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06 fevereiro 2024

Sobre inter, multi e transdisciplinaridade - parte 2

No dia 9 de Homero de 170 (6.2.2024) realizamos nossa prédica positiva. Na ocasião concluímos a leitura comentada da nona conferência do Catecismo positivista, dedicada ao conjunto do regime.

Na parte do sermão, demos seqüência e concluímos o tema da inter, da multi e da transdisciplinaridade, iniciada na semana anterior (ver aqui: https://l1nq.com/XKHSg).

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/2Ih0J) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/i9V7F). O sermão começou em 1h 07 min 10 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

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Sobre inter, multi e transdisciplinaridade – parte 2

 

-        Na prédica da semana passada (2.Homero.170/30.1.2024) abordamos a interdisciplinaridade, a multidisciplinaridade e a transdisciplinaridade

o   A exposição foi longa, mas, como indicamos em seus momentos finais, esteve longe de esgotar o tema

o   Indicamos alguns temas que não seriam abordados então, por falta de tempo; em seguida, concluímos apresentando algumas considerações gerais

o   Eis as considerações gerais:

§  As propostas de inter, multi e transdisciplinaridade surgem a partir das especializações científicas e, ainda mais, das especializações acadêmicas

·         Essas propostas muitas vezes são generosas e corretas, ainda que apresentem limitações e sejam também muitas vezes eivadas de incoerências

·         Em última análise, o que fundamenta as propostas de inter, multi e transdisciplinaridade é a afirmação cada vez mais ampla da visão de conjunto e a busca de uma síntese humana – que, todavia, na prática são negadas pelos próprios cultores da inter, da multi e da transdisciplinaridade

§  O Positivismo é uma filosofia que claramente, desde o início, com todas as letras constituiu-se a partir da visão de conjunto; a partir disso ele elaborou uma filosofia histórica das ciências e, ao mesmo tempo, criou a Sociologia

·         A compreensão de que as ciências abstratas fundamentais devem ter suas dignidades respeitadas mas que, ao mesmo tempo, elas são insuficientes para a síntese e a unidade humanas levou Augusto Comte a dividir a etapa intelectual do espírito positivo em duas novas fases sucessivas: uma analítica, mais cientificista, e outra sintética, de caráter necessariamente filosófico

·         É claro que a etapa sintético-filosófica é superior à etapa analítico-cientificista

§  O aprofundamento progressivo da visão de conjunto e o evidenciamento dos seus aspectos morais conduziram Augusto Comte a criar a ciência da Moral e, entendendo a importância e a necessidade da síntese positiva e da unidade humana, a criar a Religião da Humanidade, epítome de todas essas exigências

o   Eis os temas que indicamos que ainda caberiam ser abordados no âmbito das reflexões sobre interdisciplinaridade:

§  A falsa esperança das chamadas “ciências concretas”, que, no fundo, é o que fundamenta muitas das propostas de multidisciplinaridade

§  A relação entre a síntese subjetiva e as ciências abstratas, ou, dito de outra forma, a relação entre as perspectivas analíticas abstratas e a síntese concreta

§  Além disso, embora eu não tenha citado ao longo desta exposição, vale notar que a Trindade Positiva integra os elementos próprios à síntese positiva e que, nesse sentido (bem pobre, aliás), ela integraria uma transdisciplinaridade positivista

§  Da mesma forma, a Religião da Humanidade pode e deve ser entendida como um conjunto de indicações, sugestões, orientações e prescrições visando a regular e a lidar com os problemas afetivos, intelectuais e práticos da inter, da multi e, principalmente, da transdisciplinaridade

-        Sem buscar exaurir essas questões, tratemos, então, de cada um dos temas acima

-        Comecemos com dois aspectos que podem ser tratados em conjunto: (1) a falsa esperança das chamadas “ciências concretas”, que, no fundo, é o que fundamenta muitas das propostas de multidisciplinaridade; (2) a relação entre a síntese subjetiva e as ciências abstratas, ou, dito de outra forma, a relação entre as perspectivas analíticas abstratas e a síntese concreta

o   A idéia das ciências concretas é algo um pouco difícil de entender à primeira vista

o   O que as “ciências concretas” propõem são leis naturais de fenômenos considerados do ponto de vista concreto

§  Assim, a mineralogia, a meteorologia etc. procuram distinguir-se das ciências abstratas (a matemática, a astronomia, a física e a química, por exemplo) ao proporem suas próprias leis, isto é, seus princípios abstratos de coexistência e/ou de sucessão

o   As relações entre as ciências abstratas e as ciências concretas tornam-se bastante confusas, dessa forma; mais do que isso, a noção de ciência torna-se confusa

o   Uma consideração abstrata é aquela que considera alguma realidade e tira dessa realidade sucessivos aspectos; o nível máximo de abstração é o da matemática, que, não por acaso, considera os fenômenos mais simples (sucessivamente, do número, da extensão e do movimento)

§  As considerações abstratas passam dos agentes e dos acontecimentos (ou dos “fatos”) para os fenômenos

§  É importante lembrar que as sete ciências fundamentais são sete graus de abstração, relativos a sete tipos diferentes de objetos

§  Essas sete ciências são irredutíveis umas às outras, o que equivale a dizer que não existe nenhuma lei objetiva que explique toda a realidade

·         Por outro lado, a síntese, isto é, a reunião dessas concepções todas em um único esquema – a síntese é necessariamente subjetiva, isto é, relativa ao sujeito, ao ser humano

§  No âmbito da síntese subjetiva, a relação entre as ciências fundamentais é dada pela fórmula: “os fenômenos mais nobres modificam os mais grosseiros subordinando-se a eles”

o   Uma consideração concreta é aquela que considera os agentes e/ou os fenômenos, na totalidade real

o   Dessa forma, a consideração abstrata é sempre analítica, ao passo que a concreta é sempre sintética

o   A idéia de ciência concreta, portanto, é contraditória com a idéia de ciência, seja devido à falta de abstração (ou à abstração confusa), seja devido ao seu caráter sintético

o   Augusto Comte considerava as ciências concretas tanto impossíveis quanto desnecessárias

§  O aspecto da impossibilidade consiste no que comentamos há pouco sobre os problemas de abstração e de análise/síntese

§  O aspecto da desnecessidade aborda outra consideração: as ciências concretas complicam demais a síntese positiva, sem que isso se reverta em maior e/ou melhor compreensão do mundo e do ser humano

o   Augusto Comte reconhecia que, evidentemente, é possível obter padrões e regras nas “ciências concretas”; mas tais padrões e regras são puramente empíricos e não abstratos; nesse sentido, eles têm aspectos mais descritivos (relações de itens ou fases, com suas características específicas) que explicativos (relações entre fenômenos, em termos de coexistência e/ou sucessão)

§  As explicações no âmbito do que seriam as “ciências concretas” dar-se-iam da seguinte maneira:

·         Combinação de explicações abstratas, em “camadas”, mais as regras empíricas de cada área

o   A multidisciplinaridade de modo geral considera questões concretas; as demandas de explicações “multidisciplinares” retomam, sob uma outra roupagem, a concepção de “ciências concretas”

-        O próximo tema é que a Trindade Positiva integra os elementos próprios à síntese positiva e, nesse sentido (bem pobre, aliás), ela integraria uma transdisciplinaridade positivista

o   Antes de mais nada: a Trindade Positiva integraria de maneira pobre uma transdisciplinaridade positivista não porque não seja possível estabelecer de maneira plena essa transdisciplinaridade, mas porque a referência à transdisciplinaridade na verdade empobrece a concepção da Trindade Positiva e, de modo mais amplo, a própria Religião da Humanidade

o   A Trindade Positiva é composta pelo Grande Meio (o Espaço), pelo Grande Fetiche (a Terra) e pelo Grande Ser (a Humanidade)

§  O Grande Meio é o mais abstrato; ele é dotado de sentimentos, mas não de ação nem de inteligência

·         É no Espaço, em particular, que se desenrolam as leis da Filosofia Primeira

·         No Espaço vemos ocorrerem as leis da Matemática até a Biologia

§  O Grande Fetiche é dotado de sentimentos e de ação, mas não de inteligência

·         A Terra apresenta um grau intermediário de concretude e de complexidade

·         Na Terra nós vemos aplicarem-se as leis da Matemática à Biologia

§  O Grande Ser é dotado de sentimentos, de ação e de inteligência; a inteligência confere-lhe a intencionalidade

·         Sem deixar de ser abstrato, o Grande Ser é o integrante da Trindade Positiva que apresenta maior concretude

·         A Humanidade apresenta as leis superiores, das ciências sagradas, isto é, da Sociologia e da Moral

o   Como vemos, do Grande Meio ao Grande Ser há um aumento de concretude e também de “complexidade”; além disso, a Trindade Positiva é verdadeiramente uma concepção sintética, ao reunir (e usar) o neofetichismo ao conjunto das concepções humanas (filosóficas, científicas, artísticas)

o   A Trindade Positiva consiste em uma ousada concepção de Augusto Comte, aplicando plenamente o neofetichismo à positividade, de maneira a dotar de racionalidade e afetividade todas as nossas concepções

o   Esses aspectos evidenciam o quanto a Trindade Positiva poderia perfeitamente bem ser entendida como “transdisciplinar” (claro, se esse adjetivo não implicasse uma redução brutal de sua concepção)

-        O último aspecto que vale a pena indicar aqui é que a Religião da Humanidade pode e deve ser entendida como um conjunto de indicações, sugestões, orientações e prescrições visando a regular e a lidar com os problemas afetivos, intelectuais e práticos da inter, da multi e, principalmente, da transdisciplinaridade

o   A respeito deste último aspecto, não há nenhuma novidade; o que desejamos enfatizar é que a Religião da Humanidade adota conscientemente perspectivas amplas para regular e orientar a vida humana e que, para tanto, necessariamente lida com a inter, a multi e a transdisciplinaridade

o   Aliás, os “simples” fatos de que o Positivismo lida com a tríplice natureza humana (sentimentos, atividade, inteligência), com variados sentidos de subjetividade (social, individual, imaginação), que considera a multiplicidade irredutível de leis naturais, que distingue com cuidado o abstrato e o concreto (ou, dito de outra maneira, a teoria e a prática) – tudo isso deixa claro que a Religião da Humanidade lida com a inter, a multi e a transdisciplinaridade

§  O esforço para coordenar tudo isso exige, antes, um esforço para entender cada um desses elementos; assim, além da coordenação e da regulação da existência humana em bases positivas, o Positivismo permite que se compreenda, ou melhor, que se esclareça essa mesma realidade

§  Isso é muito, muito mais do que as outras filosofias (teológicas e metafísicas) fazem e também é muito mais do que as propostas de multi e transdisciplinaridade realizam

30 janeiro 2024

Sobre inter, multi e transdisciplinaridade - parte 1

No dia 2 de Homero de 170 (30.1.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos os temas da inter, da multi e da transdisciplinaridade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/E6kXX) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/2ZifK). O sermão iniciou-se aos 36 min 07 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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Sobre inter, multi e transdisciplinaridade 

-        Alguns temas que há várias décadas têm sido enfatizados são o da inter, multi e transdisciplinaridade

o   Basicamente esses temas são próprios a ambientes científicos, ou melhor, acadêmicos; nesse sentido, eles apresentam um aspecto cientificista e até academicista, quando se vinculam a questões puramente ou majoritariamente intelectualistas

o   Entretanto, esses temas em si são importantes e, quando se desvinculam do aspecto intelectualista, eles passam a evidenciar grandes aplicações

-        No ambiente acadêmico, a palavra “positivismo”, por motivos torpes, é sinônima de “unidisciplinaridade estrita”, ou seja, de aversão à inter, à multi e à transdisciplinaridade

o   Entretanto, essa concepção é puramente preconceituosa e originada da má-fé de adversários, que buscam um bode expiatório fácil: nesse caso, é a má-fé “habitual”

o   Por outro lado, há pensadores e correntes de pensamento que, desejando afirmar a inter, a multi e a transdisciplinaridade, adotam o sofisma do espantalho e usam uma contraposição forçada ao Positivismo apenas com o objetivo de dizerem que eles, os adversários, são os únicos e verdadeiros promotores da visão não unidisciplinar

§  Mas, com freqüência, os dois casos acima (má-fé; transdisciplinares do espantalho) raramente ultrapassam os limites do cientificismo e, ainda mais, do academicismo

o   O Positivismo de verdade, isto é, a Religião da Humanidade não somente tem muito a dizer a respeito desses conceitos como, além disso, ela afirma e baseia-se na multi e na transdisciplinaridade!

-        Consideremos, então, conceitos básicos de cada uma dessas possibilidades

o   Vale notar que não procuraremos ser exaustivos a respeito; o que nos interessa é considerar conceitos úteis para as nossas presentes reflexões

o   O conceito fundamental é o da especialização, da “disciplinaridade”

o   Em oposição parcial e crescente à disciplinaridade, temos o seguinte:

§  Interdisciplinaridade: é a reunião de duas áreas do conhecimento (por ex., a neuroquímica), para o estudo de questões abstratas ou concretas

§  Multidisciplinaridade: é a reunião de várias áreas do conhecimento para o estudo de alguma situação concreta

§  Transdisciplinaridade: é a aplicação de critérios extracientíficos às concepções científicas – geralmente concepções de cunho social-moral

-        Algumas características das categorias acima e que são notáveis, para os nossos propósitos:

o   Conceitos cientificistas, ou, de modo geral, academicistas (na medida em que muitas vezes abrangem também ramos das belas-artes);

o   Baseiam-se na existência das disciplinas acadêmicas (nas “disciplinaridades);

o   Forte presença de um racionalismo que lida relativamente mal com a filosofia e as questões morais e que, em virtude disso, no âmbito da transdisciplinaridade, muitas vezes descamba para o misticismo (e, portanto, até para o irracionalismo);

o   Freqüentes confusões entre o que é abstrato e o que é concreto

§  Freqüentes renovações de propostas de “leis concretas”

o   De qualquer maneira, da inter para a transdisciplinaridade, há uma progressiva rejeição do materialismo e do reducionismo

o   Além disso, quando se pratica a inter, a multi e a transdisciplinaridade, costuma-se haver afirmações de “elaborações superiores”, “sínteses amplas” etc.

§  Entretanto, essas afirmações são meras expressões de desejos e de intenções, sem maiores conseqüências

§  Podemos, e mesmo devemos, suspeitar que a ausência de “maiores conseqüências” deve-se não à impossibilidade ou à dificuldade de realizarem-se tais “maiores conseqüências”, mas, sim, ao secreto desejo de não realizar tais sínteses amplas

§  Em outras palavras, o que se deseja é manter-se no âmbito da especialização e da disciplinaridade, além de não se submter a parâmetros superiores e reguladores (morais e religiosos)

·         Daí, aliás, um dos motivos secretos por que o Positivismo é mal visto na academia

-        Passemos então a tratar dessas questões à luz do Positivismo; comecemos por aspectos estáticos, de caráter filosófico-científico:

o   Antes de mais nada, o Positivismo afirma com todas as letras a importância da visão de conjunto; na verdade, ele constituiu-se desde o início como a afirmação da visão de conjunto sobre a realidade humana, em termos sócio-históricos, filosóficos e morais

o   A afirmação da visão de conjunto é o princípio fundamental que permite e justifica a inter, a multi e a transdisciplinaridade

o   Na verdade, Augusto Comte sempre disse para quem quisesse ouvir (e ler) que o Positivismo surgiu como uma filosofia derivada da e aplicada às ciências – ou seja, o Positivismo é desde à partida uma transdisciplinaridade

§  Essa transdisciplinaridade caracteriza-se desde o início não apenas porque o Positivismo é uma filosofia, mas também porque ele aplica claramente – e cada vez mais claramentecritérios morais em suas concepções e ações

§  A visão de conjunto filosófica sobre as ciências serviu tanto como uma reflexão geral sobre as ciências quanto como uma base para a criação de uma nova ciência, a Sociologia

·         A Sociologia foi criada como ciência autônoma, com a delimitação de seus métodos, seus objetos, suas aplicações, seus limites, suas relações com as demais ciências – tudo isso a partir do exame de conjunto das demais ciências, da realidade humana em termos históricos e da realidade em termos “gerais”

·         A criação da Sociologia consistiu também na sistematização da visão de conjunto e da aplicação da perspectiva filosófica, sócio-histórica e moral aplicada ao conjunto das ciências inferiores

·         Ao mesmo tempo em que Augusto Comte criou a Sociologia, ele criou a História das Ciências, entendida não como o simples relato das atividades científicas, mas como a compreensão dos fatores que conduzem ao desenvolvimento das ciências

o   Em outras palavras, a História das Ciências criada por Augusto Comte é uma “história” porque se trata de uma história sociológica das ciências

o   Com o desenvolvimento do Positivismo, isto é, com o seu amadurecimento, a “visão de conjunto” passou também a implicar necessariamente as noções de “subjetividade”

§  O Positivismo aplica pelo menos duas noções de subjetividade, ambas plenas de conseqüências:

·         A primeira é a subjetividade social, que afirma as concepções próprias e a realidade específica do ser humano, em contraposição ao mundo externo e, daí, às ciências inferiores

·         A segunda é a subjetividade individual

§  As duas subjetividades acima englobam os sentimentos e as idéias

·         Há também o âmbito da imaginação, que está no escopo das belas-artes

·         Enquanto as subjetividades indicadas acima têm um papel estruturador do ser humano, a imaginação (na medida em que se vincula às artes) assume uma característica mais subordinada

o   A subordinação da imaginação deve-se à necessidade mais pronunciada de sua regulação, para que não se desvirtue e não descambe para o irracional, o imoral, o puramente fantástico, o alucinado etc.

o   A visão de conjunto amadurecida, ao constituir a Religião da Humanidade, também passou a abarcar mais claramente as noções de “sínteses”

§  As sínteses são concepções gerais que afirmam e estabelecem princípios gerais de entendimento e avaliação da realidade

§  Como sabemos, as sínteses podem ser objetivas ou subjetivas, absolutas ou relativas; na verdade, as sínteses só podem ser subjetivas e relativas, mas podem pretender-se absolutas e objetivas ou subjetivas

-        Vale a pena insistirmos em algumas características das disciplinas criadas por Augusto Comte:

o   O fundador da Religião da Humanidade criou pelo menos duas, talvez três, disciplinas científicas, todas elas tomando necessariamente como base a visão de conjunto:

§  As disciplinas criadas foram (1) a Sociologia, (2) a Moral e (3) a História das Ciências

§  A criação dessas disciplinas com base na visão de conjunto deu-se contrariamente à tendência da fundação de todas as outras ciências, em particular em termos acadêmicos:

·         A tendência academicista consiste na rejeição da visão de conjunto e, inversamente, com enorme freqüência na afirmação do reducionismo (ou materialismo)

-        Ao fundar a Sociologia e, depois, a Moral, Augusto Comte constituiu e concluiu a escala enciclopédica; essa escala afirma a existência de sete ciências abstratas fundamentais, cujos objetos e cujos tipos de abstração são irredutíveis uns aos outros:

o   O que a escala enciclopédica faz, portanto, é insistir na existência de fenômenos abstratos irredutíveis uns aos outros

§  Augusto Comte definia uma ciência como um conjunto de investigações abstratas sobre um determinado âmbito da realidade

§  Isso significa que, sob uma denominação científica geral (e no singular) podem agrupar-se inúmeras ciências mais específicas

·         Dois exemplos com valores intelectuais heterogêneos: a Matemática engloba três ciências específicas (Aritmética, Geometria e Mecânica); a Sociologia, conforme é ordinariamente praticada nas academias brasileiras, engloba a Sociologia específica, a Antropologia e a Ciência Política

o   Ora, a escala enciclopédica, portanto, não nega a possibilidade de intere multidisciplinaridade:

§  A interdisciplinaridade dá-se de maneira evidente nas “franjas” de transição entre as ciências justapostas

§  A multidisciplinaridade, por seu turno, não se dá no âmbito das ciências fundamentais, ou, nos precisos termos da Religião da Humanidade, no âmbito da Filosofia Segunda (as ciências fundamentais)

·         A multidisciplinaridade ocorre na Filosofia Terceira, isto é, na aplicação prática das ciências fundamentais, que é o que se chama geralmente de “tecnologia”

o   A transdisciplinaridade no âmbito da Religião da Humanidade é afirmada com ainda mais clareza, estabelecida como parâmetro necessário de entendimento da realidade e como princípio epistemológico – e, evidentemente, também como princípio moral

§  Exatamente porque considera a visão de conjunto sobre a realidade humana; exatamente porque se dirige ao conjunto da existência humana é que a versão amadurecida do Positivismo é uma “religião” – necessariamente a Religião da Humanidade

§  No âmbito acadêmico, quem afirma a multi e mesmo a transdisciplinaridade mas rejeita a Religião da Humanidade, fá-lo devido a alguns motivos não muito bons e não necessariamente excludentes entre si:

·         Ignorância da obra de Augusto Comte

·         Ciúme da obra de Augusto Comte

·         Incoerência filosófica e/ou moral – que pode incluir como subtipos:

o   Apego à teologia e/ou aos hábitos críticos

o   Aceitação da teoria metafísica dos dois domínios (intelectual-científico e “espiritual”-teológico) – que é profundamente irracional e incoerente

-        Os comentários feitos até agora foram de caráter estático (científicas, filosóficas e morais); passemos a algumas reflexões dinâmicas (históricas e filosóficas)

o   A visão de conjunto de modo geral faz parte das reflexões humanas; na verdade, todos os seres humanos buscam ter uma visão de conjunto sobre o mundo e sobre o ser humano, incluindo os elementos dessa realidade e os princípios que a regem

§  Como sabemos, essas concepções gerais sobre o homem e o mundo constituem as sínteses e as regulações gerais da vida, baseadas nas sínteses, constituem as religiões

-        Como a busca de concepções gerais integra a natureza humana, é natural que todas as sociedades desenvolvam suas elaborações, isto é, suas sínteses

o   O fetichismo elabora espontaneamente uma síntese, ao atribuir à realidade externa as mesmas características que os seres humanos percebem em si mesmos

o   Mas é nas teocracias antigas que se tem uma regulação geral e sintética da existência humana, elaborada e mantida pelo sacerdócio

§  Essa regulação é característica do politeísmo e, em virtude de seu caráter estático, esse politeísmo é conservador

§  Embora seja uma forma errada, pois invertida, de entender a questão, com fins didáticos podemos dizer que a unidade sacerdotal teocrática era inerentemente “transdisciplinar”

§  O politeísmo conservador baseia-se na ascendência (ou dominação) dos sacerdotes sobre os guerreiros; quando os guerreiros afinal obtêm o poder, a unidade mantida pelo sacerdócio afinal se rompe e, a partir daí, surgem efetivamente aquilo que chamamos atualmente de “disciplinas”

o   No Ocidente, a seqüência seguida na emancipação do jugo sacerdotal teocrático – ou, de maneira equivalente, a seqüência na fragmentação da unidade teocrática – foi a seguinte: as artes; a filosofia; a ciência

§  A indústria sempre teve uma existência à parte, embora, é claro, dependente tanto da regulação social teocrática quanto dos conhecimentos elaborados, conservados e difundidos pelo sacerdócio

o   A seqüência de emancipação arte-filosofia-ciência é ilustrada exemplarmente na evolução grega e indicada no calendário positivisa concreto por Homero, Aristóteles e Arquimedes

o   A emancipação de cada uma dessas atividades permitiu, evidentemente, o seu livre desenvolvimento

§  Uma forma alternativa de dizê-lo é o seguinte: o livre desenvolvimento das produções intelectuais humanas exigiu o rompimento dos parâmetros gerais de regulação, tanto os intelectuais quanto os morais

§  Os parâmetros intelectuais incluíam a visão de conjunto; os parâmetros morais incluíam as preocupações sociais

o   O rompimento dos padrões teocráticos deu livre curso aos ramos intelectuais, conduzindo então, progressivamente, à especialização dos conhecimentos – o que, no jargão atual, consiste na “disciplinarização” dos conhecimentos

o   A dominação romana, ao estabelecer o desenvolvimento prático, subordinou as elaborações gregas às necessidades morais e práticas, ou seja, restabeleceu um pouco os parâmetros morais e sociais

§  Em outras palavras, a dominação romana impôs uma visão de conjunto às elaborações gregas

o   A partir da sociabilidade romana, por fim a Idade Média desenvolveu a moralidade, cultivando diretamente os sentimentos (ainda que a partir de uma síntese fictícia, absoluta e egoísta; que se concentrasse na pureza e não no altruísmo; que tivesse que ser auxiliada pelo elemento cavalheiresco da feudalidade)

§  Da mesma forma, a partir de uma síntese fictícia, absoluta e egoísta, a Idade Média também impôs uma visão de conjunto à existência humana

o   O desenvolvimento básico da inteligência (Grécia), da atividade prática (Roma) e dos sentimentos (Idade Média) realizou-se sob o patrocínio da teologia, nas formas do politeísmo progressista e do monoteísmo católico; a partir de então a teologia encontrou-se esgotada, sendo necessário o desenvolvimento direto do dogma positivo com o objetivo de elaborar-se uma síntese relativa e subjetiva

§  A elaboração do dogma positivo baseou-se em um novo rompimento dos parâmetros sintéticos, agora do monoteísmo

§  Enquanto auxiliou o desenvolvimento humano, ou seja, enquanto a síntese monoteica não se deparou com concepções francamente contrárias a si, ela teve um caráter progressista; entretanto, à medida que o dogma positivo ampliou-se e avançou, ficou cada vez mais claro que a síntese monoteísta é incompatível com a realidade, o relativismo e o subjetivismo dos conhecimentos – daí que a teologia tornou-se cada vez mais e progressivamente retrógrada e reacionária

o   O dogma positivo constituiu-se na forma do desenvolvimento de novas áreas das ciências preexistentes e na criação de novas ciências

§  Como Augusto Comte notava, um dos mais importantes traços desse movimento foi a introdução de perspectivas dinâmicas às investigações reais, em contraposição ao caráter estático das pesquisas antigas

§  Além disso, cada vez mais o relativismo das investigações evidenciou-se, abandonando-se a metafísica do “por quê?” em favor da positividade do “como?”

o   O desenvolvimento do dogma positivo foi, em si mesmo, algo necessário e bom, mas teve algumas características inescapáveis que, a longo prazo, tornaram-se negativas:

§  A progressiva especialização, no sentido de progressiva rejeição da visão de conjunto, entendida como algo inerentemente bom

§  A concepção de que a visão de conjunto – àquela altura entendida como sinônimo de aplicação da síntese monoteísta – seria algo necessariamente negativo (repressivo e/ou místico), portanto a ser evitado e/ou combatido

§  O necessário reducionismo (ou materialismo) de cada ciência que progressivamente se afirmava, em relação às concepções superiores a si

·         O academicismo aprofunda os vícios indicados acima

§  É a partir de e contra a “disciplinarização”, a especialização e o reducionismo próprios ao desenvolvimento do dogma científico que se pode falar, então, em “inter”, “multi” e “transdisciplinaridade”

·         É por isso que temos insistido em que a inter, a multi e a transdisciplinaridade são propostas carregadas de cientificismo e, ainda mais, freqüentes vezes, de academicismo

o   Essa marcha, como se sabe, abrangeu a Matemática, a Astronomia, a Física, a Química e a Biologia

§  A Biologia é a última das ciências inferiores, ou a primeira das ciências superiores: em todo caso, ela estabelece a transição entre o mundo externo (o mundo) e o mundo interno (o ser humano)

§  Enquanto as ciências inferiores, da Matemática à Química, adotam perspectivas de detalhe, a Biologia inverte a perspectiva, exigindo visões de conjunto: em outras palavras, ela é a primeira ciência que exige a retomada da visão de conjunto

·         Isso, todavia, não evita necessariamente os vícios próprios à ciência, como a “disciplinaridade” e, ainda mais, o reducionismo em relação à Sociologia e à Moral

o   A Sociologia aprofunda a exigência da visão de conjunto; na verdade, ela exige a visão de conjunto estática (na solidariedade) e, ainda mais, a dinâmica (na continuidade)

§  Como vimos, a Sociologia constituiu-se – mas que esteja bem claro: apenas e exclusivamente com Augusto Comte, não com outros autores! – como sendo ao mesmo tempo “transdisciplinar” e respeitando a dignidade das ciências inferiores!

o   A criação da ciência da Moral completa a escala enciclopédica e, assim, conclui e aperfeiçoa a síntese positiva, relativa e subjetiva

§  Ao mesmo tempo, a Moral consolida e amplia os parâmetros intelectuais, sociais e morais instituídos pela Sociologia

o   Os vícios intelectuais, morais e institucionais próprios às ciências conduziram Augusto Comte a perceber que seria necessário afirmar com clareza ainda maior a visão de conjunto, ou melhor, a unidade do ser humano

§  A afirmação da unidade do ser humano, todavia, não poderia dar-se com a negação da dignidade de cada uma das ciências fundamentais

§  Ao afirmar e aprofundar o espírito positivo, isto é, as suas características de relativismo e de subjetivismo, então, Augusto Comte reconheceu que é necessário distinguir duas formas, ou melhor, duas etapas sucessivas do espírito positivo: uma etapa analítica, disciplinarizada, e outra sintética, filosófica

·         Enquanto a primeira etapa permite a disciplinaridade, a interdisciplinaridade e, até certo ponto, a multidisciplinaridade, a segunda etapa é a única que pode ser chamada de transdisciplinar

§  Entretanto, é importante notar que a síntese positiva é superior à chamada transdisciplinaridade

·         O verdadeiro espírito positivo só se dá com a sua forma filosófica, pois é esta que estabelece, ou restabelece, a síntese positiva e, daí, a unidade humana

§  Uma forma ao mesmo tempo simples e bela de estabelecer a síntese positiva e a unidade humana é por meio da afirmação de que, na verdade, só existe uma ciência, a ciência do ser humano – ou melhor, só existe a ciência da Humanidade

-        Esta exposição está bastante longa, mas não é exaustiva; desde já posso indicar que deixei de lado, mas que não poderei desenvolver agora, pelo menos alguns temas que foram citados:

o   A falsa esperança das chamadas “ciências concretas”, que, no fundo, é o que fundamenta muitas das propostas de multidisciplinaridade

o   A relação entre a síntese subjetiva e as ciências abstratas, ou, dito de outra forma, a relação entre as perspectivas analíticas abstratas e a síntese concreta

o   Além disso, embora eu não tenha citado ao longo desta exposição, vale notar que a Trindade Positiva integra os elementos próprios à síntese positiva e que, nesse sentido (bem pobre, aliás), ela integraria uma transdisciplinaridade positivista

o   Da mesma forma, a Religião da Humanidade pode e deve ser entendida como um conjunto de indicações, sugestões, orientações e prescrições visando a regular e a lidar com os problemas afetivos, intelectuais e práticos da inter, da multi e, principalmente, da transdisciplinaridade

-        Em suma:

o   As propostas de inter, multi e transdisciplinaridade surgem a partir das especializações científicas e, ainda mais, das especializações acadêmicas

§  Essas propostas muitas vezes são generosas e corretas, ainda que apresentem limitações e sejam também muitas vezes eivadas de incoerências

§  Em última análise, o que fundamenta as propostas de inter, multi e transdisciplinaridade é a afirmação cada vez mais ampla da visão de conjunto e a busca de uma síntese humana – que, todavia, na prática são negadas pelos próprios cultores da inter, da multi e da transdisciplinaridade

o   O Positivismo é uma filosofia que claramente, desde o início, com todas as letras constituiu-se a partir da visão de conjunto; a partir disso ele elaborou uma filosofia histórica das ciências e, ao mesmo tempo, criou a Sociologia

§  A compreensão de que as ciências abstratas fundamentais devem ter suas dignidades respeitadas mas que, ao mesmo tempo, elas são insuficientes para a síntese e a unidade humanas levou Augusto Comte a dividir a etapa intelectual do espírito positivo em duas novas fases sucessivas: uma analítica, mais cientificista, e outra sintética, de caráter necessariamente filosófico

§  É claro que a etapa sintético-filosófica é superior à etapa analítico-cientificista

o   O aprofundamento progressivo da visão de conjunto e o evidenciamento dos seus aspectos morais conduziram Augusto Comte a criar a ciência da Moral e, entendendo a importância e a necessidade da síntese positiva e da unidade humana, a criar a Religião da Humanidade, epítome de todas essas exigências