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03 maio 2022

Curso livre de política positiva: roteiro da 8ª sessão

Reproduzo abaixo o roteiro da oitva sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 27 de abril, transmitida no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=OjCAlJl3Q_c). Nessa seção, abordei a teoria positiva do governo, em particular concluindo a teoria do poder Temporal e iniciando a do poder Espiritual.

*   *   * 

Súmula

Sociologia Estática VI: teoria do governo: o poder Temporal (concl.); o poder Espiritual

 

Roteiro

-        Concluindo a teoria do poder Temporal:

o   Augusto Comte observa que o governo tem que pertencer à classe social dominante, o que equivale a dizer que ele tem que ser exercido pelo patriciado

§  A fórmula que condensa as relações entre superiores e inferiores é esta: “dedicação dos fortes pelos fracos, veneração dos fracos pelos fortes”

§  Essa fórmula pode parecer extravagante para alguns, mas é necessário notar dois aspectos centrais a seu respeito para que ela seja entendida:

·         Desde o fim da Idade Média, no Ocidente, vivemos em uma época de crise, de transição, em que os valores antigos não são mais respeitados e o desrespeito sistemático às regras, aos valores, às instituições é considerado o supremo valor e a máxima realização do “progresso”

o   Assim, essa proposta é um princípio que visa a evitar, a solucionar, a orientar e a aproveitar conflitos sociais; é uma proposta normal (isto é, que considera o estado normal) e sua aparente extravagância deve-se ao caráter metafísico, crítico, da civilização da nossa época

·         A dedicação dos fortes pelos fracos, correspondente à orientação social e altruísta das atividades, é uma preocupação maior e de consequências imediatas mais amplas que a veneração dos fracos pelos fortes, que por sua vez é correspondente ao respeito dos subordinados aos seus superiores

o   É claro que se a cobrança da dedicação dos fortes deve ser grande (e até maior que o respeito dos fracos), isso não exime os fracos de serem respeitosos pelos fortes

§  O governo tem que ser do patriciado, não da burguesia

§  O governo tem que ser exercido com fins sociais

§  Como deveria ser evidente, o exercício do governo é diferente das atividades industriais: enquanto estas são parciais e estimulam diretamente o egoísmo, o governo é geral e tem que ser inspirado sempre pelo altruísmo

·         Se o patrício que se torna governante mantivesse o caráter “privado” de sua atuação no governo, ele manteria o espírito da “separação dos ofícios” e negaria na prática a “convergência dos esforços”, que é o objetivo e a justificativa do governo

§  No período de transição, a afirmação do caráter social e de vistas gerais do governo pode ter que ser reafirmado por meio de um governo exercido por um proletário

-        Teoria do poder Espiritual:

o   A teoria do poder Espiritual é complementar à teoria do poder Temporal

§  A sua justificativa teórica, em termos sociológicos, é o aforisma: “nenhuma sociedade pode perdurar sem alguma forma de poder Espiritual”

o   O poder Espiritual, como o poder Temporal, tem por objetivo basicamente a afirmação das vistas gerais

§  As vistas gerais afirmadas pelo poder Espiritual são mais amplas que as do poder Temporal:

·         por um lado, afirmam a realidade planetária do ser humano, ultrapassando as fronteiras nacionais

·         por outro lado, afirmam a realidade histórica do ser humano, afirmando a preponderância do passado e do futuro sobre o presente

§  Augusto Comte (1929, v. II, p. 313-319) estabelece uma série de contraposições sistemáticas entre os poderes Temporal e Espiritual:

§   

CARACTERÍSTICA

PODER ESPIRITUAL

PODER TEMPORAL

Âmbito

Eterno

Material

Duração

Permanente

Temporário

Caráter intelectual

Geral

Especial

Caráter geográfico

Global

Local

Caráter social

Intérprete da continuidade

Organizador da solidariedade

Relação com a história

Passado, futuro, presente

Presente

Fundamento

Conselho

Força

Aspecto-síntese

Teórico

Prático

 

o   Comparando os dois poderes, é fácil considerar que o poder Espiritual é mais representativo da Humanidade que o Temporal

§  Isso pode conduzir com facilidade à presunção do poder Espiritual de ser o responsável pela condução dos negócios públicos

§  Entretanto, o poder Temporal é o prático e o responsável pela gestão dos negócios públicos, ao passo que o Espiritual é o teórico e o responsável pelo aconselhamento

§  Assim, para que as funções sejam claras e bem desenvolvidas, é imperioso que ambos os poderes sejam separados à essa é “separação dos dois poderes”, que corresponde ao princípio político prático fundamental do Positivismo (vulgarmente conhecido como “laicidade do Estado”)

§  Além de separados, os poderes devem ser subordinados em seus respectivos âmbitos de atuação; em termos concretos, isso quer dizer quem conduz efetivamente a política é o poder Temporal, não o Espiritual

§  Essa é uma aplicação prática do princípio teórico segundo o qual os fenômenos mais nobres modificam os mais grosseiros subordinando-se a eles

o   Augusto Comte critica a tendência moderna, prevalecente desde o fim da Idade Média, de considerar as relações sociais e, daí, a teorização sócio-política cada vez mais em termos objetivistas, isto é, temporais, rejeitando as influências morais (muito mais que as intelectuais)

§  A consequência dessa rejeição da moralidade – exemplificada por Maquiavel, que pela Ciência Política é celebrado como o iniciador dessa tendência – é o entendimento de que as relações sócio-políticas são entendidas cada vez mais em termos de força, poder e violência

§  O amoralismo afirmado logo se transformou em imoralismo

§  A consequência moral da negação da moralidade é a afirmação e a celebração do egoísmo como padrão moral humano supremo, explícito (como em Hobbes) ou implícito (na conduta cotidiana)

·         Vale notar que no período entre 1870 (na Europa) e 1920 (no Brasil) até 1945 (no mundo) as concepções mais brutais e violentas da política foram afirmadas, contra o Positivismo, que, aliás, viu-se alvo de desprezo exatamente porque sempre rejeitou por princípio a violência e a brutalidade

·         Esse período que se inicia em 1870 na Europa corresponde à influência de Bismarck na política internacional, bem como ao comunismo; após 1920 começa a ocorrer também a influência dos nazifascismos, todos eles afirmadores do cinismo e da violência

o   Em certo sentido, a teoria do poder Espiritual é a teoria mais importante do Positivismo

§  O estabelecimento de um poder Espiritual positivo é a consequência necessária e desejada pelo Positivismo desde o início da carreira de Augusto Comte

§  Esse estabelecimento decorre também, é claro, dos diagnósticos que Augusto Comte fez da crise moderna:

·         Duplo movimento moderno, com a decadência da antiga organização social (teológica, feudal e militar) e o surgimento de uma nova organização social (positiva, industrial e pacífica)

·         Ultrapassagem da forma de pensar absolutista para a forma de pensar relativista à a mais ampla revolução por que já passou o ser humano

03 fevereiro 2017

Livro à venda: "Introdução à Sociologia Política"



Finalmente está disponível para venda o livro Introdução à Sociologia Política

Publicado pela Editora Intersaberes, ele pode ser comprado aqui.

Essa obra destina-se ao público em geral, a estudantes de graduação, de especialização, de mestrado e de doutorado das mais variadas áreas do conhecimento!
É uma obra que apresenta os principais conceitos, as discussões fundamentais e a história da Sociologia Política. É o livro mais completo de introdução à Sociologia Política no Brasil.
Além das discussões históricas e teóricas, cada capítulo tem uma sessão didático-pedagógica e extensas indicações de leitura adicional.
Para ter-se uma idéia do conteúdo - e da qualidade! - do livro, o seu sumário é este:


1. INTRODUÇÃO

2. O CONTEXTO HISTÓRICO: COMO FOI POSSÍVEL SURGIR A SOCIOLOGIA POLÍTICA?

2.1. Alguns precursores intelectuais
2.1.1. Aristóteles
2.1.2. Tucídides
2.1.3. Nicolau Maquiavel
2.1.4. Thomas Hobbes
2.1.5. Montesquieu
2.2. Três revoluções
2.2.1. A Revolução Científica
2.2.2. A Revolução Industrial
2.2.3. A Revolução Francesa
2.3. A fundação da Sociologia: Augusto Comte
2.4. Dois autores básicos da Sociologia Política
2.4.1. Karl Marx
2.4.2. Max Weber
Exercícios do capítulo 2
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

3. OBJETO E MÉTODO DA SOCIOLOGIA POLÍTICA: QUAL SUA IDENTIDADE?

3.1. Definindo o objeto
3.1.1. Ciência, “religião”, filosofia
3.1.2. Ciência Política, Filosofia Política, política prática
3.1.3. Ciência Política, Sociologia Política, Sociologia da Política
3.1.4. Ciência Política e Relações Internacionais
3.2. Definindo o método
3.2.1. A querela Ciências Naturais vs. “Ciências do Espírito”
3.2.2. Métodos quantitativos e métodos qualitativos; a lógica da inferência
3.2.3. Teorias “empíricas” vs. teorias normativas
Exercícios do capítulo 3
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

4. ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS

4.1. Poder
4.1.1. Características básicas
4.1.2. Concepções subjetivistas do poder
4.1.3. Concepções objetivistas do poder
4.1.4. Concepções do poder nas Relações Internacionais
4.1.5. Outras abordagens: Michel Foucault
4.1.6. Outras abordagens: Hannah Arendt
4.1.7. Outras abordagens: Augusto Comte
4.1.8. Alguns métodos de pesquisa: posicional, decisional e reputacional
4.2. Estado
4.2.1. Definição básica
4.2.2. Algumas características da burocracia
4.2.3. Legitimidade, dominação e autoridade
4.2.4. Evolução histórica do Estado: da Antigüidade à globalização
4.3. Governo
4.3.1. República vs. monarquia
4.3.2. Presidencialismo vs. parlamentarismo
4.4. Regimes políticos
4.4.1. Democracia
4.4.2. Totalitarismo
4.4.2. Autoritarismo
4.5. Partidos políticos
4.5.1. "Partidos" na história e funções dos partidos políticos
4.5.2. Condições sociais dos partidos políticos
Exercícios do capítulo 4
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

5. PALAVRAS FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS

Capítulo 2 – O contexto histórico
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão
Capítulo 3 – Objeto e método da Sociologia Política
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão
Capítulo 4 – Alguns conceitos fundamentais
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

NOTA SOBRE O AUTOR

07 abril 2014

Premiação contra a laicidade

Mais um pequeno artigo de minha autoria, publicado na Gazeta do Povo neste dia 7.4.2014. 

(Apenas peço que desconsiderem os vários erros de pontuação e de acentuação, devidos à colaboração do revisor da própria Gazeta do Povo.)


ARTIGO

Premiação contra a laicidade

Publicado em 07/04/2014 | GUSTAVO BISCAIA DE LACERDA
Mais uma vez temos de escrever sobre a laicidade – agora devido a um projeto que tramita na Câmara de Vereadores de Curitiba para instituir um prêmio oficial para evangélicos, conforme proposto pela vereadora Carla Pimentel (PSC).

Basicamente, e de modo geral, utilizam-se no Brasil dois argumentos para justificar o desrespeito à laicidade do Estado, nos níveis federal, estadual, municipal e local: o fato de a maioria da população ser (nominalmente) cristã; e a ideia de que um Estado laico não é um “Estado ateu”.

Comecemos pelo segundo. De fato, Estado laico não é Estado ateu. Um Estado laico não apoia, não beneficia e nem reprime nenhuma religião, ou seja, não existe religião de Estado, pois o Estado escolhe não beneficiar e influenciar-se por nenhuma religião: assim, não se mistura a figura do crente com a do cidadão. O Estado ateu faz uma escolha religiosa muito clara, em favor do ateísmo. Em termos de laicidade, essa perspectiva é idêntica à propalada pelo deputado-pastor Marco Feliciano, também do PSC, para quem no Brasil o Estado é “laico-cristão”: isso é um completo oxímoro, pois o Estado ou é cristão (com alguma seita erigida em culto oficial), ou é laico (sem religião oficial e com liberdade total garantida aos cidadãos para crer no que quiserem). Para que um indivíduo seja cidadão, basta ter a cidadania jurídica; para ser um bom cidadão, basta cumprir seus deveres e exercer seus direitos conforme estabelecidos por lei. Não há obrigação de frequentar templos, rezar orações, falar em nome de deuses, vestir adereços e/ou pagar dízimos.

Há de se notar que, se um Estado tem religião oficial, surgem duas ou três consequências: as crenças íntimas dos cidadãos tornam-se matéria de regulação estatal e, portanto, os cidadãos são obrigados a crer no que o Estado determinar; surgem as figuras dos crimes de heresia e de blasfêmia, ou seja, de exprimir ideias discordantes das doutrinas oficiais; e cria-se um sistema oficial de hipocrisia e cinismo, em que os cidadãos têm de fingir que acreditam no que descreem.

Nesse sentido, não tem a menor importância que a maioria da população brasileira seja, supostamente, cristã. As crenças íntimas dos cidadãos não podem ser impostas pelo Estado e, inversamente, a laicidade garante a liberdade de cada um crer no que desejar: caso um Cristianismo – mas, aliás, qual? – fosse novamente tornado religião oficial, a liberdade deixaria de existir. Convém notar, além disso, que é exatamente devido à liberdade garantida pelo Estado laico que os evangélicos podem expressar publicamente suas crenças, construir seus templos e organizar-se politicamente. Assim, Carla Pimentel só pôde tornar-se vereadora porque no Brasil vige (ou deveria viger) a mesma laicidade que ela mina.

Sempre que o Estado adota símbolos, valores, frases de uma religião qualquer, ou, por outro lado, sempre que ele premia determinados grupos religiosos somente porque são religiosos, ele faz uma opção em favor dessa religião e discrimina todas as demais. É por esse motivo que crucifixos em espaços públicos, feriados religiosos, prêmios de caráter religioso, capelanias em hospitais públicos e nas Forças Armadas, além do ensino religioso público e obrigatório, são todos atentatórios da laicidade. Em outras palavras, são violadores da intimidade dos indivíduos e das liberdades dos cidadãos.

01 julho 2012

Notícia sobre o projeto de lei impondo a oração nas escolas de Apucarana


O vínculo original da matéria está aqui.

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Vereadores de Apucarana decidem se crianças serão obrigadas a rezar o Pai-Nosso antes da aula

01/07/2012 - 16h19
Fernando César Oliveira
Repórter da Agência Brasil
Curitiba – A Câmara Municipal de Apucarana (PR) analisa na sessão desta segunda-feira (2), em segunda votação, projeto de lei que pretende instituir a oração diária do Pai-Nosso em todas as escolas da rede municipal. "Nos horários de entrada das primeiras aulas de cada período, nos estabelecimentos oficiais de ensino da rede municipal, deverá ser realizada a oração universal do Pai-Nosso", diz o projeto, aprovado em primeira votação, por unanimidade, no último dia 25.
Autor da proposta, o vereador José Airton Araújo (PR), que ainda trabalha como vendedor ambulante e é conhecido como Deco do Cachorro-Quente, argumenta que a ideia reduziria os índices de violência e os casos de agressões de alunos contra professores. "Com uma oração, a criança já entra na sala de aula mais tranquila", justificou o parlamentar, em entrevista à Agência Brasil.
Localizada na região norte do Paraná, a 370 quilômetros de Curitiba, Apucarana tem 11 vereadores. O regimento do Legislativo municipal prevê três votações para um projeto ser aprovado. A reportagem daAgência Brasil apurou que, desde 2009, há uma lei sobre o mesmo tema em vigor na cidade. A legislação, porém, parece ser desconhecida pela maioria da população da cidade e não vem sendo cumprida.
Trata-se da Lei Municipal 217/2009, que obriga os professores da rede municipal a ministrar, em sala de aula, a leitura diária de um trecho da Bíblia, de livre escolha, seguida de uma oração. A lei também é de autoria do vereador José Airton. "Essa lei só existe no papel", diz Clotilde Corrêa Gomes, professora de inglês e português em Apucarana. Outras pessoas ouvidas pela reportagem também revelaram que sequer tinham conhecimento acerca da lei em vigor.
Questionado, o vereador Deco negou que a norma esteja sendo ignorada. Em defesa de seu novo projeto, o parlamentar, que é membro da igreja Assembleia de Deus, elogia o conteúdo da oração especificada em sua proposta. "A oração do Pai-Nosso é universal, não é só dos católicos e evangélicos", alega José Airton. "Ela é perfeita, um testemunho de vida em cada palavra."
A professora é contra a medida. "Acho um absurdo. Ao instituir uma oração estritamente cristã, o projeto tira o direito das crianças que vêm de famílias de outras crenças, como umbanda, candomblé, budismo, espiritismo, ou ainda das que não têm religião alguma", diz Clotilde. "É uma intimidação, uma forma de bullying."
Mãe de dois alunos que frequentam escolas de ensino fundamental em Apucarana, Alexandra Deretti concorda com a professora. "Eu sou católica, mas sou contra uma imposição desse tipo."
Apucarana tem cerca de 120 mil habitantes e pouco mais de 58,5 mil estudantes matriculados em escolas públicas e particulares. O Núcleo Regional da Secretaria de Estado da Educação já se pronunciou dizendo que as escolas não devem adotar propostas que contrariem a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação.
"A gente até entende as boas intenções do vereador, mas não cabe ao Estado impor valor religioso algum. A proposta tende a aumentar a intolerância", avalia Gustavo Biscaia de Lacerda, sociólogo da Universidade Federal do Paraná. "Também é questionável estabelecer relação de causalidade entre religião e violência, já que a quantidade de pessoas presas e que são adeptas de alguma religião não é pequena."
A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos informou que pretende denunciar o caso ao Ministério Público do Paraná. No último mês de abril, o Tribunal de Justiça da Bahia derrubou uma lei similar aprovada na cidade de Ilhéus, com o argumento de que se tratava de proselitismo religioso, o que é inconstitucional.
Em março deste ano, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou procedente um pedido de retirada dos crucifixos dos prédios da Justiça gaúcha. "A laicidade é a garantia, pelo Estado, da liberdade religiosa de todos os cidadãos, sem preferência por uma ou outra corrente de fé", diz trecho da decisão. "O Estado não tem religião. É laico. Assim sendo, independentemente do credo ou da crença pessoal do administrador, o espaço das salas de sessões ou audiências, corredores e saguões de prédios do Poder Judiciário não podem ostentar quaisquer símbolos religiosos."
Edição: Lana Cristina

07 setembro 2011

Comemorações e cidadania

Artigo publicado na Gazeta do Povo, a propósito do 7 de Setembro;  disponível aqui.

Opinião

Quarta-feira, 07/09/2011
OPINIÃO DO DIA 2

Comemorações e cidadania

Publicado em 07/09/2011 | GUSTAVO BISCAIA DE LACERDA
As comemorações oficiais tendem a afastar os cidadãos; as comemorações da sociedade ou negam a ordem sociopolítica, ou são alienantes ou expressam de maneira muito enviesada algum sentido de cidadania
O Dia da Independência, Sete de Setembro, é o momento em que o Brasil celebra sua liberdade política em relação ao país que o originou, Portugal. Por esse motivo, deveria ser um dos momentos de celebração da nossa vida coletiva, do nosso projeto de país. Todavia, não é assim que os cidadãos brasileiros percebem a data.
A bem da verdade, nenhuma das manifestações coletivas da “identidade nacional” refere-se à vida política, à prática da cidadania, à ideia de um projeto coletivo de país. O carnaval é a festa da inversão dos valores, o momento em que o bobo da corte pode fingir ser o rei e o rei pode dar-se ao luxo de ser o bobo: o que se afirma aí é a negação dos valores, não a afirmação de uma ordem coletiva.
Os feriados religiosos, por definição, não se referem à vida política. A Páscoa e o Natal – as duas maiores festas do calendário católico – referem-se a momentos da vida de Cristo e, dirigindo-se para o além, não têm vínculos com a ordem humana.
Por fim, os eventos esportivos: a Olimpíada e, muito mais, a Copa do Mundo. Nesses momentos, os brasileiros afirmam-se orgulhosos de serem brasileiros. Não deixa de ser irônico que eventos que visam à diversão revistam-se de um certo caráter político: costuma-se ver os destinos do país nos resultados dos jogos da seleção brasileira.
Em contrapartida, quais são as comemorações oficiais da nacionalidade? As duras e brutais paradas militares. O que elas mostram à população é o poder do Estado, a capacidade de imposição da sua vontade, via força física. Além disso, tais desfiles contribuem para uma concepção militarista da sociedade e do Estado (e, portanto, do país), em que a ordem hierárquica, a disciplina e a violência são mais importantes que as liberdades de pensamento, de expressão e de organização, com fins construtivos e por meios pacíficos.
Em outras palavras, as comemorações oficiais tendem a afastar os cidadãos; as comemorações da sociedade ou negam a ordem sociopolítica, ou são alienantes ou expressam de maneira muito enviesada algum sentido de cidadania.
Nada disso é por acaso. O que salta aos olhos é o papel das elites – políticas, intelectuais e até econômicas –, no sentido de afastar a população e criar festas públicas que alienem, que dominem melhor. Nem todas as elites tiveram ou têm esse projeto, mas, infelizmente, o conjunto da nossa História Política aponta para essa conclusão simples e direta.
Não podemos deixar de lado as “elites religiosas”, isto é, a Igreja Católica. Beneficiada (e controlada) pelo Estado durante o Império, com a República (1889) ela perdeu influência devido à laicização. Com isso, reorganizou-se para reverter a perda de influência, o que aconteceu a partir de 1930, ao apoiar a era Vargas e os regimes seguintes. A quantidade enorme de datas religiosas oficiais evidencia a sua importância política; ela evidencia que o brasileiro não se deve perceber como um cidadão que integra uma pólis, mas alguém que deve tornar-se um fiel de uma Igreja, com o apoio do Estado.
Nas últimas duas décadas, aos poucos, aos trancos e barrancos, um projeto político coletivo e consciente tem-se elaborado. Mas podemos evitar os partidarismos atuais e a crítica genérica às “elites”; basta lembrarmos que a busca desse projeto já teve antecessores: na década de 1890, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes afirmavam o valor político do Fundador da República, Benjamin Constant, e propunham datas e festas coletivas que comemorassem a vida nacional, o projeto de país, a experiência histórica do Brasil, de Portugal, do Ocidente e da humanidade. Como vimos, no longo prazo essas propostas não vingaram, mas o seu sentido era claro.
Não deixa de ser significativo que Teixeira Mendes tenha sido um dos defensores da República e o autor da Bandeira Nacional: para ele, a cidadania só é possível em uma verdadeira República e a República só é verdadeira se realizar a cidadania.
Gustavo Biscaia de Lacerda, doutor em Sociologia Política, é sociólogo da UFPR e professor da UTP.(GBLacerda@ufpr.br)