de academicismo, mas não apresenta o aspecto intelectualista de quem acha que o universo resume-se às universidades; ao contrário, o bacharelismo jurídico considera que só é bom, só presta, só pensa, só tem direito à dignidade humana, só é cidadão quem passou pelo curso de Direito. De modo mais importante, a relação inversa também é verdadeira: para o bacharelismo jurídico, quem não tem formação jurídica simplesmente não presta, não merece respeito, não é cidadão. A quem tem o título de bacharel, paciência, boa vontade, sorrisos abertos; a quem não tem o título, má vontade, irritação, ligeireza, caretas. Consciente e intencional ou, ainda mais, inconsciente e involuntário, trata-se do espírito de abjeta subserviência a quem é chamado de “dotô”.

É claro que, em face de uma acusação desse tipo, a resposta-padrão será negar os traços indicados acima. Mas é no dia-a-dia que percebemos que essa negativa é vazia e o bacharelismo é real e entranhado. De modo geral, o Judiciário é caro, complicado e, de propósito, muito distante da vida dos cidadãos e o Ministério Público segue a mesma trilha – claro, a despeito de todos os rios de tinta que juízes, desembargadores, ministros, procuradores e “membros do Ministério Público” gastam para justificarem-se em discursos autocongratulatórios. Há algumas instituições que deveriam ser mais próximas e acessíveis aos cidadãos, como os juizados especiais (um ramo do Judiciário) e até a Fundação Procon (que é privada): mesmo essas instituições são contaminadas pelo bacharelismo jurídico. (A Defensoria Pública é relativamente nova no Brasil e não temos como argumentar a respeito dela; mas, não duvidamos de que, se apostássemos contra ela no caso do bacharelismo, provavelmente ganharíamos.)

Procon, juizados especiais, ramos não penais do Ministério Público: em todos eles os funcionários têm uma especial deferência para com quem é bacharel em Direito ou está estudando para sê-lo; essa deferência é manifestada por profissionais de carreira e por estagiários, sejam ou não vinculados ao curso de Direito. Além disso, como indicamos, o respeito bacharelesco tem o seu reverso, em que todos os demais cidadãos são alvo de um tratamento impositivo, que faz questão de indicar que não ser bacharel implica uma condição social e moral inferior. O bacharel é tratado com um respeitoso “senhô dotô” (ou “senhora dotôra”); os demais são tratados por um reles “você”. Os estagiários são subservientes aos “dotores”, mas por sua vez exigem a subserviência calada dos demais cidadãos – e, claro, tal exigência é sempre feita sob a ameaça de penalidades, processos, atrasos, multas, decisões desfavoráveis etc. (Prática habitual do Ministério Público, aliás.) Os cidadãos podem estar certos em suas demandas e são ouvidos com displicência e rapidez; mas quando o “dotô” fala, os funcionários do Procon, dos juizados especiais, do Ministério Público, do Judiciário dão-lhe toda a atenção e o tempo do mundo. O “dotô” pode falar o que quiser, os maiores sofismas, as maiores mentiras, as maiores degradações: como é “dotô”, pode falar o que quiser; ao espetáculo de sofismas e erros, o cidadão comum tem que ouvir calado, satisfeito, fingindo que as mentiras são a verdade, que a degradação não rebaixa o ser humano; caso o cidadão reclame, ache ruim, no limite exalte-se, será ameaçado ou exemplarmente punido. É isso o bacharelismo.

A Justiça brasileira, sabe-se, é cara e feita com viés de classe. Ou melhor, ela tem viés de casta, com um aspecto medieval. Ela é cara não apenas porque juízes, desembargadores, promotores e “membros do Ministério Público” exigem salários e penduricalhos cada vez maiores e injustificáveis, sem que se responsabilizem de verdade por suas atuações. De modo mais importante, a Justiça é cara porque o acesso a ela é caro, porque é estruturada de maneira que apenas quem tem dinheiro, ou melhor, muito dinheiro paga as altíssimas taxas cobradas por advogados e pelo sistema judiciário (incluindo aí os cartórios). Esses custos não são feitos apenas para saciar a avidez pecuniária dos envolvidos; esses custos representam o aspecto material de preconceitos de casta, contrários ao povo e à noção republicana de cidadania. Eles são a face material do espírito bacharelesco.

Em suma: para recuperar a República e valorizar a cidadania, o caminho passa necessariamente pelo combate ao bacharelismo jurídico.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

13 janeiro 2025

Monitor Mercantil: "Em 2024, o Positivismo continuou desrespeitado"

No dia 13 de janeiro de 2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo mensal, desta feita intitulado "Em 2024 o Positivismo continuou desrespeitado".

O original do texto pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/em-2024-o-positivismo-continuou-desrespeitado/.

Reproduzimos abaixo o nosso artigo.

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Em 2024 o Positivismo continuou desrespeitado

Em 30.12.2024, em uma das tradicionais retrospectivas, o antropólogo Juliano Spyer afirmou na Folha de S. Paulo (“O debate e a cobertura sobre religião se profissionalizaram em 2024”) que a cobertura jornalística sobre as “religiões” profissionalizou-se em 2024. Para o autor, a cobertura jornalística das religiões teria melhorado pois (1) mais religiões passaram a ser cobertas, (2) por pesquisadores acadêmicos profissionais e (3) com perspectivas mais simpáticas ou, pelo menos, mais compreensivas.

Não nos importa aqui criticar o aumento da cobertura academicista-jornalística das “religiões” apontada por Juliano Spyer; em si mesmo, isso parece algo positivo. O que importa notar são as características indicadas e as ausências não indicadas: nesse sentido, o articulista é exemplar de vieses tanto da cobertura jornalística quanto das análises acadêmicas.

Antes de mais nada, embora esse antropólogo tenha uma abordagem “científica”, tanto ele quanto os pesquisadores “científicos” das chamadas “ciências da religião” adotam um conceito de “religião” que é o mesmo que o senso comum adota e que iguala “religião” a “teologia”: crenças em divindades e em um suposto “outro mundo”. Além disso, de modo geral as teologias consideradas são as monoteístas, em particular as abraâmicas. O resultado dessas concepções – que, importa insistir, são de senso comum e repetidas acriticamente pelas “ciências da religião” – é que se forçam e distorcem os dados da realidade para que caibam no esquema teórico. Religiões que cabem muito mal no esquema das divindades são forçadas nessa concepção, como o fetichismo, o budismo e até o confucionismo – isso, claro, para não falar das religiões metafísicas e, mais importante para nós, das humanistas.

Pesquisadores-jornalistas podem contribuir para popularizar pesquisas científicas e qualificar o debate público: isso é urgente quando a desinformação corre solta nas redes sociais e em que donos de redes mundiais manifestam-se a favor da desinformação, em particular de extrema direita. Sobre as “religiões”, pode ser interessante a simpatia por elas, ou, pelo menos, um esforço maior para compreendê-las. Talvez como um sinal dos tempos, os pesquisadores-jornalistas citados por Spyer são também sacerdotes das religiões; essa participação nas religiões permite acesso a dados e interpretações que, de outra maneira, talvez fossem mais difíceis de obter e que o academicismo muitas vezes rejeita. Mas, embora Spyer não sugira nada assim, o fato é que essa participação nas religiões tem um certo ar de “lugar de fala”.

Ora, o conceito de religião das “ciências da religião” é ruim, muito restritivo; não diremos que é “etnocêntrico”, mas ele despreza tudo o que não se aproxima do sobrenaturalismo e dos monoteísmos abraâmicos. Na verdade, o materialismo cientificista tem nesse caso a degradante conseqüência de desprezar qualquer esforço religioso que seja humanista e imanentista. Da mesma forma, o quase “lugar de fala” aceito e valorizado para os monoteísmos é rejeitado para os humanismos.

Chegamos então ao que nos interessa. A maior cobertura supostamente mais profissional e com certeza mais simpática dos monoteísmos no jornalismo brasileiro não se estende ao Positivismo, à Religião da Humanidade. De maneira notável e escandalosa, as três características indicadas por Spyer para os monoteísmos não se aplicam ao Positivismo: a cobertura sobre ele não é melhor nem mais profissional, não se dá voz aos seus sacerdotes e não se concede a ele nem simpatia nem compreensão.

O fato de que vulgarmente se entende que religião são principalmente os monoteísmos é apenas o começo do problema, reforçado pelos preconceitos materialistas do cientificismo. Mas, no fundo, há apenas má vontade e má fé, ou seja, preconceito. Todos “sabem” o que é o Positivismo (e todos “sabem” o que é “religião”); todos “sabem” qual a influência do Positivismo no Brasil, no Ocidente e no mundo: assim, não é necessário ouvir os positivistas – e, em particular, quando o que há para ouvir vai contra o que se “sabe”.

Não importa que a extrema direita, durante o terrível governo fascista, tenha seguidamente afirmado que o Positivismo é o culpado pelos problemas nacionais e tenha estimulado a morte dos positivistas (ver o nosso artigo “O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direitabrasileira”, publicado no Monitor Mercantil de 23 a 25 de maio de 2020). No Brasil segue-se o seguinte padrão: pode-se falar sobre o Positivismo o que se desejar, mas nunca se pode, nem se deve, ouvir o que os positivistas têm a dizer.

Dois exemplos ilustram com perfeição nosso argumento. Em 30.8.2022 a BBC Brasil publicou o texto “Ordem e Progresso: como as ideias de um filósofo francês do século 19 ajudam a entender a formação do Brasil” (https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4gmp4nrw0wo). Nesse artigo, fala-se profusamente sobre o Positivismo, citam-se muitos professores universitários, argumentam-se muitas coisas, mostram-se muitas fotos. Mas o tom geral é negativo e, para quem conhece de verdade o Positivismo, a desinformação sistemática abunda. Além disso, coroando esses defeitos, é claro que absolutamente nenhum positivista foi ouvido.

Já em 16.12.2024, a ex-Deputada Federal comunista Manuela d’Ávila, em entrevista para o jornalista Chico Pinheiro pelo Instituto Conhecimento Liberta (https://www.youtube.com/watch?v=AbYAZF912eA), repetiu que o Positivismo é o responsável pelo militarismo e pelo fascismo no Brasil. Ela difundiu esses mitos conscientemente, com ligeireza e superficialidade, mesmo sendo jornalista e gaúcha, ou seja, tendo os meios para averiguar em primeira mão o que afirma (por exemplo, indo pessoalmente à Igreja Positivista do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre).

Os exemplos acima são apenas dois em dezenas de outros possíveis. Se versassem sobre outras religiões ou filosofias – comunismo, feminismo, marxismo, catolicismo, liberalismo, candomblecismo, espiritismo, budismo, islamismo, cristianismos evangélicos etc. –, ter simpatia ou compreensão pelo tema seria exigido, sem contar que ouvir algum representante seria pelo menos de bom tom; limitar-se a opiniões de terceiros, falar mal e não permitir réplica seria inimaginável. Mas no caso do Positivismo, esses comportamentos jornalisticamente antiéticos, politicamente irresponsáveis e moralmente desprezíveis são não apenas aceitos como são exigidos.

Em face disso tudo, o avanço sugerido por Juliano Spyer é assustadoramente parcial e enviesado: não se trata de melhoria na cobertura jornalística das “religiões”, mas apenas concessão às teologias monoteístas. O que não se enquadra nisso – em particular o humanismo positivista –, a par da degradação geral da República e da laicidade no Brasil, é desprezado. 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

10 dezembro 2024

Monitor Mercantil: "Cultura política, STF e laicidade"

No dia 9.12.2024 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de nossa autoria intitulado "Cultura política, STF e laicidade".

O original da publicação está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/cultura-politica-stf-e-laicidade/.

O texto está reproduzido abaixo.

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Cultura política, STF e laicidade

É quase senso comum considerar que sem o apoio generalizado e difuso da sociedade, nenhum regime político pode manter-se. Isso se refere tanto ao apoio consciente ao regime quanto aos pequenos hábitos e comportamentos do dia a dia, incluindo aí as formas como agimos e as maneiras que rejeitamos para agir. Assim, todo regime apresenta um aspecto cultural; dito de outra maneira, toda cultura tem um aspecto político que se corporifica no regime político, que cria e que sustenta as instituições.

Vale notar que as instituições importam, e muito, mas seu funcionamento adequado depende do apoio social que o conjunto da sociedade fornece, da legitimidade que as instituições têm para agir da maneira adequada e, não menos importante, das convicções íntimas que os agentes públicos e os cidadãos têm para fazer valer as funções das instituições. Em outras palavras, sem a cultura política sustentando as instituições, estas não passam de cascas vazias e letras mortas.

A relevância dessas afirmações, aparentemente tão simples, pôde ser comprovada ao longo da última década, a partir de diferentes exemplos. O primeiro exemplo é o mais fácil de citar; trata-se da série crise de legitimidade com que as instituições políticas representativas têm-se defrontado faz tempo. Não se trata apenas de um sentimento difuso e difundido de que “os políticos não nos representam”. Isso por si só já seria bastante grave, mas em si gera mais apatia e cinismo que qualquer outra coisa: ora, a crise de legitimidade que temos visto desde pelo menos 2013 tem resultado em um ativo comportamento autoritário. Em vez de as instituições republicanas (nas equívocas formas “democrático-liberais”) perderem apoio por si sós, o que se tem visto é que essa perda tem sido trocada por um apoio a práticas e a propostas institucionais autoritárias, violentas, iliberais. O apelo democrático é o mesmo: é sempre a soberania popular que justifica essas propostas; como, supostamente, a vontade popular nunca erra (afinal, vox populi vox dei), muitos consideram que o misticismo saudosista do regime militar seria aceitável.

Essas concepções antirrepublicanas têm sido defendidas por muitos grupos sociais e políticos que tentam implementá-las por meio de duas estratégias complementares: (1) desgastando as instituições vigentes, corroendo sua autoridade e/ou mantendo-as inertes (ou melhor, omissas); (2) tentando a mudança total de uma única vez. A primeira estratégia come pelas beiradas, a segunda consiste em um ataque direto ao conjunto das instituições.

Ora, a partir de um sentimento social difuso e difundido, não necessariamente espontâneo, entre 2019 e 2022 o que se viu foi o seguinte: o poder Executivo buscou e apoiou o golpismo militarista, o poder Legislativo foi inicialmente um anteparo a isso (entre 2019 e 2020, com Rodrigo Maia à frente da Câmara dos Deputados) e depois foi um esteio dessas ambições (em 2021 e 2022, com Artur Lira como Presidente da Câmara) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) exibiu uma omissão cúmplice: o grande anteparo dessa longa ofensiva foi o Supremo Tribunal Federal (STF), na figura de Alexandre de Moraes secundado pelos outros dez ministros.

Vimos, então, a cultura política em ação, seja no seu aspecto difuso, social, seja no seu aspecto concreto, institucional e individual; um intenso ativismo social apoiou e foi apoiado por um ativismo institucional contra o conjunto das instituições, parte das quais apresentou uma omissão conivente contra esse mesmo conjunto; uma instituição central em particular opôs-se a isso e evitou o triunfo da maré antirrepublicana.

Esse resultado é notável e torna-se ainda mais impressionante quando se o compara com o outro exemplo que queremos comentar. Os atores envolvidos são os mesmos (sociedade civil, os três poderes, PGR); a fundamentação filosófico-moral é a mesma (valores sociais compartilhados, caráter “democrático” das instituições), a tramitação é a mesma (propostas dos poderes Executivo e/ou Legislativo avaliadas pelo Judiciário); os casos que nos interessam agora também se referem a aspectos centrais e fundamentais da República: mas o resultado é inverso ao anterior. As questões são relativas à laicidade do Estado.

Desde 1890 o Estado brasileiro é laico. Isso deveria significar que o Estado não tem doutrina oficial nem que as doutrinas/igrejas não se valem do Estado para imporem-se sobre os cidadãos. O Estado mais ou menos não tem doutrina; mas as doutrinas/igrejas usam, sim, o Estado para imporem-se e querem, cada vez mais, que o Estado apóie ativamente esse uso. Nesse quadro, as instituições deveriam apoiar o que é uma disposição política e constitucional desde o início da República: mas o poder Legislativo tenta criar brechas o tempo todo; o Executivo é omisso ou partícipe ativo dessas iniciativas; o Ministério Público é igualmente omisso. Restaria o Judiciário, mas decisões tomadas nos últimos anos indicam que o STF também apóia o desprezo à laicidade. E, pior, esse desprezo manifesta-se pelo mesmo Ministro – infelizmente, Alexandre de Moraes.

Em 2017, Alexandre de Moraes pôs-se contra Roberto Barroso, foi favorável a que as escolas públicas tenham ensino religioso confessional e foi o autor do voto vencedor nessa questão. Para Moraes, é lícito ao Estado pagar sacerdotes para que eles imponham sobre os estudantes suas doutrinas, em caráter oficial (com a fantasiosa possibilidade de opção). Agora em 2024, o mesmo Moraes julgou que os crucifixos em órgãos públicos não ofendem a laicidade do Estado, ou seja, símbolos de uma doutrina específica podem ser exibidos em caráter oficial (e obrigatório) para todos os cidadãos, mesmo acima dos símbolos da República!

O argumento empregado nos dois casos pelo Ministro Moraes é o mesmo empregado pelo ex-Presidente que tentou dar um golpe militar durante quatro anos: trata-se de que, “se o Estado é laico, a população é cristã”. A laicidade tem que se dobrar a uma crença compartilhada e pode ser negada. Não se pode argumentar ignorância ou má fé do Ministro Moraes, nem mesmo tibieza ou medo: ele não é o tipo de pessoa que se dobra a pressões externas por medo. São convicções íntimas, compartilhadas pela maioria do STF em 2017 e novamente em 2024.

O problema, então, é de cultura política – e de filosofia política. Trata-se de considerar que as opiniões são secundárias e que a força, a violência do Estado é só o que importa. Um Estado autoritário é um grave problema e deve ser evitado, sem dúvida: essa é a opinião do STF e de metade da população brasileira. Mas um Estado que impõe doutrinas e símbolos – na verdade, de maneira ainda mais dura e agressiva que em um Estado autoritário –, isso não é problema, pois “a população é cristã” e é lícito que o Estado pague servidores públicos para pregação religiosa.

São opções filosóficas e morais incoerentes, na verdade incompatíveis. Essas opções revelam e conduzem a uma cultura política que é mais que incompatível: ela é suicida.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

11 novembro 2024

Monitor Mercantil: "O identitarismo contra a laicidade"

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou em 11.11.2024 um artigo de nossa autoria, intitulado "O identitarismo contra a laicidade".

Reproduzimos abaixo o texto. O original pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/o-identitarismo-contra-a-laicidade/.

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O identitarismo contra a laicidade

Vivemos em uma república. Embora essa afirmação banal não seja muito levada a sério atualmente, ela implica grandes ideais morais, sociais e políticos, começando pela dedicação de todos ao bem comum e pela subordinação da política à moral. Sem esgotar aqui o conteúdo da república, podemos simplificar indicando que um dos aspectos institucionais básicos das repúblicas é a laicidade do Estado. Isso implica uma dupla vedação:

1)      por um lado, o Estado não pode ter, manter ou beneficiar doutrinas específicas e, além disso, não pode condicionar o acesso a seus serviços (e, portanto, não pode condicionar a cidadania) à adesão dos indivíduos a essas doutrinas;

2)      por outro lado, as várias igrejas e os grupos promotores de doutrinas não podem usar o Estado para fazer valer suas concepções (ou seja, não podem impor suas doutrinas).

Essa dupla vedação baseia-se no respeito à dignidade e à autonomia individual e na consideração de que questões de foro íntimo só podem ser decididas intimamente; a isso se soma o fato de que o Estado é incapaz e ilegítimo para decidir a respeito dessas questões de foro íntimo e que a imposição de crenças também é errada e ilegítima. Geralmente se considera a laicidade em relação a igrejas ou cultos teológicos, mas ela está bem longe de limitar-se a eles, pois inclui doutrinas político-partidárias, filosofias variadas e até doutrinas especificamente “universitárias”. Assim, em si mesma a laicidade não é atéia (doutrina que nega a existência das divindades) nem anticlerical (o combate às igrejas).

A laicidade e a república exigem que as políticas públicas devem ser universalistas, ou seja, devem atingir todos os cidadãos. Toda sociedade tem suas clivagens, algumas voluntárias (religiosas, filosóficas, morais, culturais, políticas, recreativas, esportivas, de locais de moradia etc.) e outras involuntárias (classistas, sexuais, étnicas etc.); mas essas clivagens devem subordinar-se à universalidade da república, a partir do primado da fraternidade universal. Dessa forma, embora sempre existam agrupamentos particulares, o universalismo republicano rejeita os particularismos e os guetos – sejam guetos impostos sobre e contra os grupos sociais minoritários, sejam os guetos criados pelos grupos minoritários contra as sociedades maiores.

Essas características parecem intuitivamente corretas, mas elas têm sido duramente postas à prova, ou melhor, elas têm sido desafiadas, criticadas e repudiadas nos últimos anos pelo identitarismo. Em discussões acadêmicas os identitarismos são claros na recusa aos traços acima – dizem com todas as letras que “o universalismo é uma mentira” –, mas, para o grande público, sua ação é mais enviesada. Em vez de pôr-se direta e claramente contra os valores e as práticas republicanas, o identitarismo afirma os seus próprios valores, corroendo e corrompendo a vida política. Mas quais são os valores e as práticas do identitarismo?

Não há um único identitarismo; existem muitos, que tendem sempre, cada vez mais, a multiplicar-se. O identitarismo nega o universalismo cidadão e fraterno em prol da multiplicidade de exclusivismos e particularismos, minorias que se vêem como perseguidas pela “maioria”. Como são, ou como se vêem, como perseguidas, essas minorias adotam o ressentimento sistemático como sentimento político, pessoal e moral básico, buscando estabelecer sistematicamente a culpa da “maioria”; para isso exigem que o Estado atenda apenas ou prioritariamente as suas próprias demandas e que atue na difusão da mentalidade identitária, que passa a tornar-se doutrina oficial. A partir da teoria do “reconhecimento”, o objetivo do Estado torna-se reafirmar constantemente a existência desses grupos minoritários, perseguidos e ressentidos – e, claro, satisfazê-los e prover-lhes “reparações”. Participar desses grupos torna-se então, progressivamente, condição de acesso ao Estado e à cidadania.

Para evitar mal-entendidos, importa sermos claros: em inúmeras situações concretas as reclamações fundamentais dos grupos identitários são justificadas. Entretanto, se muitas situações concretas são de fato injustas, elas são respondidas da pior maneira possível, estimulando sentimentos, idéias, hábitos, práticas e instituições desastrosos.

O identitarismo pode ser de esquerda ou de direita. Pelo menos no Brasil, os identitarismos de esquerda são os mais conhecidos (ou mais estridentes): racialista, de gênero, de opção sexual, étnico etc.; mas há também os identitarismos de direita, vinculados especialmente à teologia (cristã) e a grupos étnicos. Tanto uns quanto outros dizem-se perseguidos e usam o Estado como instrumento para impor suas concepções: nada mais distante de dignidade, fraternidade, liberdade, autonomia.

Em face dessas características, percebe-se com clareza que o identitarismo encara a laicidade no mínimo como uma instituição inútil, no máximo um estorvo a ser destruído. Se o Estado deve estar a serviço dos grupos ressentidos em sua busca de reparações e se o reconhecimento do ressentimento-e-culpa é a mentalidade que orienta a vida pública, é claro que a laicidade deixa de ser importante, de ser útil, de fazer sentido.

Entre os identitários de direita, vinculados de modo geral às teologias, a laicidade deve ser simplesmente ignorada ou desprezada: o Estado deve estar a serviço da difusão do “cristianismo” (geralmente evangélico, mas também católico), sendo que a laicidade é vista como um instrumento dos valores da “esquerda” ou do afastamento da divindade (o que, para a direita teológica, dá na mesma). Temos então os cultos privados em espaços públicos; as referências obrigatórias às divindades e a leitura da Bíblia em espaços e órgãos públicos; os feriados teológicos etc.

Entre os identitários de esquerda, a situação é um pouco mais ampla. No fundo, a esquerda adota os mesmíssimos procedimentos que a direita, criando feriados particularistas, impondo a leitura de doutrinas identitárias etc. Mas, embora também ignore ou despreze a laicidade, quando convém a esquerda consegue lembrar-se dela, para um anticlericalismo tópico. Isso, aliás, é o que alguns chamam de “seqüestro da laicidade”.

Em meio a esses particularismos exclusivistas ressentidos, não há espaço para a fraternidade, para uma verdadeira vida em comum, para a dedicação ao bem comum. Simplesmente não há “bem comum”, que é denunciado como hipocrisia “anticristã”, ou “falocêntrica”, ou “heteronormativa”... há apenas ódio, ressentimento, particularismo.

Considerando o amplo apoio que os identitarismos têm no Brasil atual, à direita e à esquerda, não é de estranhar que nem a laicidade nem, de modo mais amplo, a república sejam levadas a sério. Daí resultam os desastres sociais, políticos, morais e intelectuais que todos vemos todos os dias. É escandaloso e desastroso que os identitarismos sigam tendo apoio no país. Urge retomar a república, a laicidade e a fraternidade, contra o identitarismo, o particularismo e o ressentimento.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.