07 abril 2014

Premiação contra a laicidade

Mais um pequeno artigo de minha autoria, publicado na Gazeta do Povo neste dia 7.4.2014. 

(Apenas peço que desconsiderem os vários erros de pontuação e de acentuação, devidos à colaboração do revisor da própria Gazeta do Povo.)


ARTIGO

Premiação contra a laicidade

Publicado em 07/04/2014 | GUSTAVO BISCAIA DE LACERDA
Mais uma vez temos de escrever sobre a laicidade – agora devido a um projeto que tramita na Câmara de Vereadores de Curitiba para instituir um prêmio oficial para evangélicos, conforme proposto pela vereadora Carla Pimentel (PSC).

Basicamente, e de modo geral, utilizam-se no Brasil dois argumentos para justificar o desrespeito à laicidade do Estado, nos níveis federal, estadual, municipal e local: o fato de a maioria da população ser (nominalmente) cristã; e a ideia de que um Estado laico não é um “Estado ateu”.

Comecemos pelo segundo. De fato, Estado laico não é Estado ateu. Um Estado laico não apoia, não beneficia e nem reprime nenhuma religião, ou seja, não existe religião de Estado, pois o Estado escolhe não beneficiar e influenciar-se por nenhuma religião: assim, não se mistura a figura do crente com a do cidadão. O Estado ateu faz uma escolha religiosa muito clara, em favor do ateísmo. Em termos de laicidade, essa perspectiva é idêntica à propalada pelo deputado-pastor Marco Feliciano, também do PSC, para quem no Brasil o Estado é “laico-cristão”: isso é um completo oxímoro, pois o Estado ou é cristão (com alguma seita erigida em culto oficial), ou é laico (sem religião oficial e com liberdade total garantida aos cidadãos para crer no que quiserem). Para que um indivíduo seja cidadão, basta ter a cidadania jurídica; para ser um bom cidadão, basta cumprir seus deveres e exercer seus direitos conforme estabelecidos por lei. Não há obrigação de frequentar templos, rezar orações, falar em nome de deuses, vestir adereços e/ou pagar dízimos.

Há de se notar que, se um Estado tem religião oficial, surgem duas ou três consequências: as crenças íntimas dos cidadãos tornam-se matéria de regulação estatal e, portanto, os cidadãos são obrigados a crer no que o Estado determinar; surgem as figuras dos crimes de heresia e de blasfêmia, ou seja, de exprimir ideias discordantes das doutrinas oficiais; e cria-se um sistema oficial de hipocrisia e cinismo, em que os cidadãos têm de fingir que acreditam no que descreem.

Nesse sentido, não tem a menor importância que a maioria da população brasileira seja, supostamente, cristã. As crenças íntimas dos cidadãos não podem ser impostas pelo Estado e, inversamente, a laicidade garante a liberdade de cada um crer no que desejar: caso um Cristianismo – mas, aliás, qual? – fosse novamente tornado religião oficial, a liberdade deixaria de existir. Convém notar, além disso, que é exatamente devido à liberdade garantida pelo Estado laico que os evangélicos podem expressar publicamente suas crenças, construir seus templos e organizar-se politicamente. Assim, Carla Pimentel só pôde tornar-se vereadora porque no Brasil vige (ou deveria viger) a mesma laicidade que ela mina.

Sempre que o Estado adota símbolos, valores, frases de uma religião qualquer, ou, por outro lado, sempre que ele premia determinados grupos religiosos somente porque são religiosos, ele faz uma opção em favor dessa religião e discrimina todas as demais. É por esse motivo que crucifixos em espaços públicos, feriados religiosos, prêmios de caráter religioso, capelanias em hospitais públicos e nas Forças Armadas, além do ensino religioso público e obrigatório, são todos atentatórios da laicidade. Em outras palavras, são violadores da intimidade dos indivíduos e das liberdades dos cidadãos.