27 maio 2009

Aforismas sociológicos I

§ 1° – A fragilidade da Sociologia weberiana, dita “compreensiva”, face ao Positivismo

Max Weber formulou uma série de argumentos contrários à proposta positivista (bem entendido: proposta comtiana) de ciência social e em defesa de sua “Sociologia compreensiva”. Todavia, nem os argumentos contrários ao Positivismo revelam compreensão das idéias teórico-metodológicas e epistemológicas de Augusto Comte, nem os argumentos favoráveis à Sociologia compreensiva são efetivamente sólidos para constituir-se em uma alternativa válida ao Positivismo.

Importa notar que Weber fez poucas e sumárias referências a Augusto Comte, de modo geral demonstrando mais má vontade que conhecimento da obra desse autor; na verdade, como veremos, as características da Sociologia “positivista” atribuídas por Weber a Comte são incorretas e não passam de meras atribuições, isto é, preconceitos acadêmico-intelectuais; além disso, Weber dialogava implícita e explicitamente com Marx e cometeu o grave erro de atribuir a todos os projetos sociológicos não-compreensivos as críticas que endereçava apenas a Marx e ao(s) marxismo(s).

A respeito dos argumentos contrários ao Positivismo: Weber afirma que a realidade social é muito complexa e múltipla para ser apreendida em uma única ou em poucas leis; além disso, mesmo que tais leis sejam possíveis, seu grau de abstração será tão alto que se tornarão inúteis do ponto de vista explicativo. No que se refere à complexidade e à multiplicidade dos fenômenos sociais, isso definitivamente não impede a formulação de leis naturais (como a rejeição subseqüente implicitamente revela), além de confundir o abstrato com o concreto, pois fenômenos múltiplos e complexos não apenas integram a afirmação do próprio Positivismo, como a elaboração de leis consiste na abstração da multiplicidade da realidade, buscando a constância na variedade do real. Ao Weber afirmar que a realidade é múltipla e complexa, o que ele implicitamente rejeita é, precisamente, a necessária abstração para compreensão da realidade, ao mesmo tempo que afirma que as únicas “análises” possíveis são aquelas entre tipos concretos (para evitar essa concretude, que no fim não leva a nada, ele elaborou a metodologia dos tipos ideais, que também apresenta grandes dificuldades teóricas e metodológicas).

As leis naturais sociológicas, como o próprio Augusto Comte afirmou, são gerais e mais ou menos genéricas, não sendo capazes de explicar, isto é, de predizer “microfenômenos”; entretanto, elas permitem compreender o conjunto da existência humana e, em particular, permitem prever o conjunto do futuro humano. Esse procedimento está longe de ser “inútil” ou desnecessário, pois permite, por um lado, que os acontecimentos contemporâneos sejam interpretados à luz do conjunto da história humana e, portanto, que sejam “dotados de sentido”; com isso, por outro lado, é possível modificar esses mesmos acontecimentos a favor do sentido histórico (subjetivo e objetivo). Em particular, pode-se, com esse conhecimento, aperfeiçoar moralmente o ser humano.

Já no que se refere à metodologia da Sociologia compreensiva, há várias questões que devem ser notadas. Antes de mais nada, a afirmação do caráter subjetivo da Sociologia compreensiva implica, implícita mas necessariamente, o caráter objetivista da Sociologia não-compreensiva, isto é, da Sociologia “positivista”. Em outras palavras, a afirmação desse projeto sociológico acarretou, entre outros motivos, a falsa idéia de que toda sociologia que não é compreensiva é objetivista (e materialista), ou seja, desvalorizadora da subjetividade.

Os tipos ideais, que são o artifício metodológico criado por Weber para tentar evitar a ausência de abstração em seu projeto sociológico, apresentam um problema teórico e epistemológico fundamental. Deixando de lado o fato simples, mas geralmente posto de lado, de que todas as ciências lançam mão de tipos ideais, Weber afirmava que eles não deveriam ser percebidos como “verdadeiros” ou “falsos”, mas como “úteis” ou “inúteis”, ou seja, como mais ou menos adequados a cada situação específica que se deseja compreender. O grau de utilidade de cada tipo ideal é medido com base na correspondência a cada situação específica que se estuda: a questão é que é necessário saber como se caracteriza cada situação específica para determinar-se a utilidade do tipo ideal; assim, os tipos ideais devem ser contrapostos a concepções mais ou menos abstratas das situações estudadas e tais concepções serão mais ou menos verdadeiras antes de serem mais ou menos úteis. Em outras palavras – comuns, aliás, aos procedimentos científicos de outras vertentes científicas –, o grau de veracidade, ou de correspondência com a realidade, é a própria medida da utilidade de cada conceito (ou de cada tipo ideal).

O objetivo da Sociologia weberiana é (re)constituir as conexões de sentido em cada ação social. Antes de prosseguirmos, é importante notar que o conceito weberiano de “ação social” é bastante útil, ainda que possa gerar sérias confusões terminológicas. Como Weber rejeita uma coletividade que não seja uma série de indivíduos (ainda que indivíduos dotados de subjetividades parcialmente compartilhadas), as conexões de sentido são sempre entre indivíduos e a extensão delas para grupos maiores é sempre por extrapolação. Essas extrapolações apresentam, em primeiro lugar, o problema da indução, como foi criticado, por exemplo, por Karl Popper: em um grupo de, digamos, cem indivíduos, trinta têm uma certa característica, extrapolamos para todos os 100 essa mesma característica, mas essa extrapolação é na melhor das hipóteses discutível; em segundo lugar, porque, a despeito da multiplicação de exemplos históricos, as conexões de sentido não permitem efetivamente nenhuma relação histórica entre os diversos acontecimentos: a extrapolação weberiana ocorre tanto em termos sincrônicos quanto diacrônicos, com os mesmos problemas em ambos os casos

A reconstituição das conexões de sentido também é problemática. Esses problemas referem-se, por um lado, à capacidade de efetivamente reconstituí-las; por outro lado, referem-se à utilidade desse procedimento e ao seu rendimento teórico. A reconstituição dos sentidos atribuídos pelos atores baseia-se por um lado em indícios mais ou menos objetivos: documentos escritos, relatos etc.; por outro lado, baseia-se em uma forma específica de imaginação que se aproxima bastante da empatia. Essa empatia é aproximativa; embora Weber argumente com razão que não é necessário “ser César para pensar como César”, a possibilidade de atingir-se uma identificação subjetiva com o tipo idealizado não é garantida.

Mas essas restrições à “empatia compreensiva” não a invalidam, a bem da verdade; todavia, põem seriamente em questão a validade de todo um projeto sociológico que é inteiramente baseado nela. Sobre essa base relativamente frágil Weber elabora um projeto sociológico, que para ele é necessária e suficiente – o que é bastante problemático.

Entramos aqui no fundamento epistemológico da Sociologia compreensiva de Weber, baseada em uma distinção radical entre as “ciências naturais” e as “ciências do espírito”. A partir da distinção de objetos, elabora-se uma distinção de métodos e de objetivos: as ciências naturais buscam explicar, isto é, estabelecer relações causais entre fenômenos, ao passo que as ciências do espírito buscam compreender, isto é, estabelecer relações de sentido entre as ações. Para Weber essas distinções são radicais, no sentido de que é impróprio às “ciências do espírito” buscar explicações causais; além disso, a separação de objetos é total, havendo um abismo entre as ciências naturais e as “ciências do espírito”. Assim, devido a uma incompreensão do que são as ciências naturais e, de modo geral, a própria ciência, a definição das “ciências do espírito” é truncada; além disso, o esforço humano para compreender a sua realidade (cósmica e social) torna-se profundamente incoerente com a divisão radical entre ciências naturais e “ciências do espírito”.

As leis naturais são artifícios teóricos que relacionam eventos percebidos como de coexistência ou, ainda mais, de sucessão; são eventos percebidos como regulares ou mais ou menos permanentes em meio à multiplicidade de eventos perceptíveis em qualquer situação real. Como os fenômenos mais nobres são sempre subordinados aos mais grosseiros, mas sem se reduzir a estes, para compreender-se os fenômenos sociais há que se compreender os fenômenos físicos e vitais, ao mesmo tempo que a particularidade dos fenômenos sociais exige levar em consideração os elementos subjetivos (entre os quais os de sentido) dos agrupamentos humanos. Compreender a subjetividade alheia exige um esforço ao mesmo tempo objetivo – pois que se trata de uma subjetividade que não é a do pesquisador, ou seja, há a necessidade de um distanciamento, de um afastamento da própria subjetividade, ou seja, de um esforço de objetivação da subjetividade alheia – e subjetivo – pois há que se compreender as motivações íntimas, individuais e coletivas dos atores estudados. Entretanto, embora a compreensão das subjetividades e das relações de sentido dos grupos estudados seja importante, o fato é que esses fenômenos por assim dizer afetivos constituem apenas um dos elementos necessários para entender-se adequadamente uma sociedade qualquer, sincrônica ou diacronicamente: além deles, há que se estudar e determinar as diversas relações que mantêm entre si também os elementos intelectuais e os materiais (incluindo nesta categorias os políticos e os econômicos).

A contraposição weberiana entre as leis naturais próprias às Ciências Naturais e a investigação dos porquês das Ciências Sociais revela igualmente a incompreensão weberiana do que fossem as Ciências Naturais e, ao contrapô-las radical e ingenuamente às Ciências Sociais, revela por extensão uma incompreensão do próprio procedimento científico de modo geral. A ciência investiga as relações entre os fenômenos; não trata das causas últimas e finais desses fenômenos, ou seja, não trata do porque os fenômenos ocorrem. Mesmo ao estabelecer as “relações de sentido” a Sociologia “compreensiva” não se indaga a respeito dessas causas primeiras e finais, ou seja, ao passar das Ciências Naturais para as Ciências Sociais continua-se sem se questionar a respeito dos “porquês” no sentido absoluto dessa expressão. Ora, atribuir causas aos fenômenos, no sentido de buscar o porque de eles ocorrerem, é atribuir à realidade em si atributos próprios ao ser humano, o que equivale a antropomorfizar a realidade. A Sociologia “compreensiva” busca determinar como se estabelecem relações de sentido; essas relações de sentido, por sua vez (quase diríamos “por acaso”) constituem-se em “relações de porquês”.

Dessa forma, retornamos à primeira crítica feita à Sociologia compreensiva – a de que estabelece unilateralmente o seu caráter “subjetivo”, atribuindo em conseqüência e indevidamente o caráter “objetivista” de outras sociologias. É bem verdade que há projetos sociológicos que são estritamente objetivistas, em particular por meio da matematização da realidade social (em variadas formas de sociometria) ou por meio de comportamentalismos sociológicos (como quis Otto Neurath). Entretanto, na Sociologia comtiana – bem como as várias tradições sociológicas dela derivadas (em particular, a durkheimiana e a lévi-straussiana) – não há uma oposição dura entre objetividade e subjetividade, muito menos qualquer oposição entre “explicação” e “compreensão”. Na verdade, a Sociologia comtiana adota a “compreensão” como um pressuposto metodológico para a filiação histórica, ao mesmo tempo que mantém a busca de “explicações” via leis naturais. Como disse Lévi-Strauss (in Antropologia estrutural dois), a compreensão é necessária, mas é insuficiente: ela é apenas um passo preliminar para a tarefa sociológica, que é a explicação.

Deve-se notar também que as “ciências do espírito” na verdade constituem um esforço do idealismo alemão para fazer frente ao empreendimento científico conforme praticado, desde fins do século XVIII a fins do século XIX, pelos franceses e pelos ingleses. A oposição entre “ciências do espírito” e ciências naturais corresponde à oposição, mais antiga e muito cara entre os germanófonos, entre Kultur e Zivilitation, em que à Kultur correspondem as “construções do espírito”, isto é, a filosofia, a literatura, a Psicologia e, até certo ponto, o Direito; já a Zivilitation abarca os elementos materiais da realidade, incluindo aí a tecnologia. Oriunda do romantismo alemão, a Kultur é mais nobre e mais “legítima”, pois é a única que “presta” e que “vale”; já se preocupar com a Zivilitation é tratar do que é material, isto é, do que é inferior, daquilo que não enobrece o ser humano e que, ao contrário, degrada-o. Essa exaltação idealista, tipicamente metafísica e por vezes próxima ao misticismo, impregna o pensamento alemão desde Fichte até pelo menos a Escola de Frankfurt, passando pelo caracteristicamente idealista, místico e nazista Heidegger e também por Weber, mas tendo uma notável inversão em Marx. Essa oposição é incapaz de perceber a realidade humana (social e individual) como composta ao mesmo tempo por elementos materiais e “espirituais”, que estabelecem entre si múltiplas relações; não por acaso, essa dicotomia alemã despreza o conceito sintético francês de civilisation.

Em suma, o projeto sociológico de Weber não é uma alternativa efetiva à Sociologia de Augusto Comte nem em termos teóricos, nem em termos metodológicos, nem epistemológicos.

§ 2° – A crítica alemã à modernidade como declaração implícita de incapacidade de modernizar-se

Em outros momentos já indiquei que a dicotomia alemã entre Kultur e Zivilitation corresponde a uma exaltação idealista, por vezes mística mas sempre metafísica, da vida do espírito e do desprezo pelo que é “material”. Norbert Elias demonstrou que essa dicotomia provém da contraposição da situação política alemã com a francesa desde pelo menos o século XVIII. Enquanto a França desde o século XVI (no mínimo) é um Estado-nação consolidado, com centralização política e unidade monetária, métrica, fiscal e militar, a Alemanha obteve essa condição apenas no final do século XIX; até então, os alemães eram apenas quem falava a língua alemã e, portanto, era capaz de comungar uma filosofia e uma literatura nessa língua.

A sociedade francesa era descrita como civilisation; essa realidade permitia falar-se em uma coletividade, pois que estava unificada; o Iluminismo, herdeiro da tradição racionalista e universalista, representava o avanço da civilisation ao longo do século XVIII, que recebeu um novo ímpeto com a Revolução Francesa; a isso se associava também o desenvolvimento material. A Alemanha passou ao largo desse progresso – exceto em termos filosóficos, no que se refere ao Iluminismo (Kant), e, até certo ponto, em termos artísticos (Beethoven[1]) –: nos anos posteriores à Revolução Francesa e até a unificação, os principados alemães mantiveram-se feudais, desunidos, não raras vezes governados sob regimes absolutistas, sem gozar dos avanços materiais; não podendo gozar do universalismo cosmopolita da Revolução Francesa, os alemães voltaram-se para si mesmos e idealizaram uma época em que seriam mais felizes: eis aí o romantismo individualista alemão.

A crítica alemã à civilisation e a exaltação da Kultur, do Volkgeist, assim, são a afirmação da sua incapacidade de acompanhar os progressos materiais e intelectuais do resto da Europa (o que, no caso, inclui a França e a Inglaterra). Se no século XIX o romantismo criticava a civilisation, no século XX o alvo das críticas tornou-se a “modernidade”. Não é difícil comprovar a realidade dessa afirmação: por um lado, os críticos da “modernidade” – que, por sinal, criaram essa categoria, dando-lhe um sentido sempre negativo – foram e são alemães ou herdeiros intelectuais de tradições alemãs; em segundo lugar, todas as características da “modernidade” podem ser reduzidas à Zivilitation, ao mesmo tempo em que, simetricamente, o que não é da modernidade, isto é, aquilo que é bom (e que a modernidade nega ou destrói) é próprio à Kultur: são “modernos” o capitalismo (o dinheiro também), a racionalidade, a técnica, a racionalidade instrumental, a ciência, a democracia, assim como são deturpadas ou corrompidas pela “modernidade” a arte, a filosofia, a Verdade, a honra, a “comunidade”.

Não é difícil de perceber (embora não se aceite isso com grande facilidade) o quanto essa forma de pensar é reacionária. Note-se que ela não é simplesmente conservadora, isto é, ela não quer manter o status quo: ela quer voltar a uma época mítica, em que, supostamente, “as coisas eram melhores e mais verdadeiras”.

De qualquer forma, é curioso notar como na Alemanha da passagem do século XIX para o XX houve diversos pensadores que mais ou menos assumiram essas idéias reacionárias: como se pode perceber pelas idéias de Weber, da Escola de Frankfurt e de Heidegger, o reacionarismo romântico alemão tem longa e larga descendência. Todavia, houve diversos grupos não propriamente alemães, mas falantes da língua alemã e participantes do ambiente intelectual alemão que não compartilharam dessas idéias: provavelmente não por acaso, foram pensadores que não tratavam das “coisas do espírito”, ou seja, de maneira geral eram cientistas naturais e filósofos próximos às Ciências Naturais, além de grupos marxistas: o Círculo de Viena, Karl Popper, Otto Neurath[2] – talvez também Wittgenstein e, sem dúvida, também Einstein.

§ 3° – A importância lógica e teórica da continuidade entre as Ciências Naturais e as Ciências Humanas

Entre as Ciências Naturais e as Ciências Humanas há diferenças evidentes: os diferentes objetos implicam diferentes métodos; além disso, enquanto há muito maior objetividade nas Ciências Naturais, há maior subjetividade nas Ciências Humanas, pelo simples fato de que nestes o objeto do conhecimento é também o sujeito do conhecimento.

Dessas diferenças óbvias vários pensadores extraíram, como extraem, uma separação radical, em que não há nenhuma forma de continuidade, isto é, de ligação, mas apenas um fosso instransponível. Com isso, os diferentes objetos fundam não métodos diferentes, mas radicalmente diferentes e totalmente irredutíveis uns aos outros. Essa perspectiva é própria aos alemães e, de modo geral, aos idealistas (em que incluiríamos o historiador inglês Robin Colingwood), isto é, aos metafísicos; segundo esses pensadores, além de afirmar-se a diferença de métodos e de objetos, também se afirma a dignidade humana face à fria ciência e à bestial natureza.

Entretanto, o fosso que separa as Ciências Humanas e as Ciências Naturais não torna mais coerente e lógica a ciência como um todo nem explica melhor o ser humano, o que resulta, por fim, que não se garante nem se afirma a dignidade humana: Augusto Comte explica isso com grande clareza.

Antes de mais nada: perceber e afirmar a continuidade lógica e teórica entre Ciências Naturais e Humanas não significa reduzir estas àquelas. As Ciências Humanas têm seus próprios objetos, isto é, a classe de fenômenos próprios a elas e irredutíveis a outros, com os métodos próprios e adequados às investigações respectivas.

A partir da escala enciclopédica de Augusto Comte facilita o raciocínio e esclarece essa continuidade:

CLASSIFICAÇÃO DE COMTE

Cosmologia

Ciências Sociais

Ciências Naturais

Ciência Vital

CIÊNCIAS

Matemática

Astronomia

Física

Química

Biologia

Sociologia

Moral

CLASSIFICAÇÃO weberiana

Ciências Naturais

“Ciências do Espírito”

A classificação comtiana tem desde o princípio uma primeira virtude, que é a de determinar com clareza quais são as ciências e quais os critérios utilizados para individualizá-las. Ei-los: são as ciências que estudam as relações abstratas de sucessão e de coexistência entre fenômenos de um mesmo tipo; elas organizam-se por ordem de simplicidade, generalidade e objetividade descrescentes e complexidade, particularidade e subjetividade crescentes. Além disso, em virtude dessas características teóricas e lógicas, essa seqüência também corresponde à ordem em que essas ciências surgiram e consolidaram-se ao longo da história, começando com a Matemática e terminando na Moral (por vezes chamada de “Psicologia Positiva”).

Augusto Comte propôs uma série de encadeamento das sete ciências, organizando-as em duplas, em trios, em esquemas duais, terciários, quaternários e heptenários. Ao tratar precisamente da continuidade entre a realidade cósmica e a humana, ele propôs a classificação terciária acima, incluindo a Biologia entre as Ciências Naturais (Matemática, Astronomia, Física e Química) e as Ciências Sociais (Sociologia e Moral). Essa interposição permite perceber que o ser humano integra a realidade cósmica como um ser vivo, ao mesmo tempo que há diversos outros seres vivos que têm características semelhantes às do ser humano, como a sociabilidade, a afetividade, a divisão do trabalho etc. Além disso, ao afirmar a subordinação (e não redução) da Sociologia à Biologia, o esquema acima enfatiza que o ser humano tem uma existência concreta e terrena, vinculando-se e subordinando-se aos fenômenos naturais mais amplos: não adianta explicar o ser humano por meio do “espírito” nem rejeitar a sua subordinação à realidade material. Por outro lado, a vinculação entre a Sociologia e a Biologia indica que as características humanas, sejam elas sociais, sejam elas “espirituais”, desenvolveram-se em um amplo espectro de outros seres vivos, de que os homens são apenas os mais evoluídos. Nesse sentido, o estudo da Biologia evolutiva e das bases biológicas da Sociologia indicam que não faz sentido a separação radical entre “Ciências Humanas” e “Ciências Naturais”, pois que o ser humano – aí incluído o suposto “espírito” das “Ciências do Espírito” – não surgiu como tal por um fiat, de repente e inexplicavelmente.

Um outro problema teórico torna-se manejável a partir da compreensão dessa continuidade: é a relação entre o objetivo e o subjetivo. Em primeiro lugar, entre a Moral – isto é, (o estudo de) cada indivíduo específico – e a Cosmologia existe a Sociologia, o que equivale a afirmar que cada ser humano individualmente tomado só entra em contato com a realidade cosmológica por meio da sociedade. Assim, a subjetividade individual – um fenômeno irredutível a quaisquer outros – depende das condições sociais prevalecentes em cada lugar e em cada época e do conjunto da história de cada sociedade; a compreensão que cada indivíduo tem da realidade cósmica e, correlatamente, a ação de cada indivíduo em sociedade e na natureza só é possível em e por meio de cada sociedade. Em outras palavras, a sociedade opera uma ligação entre a subjetividade individual e a objetividade da natureza, conformando a primeira e modificando a segunda. “A sociedade conforma a subjetividade individual”: como indicamos, embora a subjetividade individual em si exista por si só, ela é modificada pela sociedade em função da história e de cada momento específico, de tal sorte que os indivíduos podem ser mais beligerantes, mais pacíficos, mais altruístas, mais egoístas, mais industriosos, mais racionais, mais místicos, mais coerentes, mais incoerentes e assim por diante em função das condições sociais. “A sociedade modifica a natureza”: a sociedade, por meio dos indivíduos, atua sobre a natureza; como argumentou Francis Bacon, só é possível modificá-la submetendo-se às suas leis. De posse das leis naturais os seres humanos modificam a natureza, o que, por sua vez, gera modificações na própria sociedade e, daí, nas próprias subjetividades[3].

Cada indivíduo tem um entendimento de si, da sua sociedade e da realidade cósmica; esse entendimento – evitamos explicitamente a palavra “compreensão”, para evitar ambigüidades – percebe a sociedade e a natureza como objetivas, a que se deve conformar: assim, há uma transação contínua entre a subjetividade (individual e coletiva) e a objetividade (individual, social e natural). Conforme argumento Augusto Comte, a objetividade e a subjetividade são elementos constitutivos do conhecimento humano e não é possível determinar em que medida cada um deles interfere nesse conhecimento (daí que buscar essa determinação seja inútil).

Retornando à continuidade lógica entre as várias ciências: ao compreender-se a subordinação das ciências mais à direita em relação àquelas mais à esquerda, fica também esclarecida as possibilidades de ação do ser humano no mundo, isto é, o que pode e o que não pode ser feito – e por quais motivos. Dessa forma, a continuidade entre as Ciências Naturais e Humanas apresenta uma série de características positivas, isto é, benéficas: torna compreensível a inserção humana na realidade e a constituição do próprio ser humano no mundo; permite a unificação do conhecimento científico, sem rupturas que o tornem incoerente e irracional; esclarece as possibilidades de ação humana prática; por fim, afirma a dignidade teórica de cada ciência, ao estabelecer um objeto e um método específico para cada degrau, irredutível aos demais, anteriores ou posteriores[4].

Inversamente, a perspectiva que opõe as “Ciências Naturais” – genericamente definidas como sendo a Física, a Química e a Biologia, embora também entrem aí técnicas específicas, como a Mineralogia, a Geologia etc. – e as “Ciências do Espírito” – a Sociologia (“compreensiva”), a Psicologia, a Filosofia, a Literatura etc. – foi esposada por Max Weber mas é da autoria de Willhem Dilthey, dentro da mais pura tradição germânica de pensamento, não apresenta nenhuma dessas qualidades, mas, sim, vários defeitos: não esclarece o surgimento do fenômeno humano nem as suas relações com outras ordens de fenômenos; dessa forma, torna o ser humano, em sociedade ou individualmente, uma realidade existente como que no vácuo a partir de um fiat; não esclarece quais as possibilidades de ação humana nem efetivamente o que há de específico nelas; por fim, torna profundamente irracional, pois incoerente, o conjunto dos conhecimentos humanos. Em outras palavras, embora afirme buscar a dignidade humana, nem a realiza, nem oferece condições para sua obtenção, além de redundar no defeito psicológico (“espiritual”) da irracionalidade e da incoerência, com todas as más conseqüências práticas dessa irracionalidade.

É necessário ainda reforçar que a tese da continuidade entre as Ciências Naturais e as Ciências Sociais que apresentamos aqui, de origem comtiana, de maneira alguma implica que estas reduzem-se àquelas. Esse erro foi cometido por Anthony Giddens em sua importante, mas fraca, apresentação dos “positivismos”, ao afirmar que tanto Augusto Comte quanto o Círculo de Viena (também conhecidos por Empirismo Lógico) buscavam a “unidade da ciência” e que tal unidade consiste em aplicar os mesmos métodos (e, por derivação, os mesmos raciocínios) das Ciências Naturais às Ciências Sociais. Os empiristas lógicos – particularmente o economista Otto Neurath – pregavam essa redução, mas a obra de Comte é, literalmente, toda ela dedicada a afirmar, por um lado, a irredutibilidade teórica das Ciências Humanas (Sociologia e Moral) em relação às Ciências Naturais e, por outro lado, a “regeneração” das Ciências Naturais a partir dos resultados das Ciências Humanas (o que consistiria, muito grosseiramente, em uma espécie de “reforma” das Ciências Naturais em função de uma subjetividade humanista).

Ainda assim, convém notar que a tese da “unidade da ciência”, seja via homogeneidade de doutrinas (Comte), seja via identidade de métodos (Empirismo Lógico), busca 1) a coerência doutrinária da ciência, 2) a compreensão do ser humano, tomado coletiva ou individualmente, como inserido em uma realidade natural, 3) a partir de uma perspectiva não-teológica e não-metafísica, isto é, sem entidades antropomorfizadas que comandariam arbitrariamente a realidade (cósmica, social e individual). Dessa forma, ainda nesse sentido há mais dignidade para o ser humano que por meio da separação radical entre Ciências Naturais e “Ciências do Espírito”.

§ 3.1° – Excurso sobre as conseqüências práticas do irracionalismo

É interessante comentarmos as “más conseqüências práticas” sugeridas acima. Pelo menos desde o início do século XX há fortes correntes filosóficas que pregam o irracionalismo como uma virtude filosófica e intelectual. Entretanto, essas “virtudes” são defendidas como tais porque há uma incompatibilidade entre as exigências e os resultados teóricos da ciência – que explicam eficazmente a realidade – e a crença teológica: como são incompatíveis entre si, a “solução” é afirmar que a incoerência é necessária e que a racionalidade não “capta” a “essência do real”, daí se derivando a apologia da irracionalidade. Pensadores místicos adotam essa perspectiva (Sto. Agostinho, por exemplo), mas pensadores metafísicos também (o que, por sinal, comprova a filiação da metafísica em relação à teologia).

Essa irracionalidade constitui-se, portanto, em uma quebra da harmonia mental, ou melhor, na afirmação de que a desarmonia mental é o estado normal do ser humano. Em termos individuais, não é difícil perceber como ela conduz facilmente à loucura e à mais completa arbitrariedade dos atos. Em termos políticos, a ausência de racionalidade, de coerência nas ações permite que ações de outra maneira injustificáveis sejam aceitas: afinal de contas, a racionalidade é insuficiente para alcançar-se a “verdadeira” lógica, a “essência” das ações.

Mas há uma forma de irracionalismo político e “filosófico” que se liga à negação da continuidade entre as Ciências Naturais e as Ciências Sociais. Se não há vinculação entre umas e outras, se há apenas o mundo material de um lado e o “espírito” de outro, o “espírito” não se vincula à materialidade do mundo e pode fazer o que quiser. Ou melhor: o “espírito” é (ou está) preso pela materialidade mundana. Para manifestar-se contra essa prisão, o “espírito” deve libertar-se, o que é um “ato de vontade”, de uma “vontade pura”, que é a própria realização do “espírito”. (A pureza aí não se refere à ausência de máculas, mas à origem “espiritual” dessa vontade.) As ações práticas, dessa forma, são atos de vontade; as ações que são obrigadas a lidar com o que é material são ações de menor qualidade, são inferiores; as ações de qualidade superior são aquelas que manifestam diretamente a “vontade”: são as ações políticas. Essas ações políticas, como são a manifestação do “espírito”, desconsideram o que é inferior (basicamente, o que é “material”, mas é claro que essa metafísica pode aliar-se aos preconceitos nacionais e étnicos e incluir aí outras manifestações “espirituais” inferiores); por outro lado, a política consiste no “choque de vontades”, em que a “vontade” mais forte vence. Não é difícil percebermos esses elementos nos escritos de Max Weber – não por acaso influenciado fortemente por Nietzsche – e de outros pensadores, a começar por Heidegger (e, possivelmente, outros teóricos da fenomenologia).

Os comentários acima são uma derivação filosófica e política de uma certa perspectiva filosófica. Eles não são um simples exercício de divagação, pois o mundo assistiu, como ainda assiste em muitos lugares, a realizações concretas da “política da vontade”: a Alemanha guilhermina e nazista deveram muito a essa forma de pensar, assim como a União Soviética sob Stálin curiosamente também a realizou; um exame cuidadoso da política mundial poderia revelar diversos outros regimes sociopolíticos que esposam variações dessa forma de pensar (a Coréia do Norte é a mais forte e óbvia candidata a esse posto, nos dias que correm).

A despeito de pretender afirmar a dignidade do ser humano, nem na filosofia nem na política ela ocorre; ao contrário, há apenas presunção, arrogância e, no final, degradação.

§ 4° – “Filosofia” não é sinônimo de “metafísica”

Assim como “religião” não quer dizer “teologia” (nem vice-versa), “filosofia” não é sinônimo de “metafísica” (nem vice-versa). Assim, é uma completa bobagem afirmar que a rejeição da metafísica constitui a rejeição da filosofia.

Evidentemente, grande parte dessa discussão é problema terminológico, isto é, de definições, de modo que importa definir “metafísica” e “filosofia”. Pode-se definir a filosofia como uma reflexão geral sobre a realidade humana, incluída aí a cósmica, a social e a individual: filosofar, nesse sentido, é ter uma compreensão geral do ser humano e de sua situação no mundo. A metafísica, por outro lado, é uma forma de filosofar, em que se criam abstrações dotadas de vontade e de capacidade de ação semelhantes às dos seres humanos.

Definir a metafísica por meio da sua etimologia não auxilia em nada, pois “o que vai (ou está) além da física” depende do que se entende por “física”: pode ser a realidade material, pode ser a realidade concreta, pode ser a disciplina científica, resultando que a “metafísica” como “aquilo que vai além da física” pode ser a realidade intelectual (ou a lógica), as Idéias (no sentido platônico), as demais ciências. As duas últimas definições, por serem mais específicas, esclarecem um pouco o sentido, mas conceber a metafísica como a “realidade intelectual” não facilita, em absoluto, o problema, pois entrariam aí campos extremamente diversos entre si como a própria “filosofia” (no sentido indicado acima), a Ética, a epistemologia e o que se chama atualmente de “Filosofia da Mente”. Além disso, tomemos dois exemplos contemporâneos e, supostamente, igualmente válidos: John Rawls, ao usar a expressão “metafísica”, adota-a no sentido de valores socialmente compartilhados; Andrew Vincent (The nature of political theory), no sentido de concepções filosóficas (ou, ainda, de perspectivas intelectuais).

Como se vê, a palavra “metafísica” padece de uma séria ambigüidade, em que por um lado não é possível torná-la equivalente a “filosofia tout court”, nem por outro lado pode-se defini-la etimologicamente. A relação entre metafísica e filosofia, aliás, é inválida a partir de um critério histórico: se toda metafísica é (ou pode ser) filosofia, nem toda filosofia é metafísica. Para evitar discussões desnecessárias: as obras de Sto. Agostinho e de Tomás de Aquino eram filosóficas, mas seria muito estranho chamá-las de “metafísicas”, mesmo que se queira distinguir metafísica, filosofia, religião e teologia.

O melhor critério é o de Augusto Comte, que combina análises histórica e teórica. Em primeiro lugar, a filosofia é a concepção geral sobre a realidade humana. Essa concepção geral pode ser absoluta ou relativa em termos filosóficos, ou seja, buscar os “porquês” iniciais e finais, ou buscar as relações abstratas de sucessão e de coexistência. Na história humana, primeiro buscou-se o absoluto e, percebendo-se a inanidade disso, buscou-se o relativo. Mas do absoluto para o relativo o caminho não é direto: há que haver uma transição. O absoluto basicamente é o objetivo da teologia; o relativo, da ciência: a metafísica estabelece uma ligação entre ambas, ao ser a degradação da teologia e permanecendo absoluta.

É fácil perceber daí como não faz sentido afirmar que a filosofia não pode ser científica, ou melhor, positiva: isso seria a mesma coisa que afirmar que é impossível uma concepção geral da realidade humana a partir dos resultados da ciência. É bem verdade que alguns pensadores efetivamente buscaram acabar com a metafísica ao mesmo tempo que definiam a “filosofia” como sendo “filosofia da ciência” ou “filosofia sobre a ciência”: tal foi o projeto do Empirismo Lógico. Entretanto, nesse projeto extremo há uma desconsideração de questões importantes para o ser humano e que são tradicionalmente “alocadas” no “escaninho” da filosofia: Moral, Ética, Estética, além de toda uma série de reflexões gerais sobre as atividades humanas: Filosofia Social, Filosofia Política etc.

Mas ainda é necessário notar outra coisa: a metafísica surgiu como uma reflexão geral sobre o ser humano sem se referir (ao menos explicitamente) aos deuses; em seu lugar, colocou entidades abstratas que pretensamente serviriam como idéias capazes de organizar a compreensão da realidade (em outras palavras, de constituir sínteses). A partir de quais elementos a metafísica elaborou essas filosofias? A partir dos resultados da ciência (mesmo que de uma ciência nascente e não raras vezes em esboço): as metafísicas gregas foram exatamente isso. Em outras palavras, há uma linha de continuidade entre a filosofia e a ciência, de que a metafísica foi apenas uma fase; afirmar a ciência e ultrapassar a metafísica em definitivo não implica “acabar com a filosofia”.

§ 5° – Sentidos da investigação sociológica dos “indivíduos”

Muitos sociólogos soem criticar Augusto Comte por ele não ter incluído a “Psicologia” em sua escala das ciências; essa lacuna teria como conseqüências a impossibilidade de estudar-se adequadamente a ação individual do ser humano (em particular em sociedade), a impossibilidade de constituir uma “reflexividade” “profunda” sobre o ser humano, a negação da própria subjetividade em um sentido amplo (resultando em um objetivismo sociológico), uma teoria do sujeito (do conhecimento e dos “atos psicológicos”) e, por fim, a ausência de um estudo específico sobre o próprio indivíduo (o que costuma ser entendido como a pesquisa sobre a “psiquê” humana). Desse forma, ao acusar-se Comte de ele não ter criado, ou incorporado, em sua escala enciclopédica a “Psicologia”, faz-se referência a pelo menos quatro coisas, estreitamente relacionadas entre si, mas de qualquer forma distintas:

  1. ação individual do ser humano
  2. reflexividade
  3. negação da subjetividade
  4. teoria do sujeito
  5. ciência psicológica

Para quem conhece a literatura sociológica, reconhecerá facilmente que essas críticas foram feitas, entre outras pessoas, por Anthony Giddens. Em termos de teoria sociológica, elas correspondem em maior ou menor grau a temas e a conceitos importantes – e Giddens tem desenvolvido pesquisas bastante interessantes a respeito delas; todavia, no que se refere à obra de Comte, o seu conhecimento é no mínimo precário e sofrível. Assim, comentarei rapidamente cada um dos itens acima, embora fora da ordem em que foram há pouco apresentados.

Toda a teoria sociológica comtiana refere-se à ação individual, isto é, à necessidade de os indivíduos agirem para que a sociedade “aja” e “exista”. Tais indivíduos têm uma clara subjetividade: sentem (afetivamente), pensam e agem. O pensamento, em particular, refere-se não apenas à própria existência, mas também às realidades na realidade cósmica e social, isto é, inclui tanto pensar para refletir como pensar para agir; a reflexão inclui tanto conhecer quanto avaliar os resultados de ações prévias. Sem dúvida alguma que, se há uma teorização a respeito do pensamento e de suas relações com os sentimentos e com as ações práticas, há a necessidade de uma teoria sobre a própria cognição, isto é, a respeito das relações entre objetividade e subjetividade: tudo isso está claramente presente em Comte[5].

Por outro lado, o ser humano vive em sociedade. Sendo mais explícito, somente em sociedade é possível ao ser humano viver e existir, ou seja, apenas em sociedade é possível ao ser humano manifestar e desenvolver suas características afetivas, intelectuais e práticas. Além disso, não apenas cada sociedade molda cada uma dessas características, como o conceito de “indivíduo” só é possível em uma conformação social específica; assim, é por meio das sociedades que existem “agentes sociais” (ao mesmo tempo que é pela ação conjunta, sincrônica e, acima de tudo, diacronicamente que existem tais agentes). Novamente, cada uma dessas idéias foi extensamente explorada por Augusto Comte[6].

Por fim, a existência da “ciência psicológica”: na época de Augusto Comte (primeira metade do século XIX) existia uma série de conhecimentos e teorias que eram agrupados em terno da palavra “Psicologia”. Entretanto, longe de serem teorias e conhecimentos positivos, isto é, baseados na observação sistemática do ser humano, eram vagas impressões, baseadas em um “auto-exame” em que o sujeito e o objeto do conhecimento eram a mesma pessoa, realizando ambas as tarefas ao mesmo tempo, e repletas de metafísica (quando não simplesmente de teologia). Além desses defeitos, essa “Psicologia” punha o ser humano no vácuo, pois, com a justificativa de estudá-lo em sua particularidade, desconsiderava a história humana, isto é, a necessária base social de cada ser humano.

Mas as observações feitas anteriormente a respeito dos indivíduos necessitavam ser sistematizadas, com um duplo propósito: em termos teóricos, era necessário organizar de maneira coerente essas idéias e dar-lhe os desenvolvimentos adequados; em termos práticos, era necessário um corpo teórico capaz de orientar a ação prática de cada indivíduo. Dessa forma, no volume II do Sistema de política positiva, de 1852, ele formalmente cria a sétima ciência, subseqüente à Sociologia e cujo objeto é o ser humano tomado individualmente: trata-se da “Moral”. Como afirmei, ao longo de toda a sua obra há longas observações sobre as relações dos indivíduos com o meio natural, vital e social, além de suas responsabilidades morais, intelectuais e práticas; todavia, ele não chegou a escrever um tratado exclusivamente dedicado à Moral, pelo simples motivo de que morreu antes de realizar esse projeto: seriam dois livros, escritos em 1858 e 1859 (em todo caso, até 1860) e ele faleceu em 1857.

§ 5.1° – Excurso sobre as narrativas de Giddens a respeito de Augusto Comte

A completa incapacidade de Giddens em citar Comte – seja indicando comentários ou observações, seja comentando idéias de Comte – revela a sua completa ignorância a respeito do fundador da Sociologia. Por um lado, isso é problemático porque várias das qualidades atribuídas por Giddens a Durkheim, Marx ou Weber – das quais o estatuto de “fundador da Sociologia” não é o mais importante – deveriam também, necessariamente, ser atribuídas a Comte, caso ele conhecesse a obra do francês; por outro lado, essa ignorância é problemática porque quem definiu a narrativa-padrão atual sobre a história da Sociologia foi o próprio Giddens.

Na verdade, a ignorância de Giddens é sintomática de algo maior: por exemplo, ao usar a expressão “Positivismo”, ele usa-a como significando “cientificismo” e “materialismo naturalístico” nas Ciências Sociais. Caso ele conhecesse Comte, saberia como é imprópria essa utilização: Raymond Aron não cometia esse tipo de erro e Bourdieu, que usa “Positivismo” nesse sentido por assim dizer popular, tem o cuidado de, curiosamente, separar Comte do (assim chamado) “Positivismo”.

Assim, o que ocorre é que a erudição de Giddens limita-se ao senso comum acadêmico, no que é seguido pelo establishment anglo-saxão: um ótimo outro exemplo é o de Jeffrey Alexander, que, em seus esforços em quatro volumes do início da década de 1980 para desenvolver uma síntese teórico-metodológica na Sociologia, usa correntemente a palavra “Positivismo” sem citar uma única vez Comte, relacionando-a a Talcott Parsons e à “revolução comportamentalista”. Em suma: exatamente aqueles que deveriam ter o maior cuidado com a história da disciplina são os que a negligenciam, sendo da pior forma seletivos em sua narrativa.




[1] Embora Beethoven seja considerado o fundador do romantismo na música, ele dedicou várias de suas obras ao progresso humano, seja na forma de Napoleão (que Beethoven em seguida felizmente rejeitou), seja na Revolução Francesa (pensemos na sua ópera Fidélio e, ainda mais, em sua nona sinfonia, a Coral): em outras palavras, embora talvez fosse, ou pudesse ser, romântico na forma, era iluminista no conteúdo.

[2] O caso de Neurath é curioso: além de membro do Círculo de Viena, era marxista.

[3] Esse raciocínio é uma conseqüência direta da “Lei dos Três Estados” e, como se pode perceber, é diretamente sociológico, no sentido atualmente aceito para um raciocínio ser “sociológico”. Dessa forma, a Lei dos Três Estados funda efetivamente a Sociologia, ao contrário dos que argumentam que ela não o faz. Mais do que isso: a Lei dos Três Estados funda também a Sociologia do Conhecimento, mas sem recair nos excessos subjetivistas de praticantes contemporâneos dessa disciplina, para quem o conhecimento é sempre e somente explicável em função de variáveis sociais, sem nenhum elemento objetivo (em particular cosmológico, mas também sociológico).

[4] Além disso, algumas questões extremamente difíceis da Sociologia e da Epistemologia são facilmente solucionadas por meio dessa relação: pensamos, em particular, na origem das idéias e na relação das idéias humanas com a realidade externa. Um ser humano virtualmente sem história e totalmente deslocado de sua realidade cósmica não tem suas idéias explicáveis por meios humanos, dependendo de hipóteses metafísicas (como no platonismo) ou teológicas (pensamos porque os deuses querem assim), além de serem altamente problemáticas a relação entre as idéias e a realidade e, assim, entre o objetivo e o subjetivo.

[5] Um exemplo simples mas ilustrativo e revelador: Comte desenvolve a idéia de que a oração íntima (silenciosa mas ainda mais em voz alta) consiste em uma forma pessoal de amar, pensar e agir.

[6] Não é difícil de perceber aí inúmeras das teses mais importantes e mais famosas da chamada Escola Sociológica Francesa, que, não por acaso, é intelectualmente herdeira de Comte.

Augusto Comte "no cotidiano”



O livro Os clássicos no cotidiano, de Fernanda Henrique Cupertino Alcântara (ALCÂNTARA, 2008) é um manual de introdução à Sociologia, por meio da apresentação das principais idéias de alguns dos clássicos da disciplina[1]. Entretanto, em vez de limitar-se ao trio Marx, Weber e Durkheim, a autora incluiu também Augusto Comte e Alexis de Tocqueville (repetindo com felicidade, ainda que em parte, o procedimento de Aron (1999)). Como a autora comenta na “Introdução”, seu interesse era escrever uma obra que permitisse a compreensão sociológica do cotidiano a partir dos autores discutidos e que mantivesse o caráter de um livro didático, isto é, acessível. Nesse sentido, o intento da autora foi coroado de êxito, pois que o texto é interessante, despertando a atenção e a curiosidade do leitor. Da mesma forma, para o que nos interessa aqui – a apresentação das idéias de Comte (ALCÂNTARA, 2008, cap. 1) – a autora apresenta diversos elementos importantes do pensamento comtiano – elementos que costumam não aparecer em livros didáticos de ambições iguais ou superiores.

Dito isso, o fato é que várias informações que a autora apresentou a respeito de Comte estão simplesmente erradas ou enviesadas. Por um lado, a quantidade desses erros e sua gravidade são tão grandes que exigem uma discussão pormenorizada; por outro lado, embora evidentemente haja inúmeras e às vezes acerbas discussões sobre o pensamento dos outros clássicos da Sociologia, o fato é que há um efetivo conhecimento sobre o que esses outros autores pensaram – o que, como veremos, não é a situação de Comte, em particular no Brasil. Por esses motivos, em vez de tratarmos do livro como um todo, concentrar-nos-emos apenas no capítulo 1, dedicado ao fundador da Sociologia.

Antes de mais nada, face à afirmação de que há inúmeros problemas no texto, em correspondência particular a autora perguntou: “como não ser enviesado?” (ALCÂNTARA, 2009). Não adianta dizer que o tudo que temos à mão são interpretações, pois isso não resolve nada e serve apenas para um ultrarrelativismo quietista e politicamente inconseqüente. Não há mistérios teóricos ou metodológicos nessa questão: se é para apresentarmos um autor, é importante ler de fato esse autor e fazer um esforço efetivo para entender o que ele disse e o que quis dizer. É dessa forma que se controlam os vieses e obtêm-se “interpretações” mais ou menos autorizadas dos pensadores.

As referências básicas a respeito de Comte (ALCÂNTARA, 2008, p. 44) são Donald Levine (1997) e Anthony Giddens (1998); além disso, a autora indica Lelita Benoit (1999) e R. Aron (1999). Deixando de lado o fato de que isso é pouco e ignora importantes obras de referência[2], o livro de Aron é um clássico da história da Sociologia e, no que se refere a Comte, é bastante competente; o mesmo pode-se dizer a respeito de Levine, que sem dúvida alguma é uma das melhores obras de mapeamento da Sociologia. Já o artigo de Giddens é entre fraco e ruim: o conhecimento que ele tem de Comte é péssimo, é pouco; para Giddens, Comte é apenas um prenunciador do Círculo de Viena (opinião que a autora sutilmente repete e, portanto, compartilha[3]). Ao apresentar essa opinião, Giddens evidencia suas fortes limitações no que se refere a Comte. Por fim, o livro de Lelita Benoit apresenta igualmente sérios problemas. Décio Saes, marxista como Benoit, fez uma resenha favorável do livro (SAES, 1999); mas Arthur Lacerda, profundo conhecedor da obra de Comte, fez uma resenha extremamente crítica e desfavorável desse livro (LACERDA NETO, 2003b) – aliás, merecidamente, pois que ela adota o sofisma do espantalho, apresentando Comte de maneira a ele ser o arqui-inimigo burguês do marxismo. Na verdade, muito dos erros que a autora de Os clássicos no cotidiano cometeu devem-se às falhas de Giddens e de outros “críticos”.

A autora afirma que o Positivismo comtiano “influenciou os militares no Brasil” (ALCÂNTARA, 2008, p. 31). Mas quais militares? Definir quais militares foram “influenciados pelo Positivismo” não é uma questão secundária; em todo caso, como a autora não esclareceu essa questão, infere-se que sejam os de 1964 (mas, aliás, quais militares de 1964? Os linhas-duras, os sorbonistas ou as várias outras subclivagens?). De qualquer forma, os militares que foram influenciados pelo Positivismo foram os que proclamaram a República, em 1889, e cuja influência fez-se sentir de maneira mais ou menos intensa até 1930 e, de maneira mais fraca, até 1964. A separação entre “militares de 1889” e “militares de 1964” pode ser estabelecida com clareza no processo de mudança curricular por que, na década de 1920, passaram as academias militares, no sentido de os militares profissionalizarem-se (cf. CARVALHO, 2005, cap. 1). O que significava a profissionalização? Mudar a orientação humanista, civilista e pacifista prevalecente até então. Essa orientação pacifista, humanista e civilista era a dos positivistas, em particular Benjamin Constant, e foi em reação a ela que se constituíram os novos currículos militares. Esses novos currículos eram particularmente influenciados pelas doutrinas alemãs, o que aproximou os militares brasileiros da Alemanha, afastando-os da França. Pois bem: os militares que deram o golpe de 1964 (ou, mais precisamente, os golpes de 1930 em diante) foram os formados na nova tradição, de origem alemã e que, não por acaso, foram próximos ao nazismo e ao fascismo, como Góes Monteiro e Olympio Mourão Filho, jurados inimigos dos militares positivistas. Em suma: a autora claramente dá a entender que o Positivismo serviu de lastro ideológico para os golpistas de 1964, o que é simplesmente falso.

A autora também afirma, por exemplo, que “Comte criticou os socialistas, chamando-os equivocadamente de comunistas” (ALCÂNTARA, 2008, p. 42). Por que “equivocadamente”? Isso é um completo anacronismo! Surge a questão: o que é um “anacronismo”? É a atribuição de valores contemporâneos a situações passadas, sem considerar os contextos específicos do passado. Dessa forma, Comte estava corretíssimo em falar em “comunistas”, pois essa era a terminologia da época, que ele simplesmente seguiu[4]. Apenas após a atuação política de Marx e Engels e, em particular, após a Revolução Russa de 1917 é que a expressão “comunista” tornou-se mais ou menos sinônima de “marxista”. Esse erro é o mesmo que afirmar que não se pode falar em “hereditariedade” antes da divulgação das pesquisas de Mendel, pois teria sido Mendel o primeiro a definir as leis da hereditariedade: mas falava-se, sim, em hereditariedade pelo menos desde o final do século XVIII, com Lamarck – e é precisamente esse o uso que Augusto Comte fazia dessa expressão.

A autora afirma que “o poder Temporal é autoritário e hierárquico” (ALCÂNTARA, 2008, p. 39). Que o Estado é “autoritário” e hierárquico qualquer sociólogo ou politólogo reconhece: o problema é que a autora dá a entender que para Comte o Estado tem que ser “autoritário”, isto é, alguma coisa próxima a “despótico”. Ora, Marx, Weber, Durkheim concordavam que o Estado baseia-se, em última instância, na força física, embora não seja esse o seu meio básico nem preferencial de ação: só porque Comte diz a mesma coisa fazendo referência a Hobbes ele é “autoritário”? Isso é tolice, quando não ingenuidade: como o próprio Comte afirmava (COMTE, 1890, t. II, cap. II), por acaso desejar-se-ia que o Estado baseasse-se na fraqueza? Por outro lado, mesmo o grande teórico moderno da democracia, Rousseau, afirmava que há uma separação entre o governo e os governados, que seria possível “ultrapassar” por meio do artifício – altamente retórico, diga-se de passagem – da “soberania popular”. Por outro lado, considerando que há uma separação entre governantes e governados, em que, weberianamente, aqueles detêm o monopólio do uso legítimo da violência física, é claro que a relação entre uns e outros é hierárquica! Novamente, há no mínimo ingenuidade ao imputar a Comte um “Estado hierárquico”. Mas vamos ao argumento do próprio Comte: ele sempre foi muito explícito ao afirmar que deve haver a separação entre os poderes Temporal e Espiritual (cf., por ex., COMTE, 1890, t. II, cap. IV), o que, em termos correntes, é o mesmo que afirmar a separação entre a Igreja e o Estado. Isso quer dizer que o Estado não deve ter doutrina oficial, não deve doutrinar seus cidadãos, limitando-se a manter a ordem civil, ao mesmo tempo que resguardando a mais completa e total liberdade de pensamento e de expressão. O Estado deve ser forte para ser capaz de fazer frente às necessidades sociais, entre as quais citamos nominalmente a inclusão social do proletariado: é o mesmíssimo discurso que vemos (e que apoiamos) hoje a respeito da reforma do Estado! Por outro lado, se o poder Espiritual é separado do Temporal, ele é livre para criticar e (des)legitimar o poder Temporal. Esse relacionamento entre os dois poderes não se encaixa em qualquer definição que se tem de “autoritarismo”[5].

A autora também afirma que Comte era o sociólogo da unidade humana, em contraposição à diversidade (ALCÂNTARA, 2008, p. 29). A autora está correta no que se refere à unidade humana, mas está errada no que se refere à diversidade. Se ele contra a proposta de uma “igualdade social” (em moldes rousseuanianos), como seria contrário à diversidade? Ele sempre foi muito claro ao afirmar que um dos índices de desenvolvimento social é a divisão social do trabalho, o que equivale à diversidade. Ele era radicalmente favorável à diversidade (bem como ao que chamaríamos hoje de “eqüidade” ou de “justiça social”), mas era contrário às tendências puramente centrífugas e antissociais. Mas isso ainda é insuficiente, pois não esclarece o que significa isso. Mais precisamente, Comte era contrário àqueles que, em nome da “crítica” ou da “criticidade”, destruíam tudo que podiam, sem sugerir nada no lugar e, principalmente, sem ter a menor preocupação, explícita ou implícita, nesse sentido[6]. Assim, essa unidade, que afirma e confirma a diversidade, deve ocorrer por meio dos esforços em comum para o melhoramento da Humanidade, de que o poder Espiritual seria principalmente a consciência.

Mas isso ainda é insuficiente. A autora reiteradas vezes enfatizou a busca comtiana do consenso (ALCÂNTARA, 2008, p. 32 et passim). Ora, o que significa isso? Para Comte, o consenso é o compartilhamento de opiniões, valores e idéias, não a unanimidade. Se cada ser humano é ativo e deve ser convencido, cada qual pensa com sua própria cabeça. As diferenças de opiniões, valores e idéias não dependem da situação abstrata de cada um, mas variam de acordo com a família, com a classe social, com o país e até mesmo com a “ideologia” (ou religião, ou filosofia). Cada uma dessas situações específicas gera perspectivas específicas que devem ser harmonizadas para o benefício comum. Os conflitos de classe são exemplares nesse sentido: trabalhadores e patrões desempenham suas funções particulares para o benefício comum, mas a posição de classe deles tende a fazê-los naturalmente entrar em conflito. Esses conflitos têm que ser resolvidos, por todos os meios disponíveis: via arbitramento, via negociação coletiva, via legislação social e assim por diante. Mas se, por exemplo, os proletários virem-se em condições injustas, podem e devem até mesmo realizar greves (pacíficas). Não é difícil de perceber que, para conciliar as diversas perspectivas específicas, são necessários valores, idéias e opiniões em comum, a fim de permitir que haja um terreno comum sobre o qual negociar ou para o qual apelar. Além disso, o momento histórico (“contexto”) de Comte não se caracterizava por um liberalismo triunfante (ALCÂNTARA, 2008, p. 41ss.), mas pela anarquia moral e política da França posterior à Revolução Francesa e à Restauração, em que não havia nenhum terreno moral e filosófico comum capaz de servir de base para os conflitos sociais e, mais do que isso, para a constituição de um “projeto de sociedade” socialmente legítimo e legitimado.

Há ainda mais a comentar a respeito desse tema. O consenso em si não é a idéia fundamental, mas a convergência de propósitos. Esses propósitos não são quaisquer uns, mas são propósitos muito claros, muito precisos: é a constituição de uma sociedade pacífica, justa, esclarecida, irmanada por todos os povos do mundo o que almeja Comte. Assim, uma sociedade cujo Estado seja autoritário, embora force um “consenso”, é uma sociedade ruim, isto é, não é uma “sociedade positivista” . Da mesma forma, para que uma pessoa desenvolva um talento, uma habilidade, freqüentemente apresentará um comportamento antissocial, pois será obrigada a desenvolver suas próprias idéias, suas próprias habilidades: isso é o que diz literalmente Pierre Laffitte (1876), o principal discípulo de Comte e conselheiro do Presidente da França, Jules Ferry, que foi quem implantou a lei do ensino público, gratuito, universal e laico na França[7].

Aliás, correlatamente à idéia de consenso, a autora reiterou a de reforma (ALCÂNTARA, 2008, p. 28). A “reforma” comtiana, segundo a autora, seria oposta à revolução marxista, em uma reedição da dicotomia que a esquerda forçava nos anos 1960; essas reformas seriam “lentas, graduais e seguras”, de acordo com as leis naturais e não poderiam violar ou violentar as sociedades. Dessa forma, segundo a sua exposição, Comte seria o próprio ideólogo do status quo, de preferência burguês, a favor do capitalismo. Como já disse, isso é a aplicação do sofisma do espantalho, que não corresponde de maneira alguma à letra e ao espírito de Comte. Sem dúvida alguma que Comte opunha-se às revoluções, mas ele era contrário a elas como mudanças sociais violentas: por isso sua ênfase nas mudanças morais, no sentido de legitimar sociedades pacíficas, generosas, justas e esclarecidas. Mas isso não é o mesmo que afirmar, como a autora fez, que Comte era pela passividade ou pela omissão. O ser humano é ativo, isto é, deve agir: uma coisa é valorizar a paz e o entendimento, outra é ser burro de carga, humilhado ou enganado – ou viver em regimes ilegítimos, corruptos e/ou anacrônicos. Assim, por exemplo, em 1848 Comte estava completamente a favor do proletariado que se revoltava em Paris, assim como foi um dos primeiros, talvez um dos únicos, pensadores que glorificou a revolta dos escravos haitianos que no final do século XVIII e início do século XIX massacrou os senhores de engenhos franceses, em particular na figura de seu líder, Toussaint Louverture. O médico particular de Comte e seu discípulo direto, Robinet, foi um dos grandes defensores dos communards de 1871, tendo feito por eles muito mais do que Marx, que apenas disse que a comuna era o exemplo do comunismo futuro. Por fim, mas longe de esgotar os exemplos possíveis, no Brasil os positivistas foram a favor da abolição da escravatura imediata, sem transições ou compensações econômicas, muito antes de 1888[8], defendendo ainda que o Estado imperial criasse as condições sociais para que os negros alforriados fossem integrados de verdade à sociedade brasileira, denunciando o processo que hoje chamamos de “favelização”.

Os exercícios que a autora propôs, de análise de filmes e de situações concretas (ALCÂNTARA, 2008, p. 44-49), ao enfatizar situações degradantes e de exclusão social – sutilmente sugerindo que o Positivismo comtiano é favorável a tais degradações e exclusões – são totalmente enviesados, orientados claramente para que se conclua que o consenso de Comte é a mesma coisa que o autoritarismo social, o obscurantismo ou uma odiosa uniformidade de valores e opiniões – exatamente o contrário do que Comte afirmava e defendia. Aliás, diga-se de passagem, a uniformidade, autoritária, de opiniões e valores foi defendida convictamente por Rousseau e aplicada por Robespierre, não por Augusto Comte e seus discípulos.

Mas o ponto principal, para a autora, é a suposta “desresponsabilização” dos indivíduos que as idéias de Comte proporiam, o que estaria vinculado ao “determinismo” das leis sociológicas naturais defendidas pelo sistema comtiano (ALCÂNTARA, 2008, p. 35 et passim). Não deve ser difícil perceber, a partir dos comentários acima, que isso simplesmente não procede e que é um erro difundido por quem não conhece nem a letra nem o espírito da obra de Comte. Mas é importante ir diretamente à questão. Pois bem: a autora mesma indicou que, para Comte, o ser humano é sentimental, intelectual e ativo. Se é ativo, deve agir, deve fazer coisas. A autora também comentou, repetindo Giddens, que a Sociologia de Comte constituiu-se como conseqüência direta de sua concepção de ciência. Giddens fala isso apenas para dizer que Comte prenunciou o Círculo de Viena – o que significa pouco ou nada para quem conhece Comte e o Círculo de Viena, mas que impressiona quem não conhece nem um nem outro. A concepção de ciência para Comte era de um sistema de conhecimento que fosse relativo (isto é, anti-absolutista, em termos filosóficos), capaz de prever os acontecimentos. Para que prever os acontecimentos? Para agir em benefício da sociedade, isto é, dos seres humanos. A ciência é um sistema de conhecimentos que o ser humano elabora para benefício do próprio ser humano: isso inclui não apenas a satisfação de necessidades materiais, mas também e principalmente as necessidades intelectuais e morais. Dessa forma, embora a ciência ocorra por meio da objetivação, é para satisfação da subjetividade que ela deve desenvolver- se; se ela não satisfizer essa subjetividade, ela é inútil. Isso é o que significa a “síntese subjetiva”: o conhecimento é coordenado pelo ser humano para benefício do ser humano.

A idéia, ou acusação, de “determinismo” vincula-se intimamente ao problema anterior e igualmente improcede. De acordo com ela (ou melhor, de acordo com a interpretação usual dos seus críticos), os seres humanos seriam marionetes das forças históricas, sem qualquer capacidade autônoma da ação. Sem possibilidade de ação e de decisão, a política não existiria nem seriam possíveis mudanças sociais devidas a alterações nas idéias, nos valores e nas opiniões (ALCÂNTARA, 2008, p. 34). Já vimos que é incorreta a afirmação de que as idéias e os valores são desimportantes politicamente para Comte, mas é recorrente a sugestão de que os seres humanos são joguetes das forças históricas. Ora, a escala enciclopédica de Comte engloba sete ciências fundamentais: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral. Os critérios de organização dessa escala são dois: teórico e histórico. O histórico é o mais simples, pois corresponde à ordem em que essas ciências constituíram-se ao longo do tempo. O critério teórico é mais importante e, inclusivamente, explica o critério histórico: da Matemática à Moral, as ciências tornam-se menos simples e menos gerais, o que é a mesma coisa que afirmar que se tornam mais complexas e mais específicas. Além disso, à medida que se avança na escala, os fenômenos subseqüentes subordinam-se aos anteriores, no sentido de que, por exemplo, as leis da vida dependem das leis gerais da matéria, em termos físicos e químicos. Dessa forma, nessa escala ascendente, as ciências que ocupam os degraus mais altos tratam de fenômenos em que as variáveis intervenientes são em maior número, o que é a mesma coisa que afirmar que a possibilidade de sua modificação é maior. Maior possibilidade de modificação significa, muito simplesmente, maior capacidade humana de intervenção intencional na realidade.

No que se refere aos fenômenos humanos, em particular os sociais e os “psicológicos” (de que trataremos na seqüência), as possibilidades de modificação são muito maiores. Mas afirmar que existem mais possibilidades de modificação não é a mesma coisa que afirmar que essas modificações são infinitas ou que ocorrem ao bel-prazer dos seres humanos: não apenas porque as sociedades (como cada um dos seres humanos) não são plásticas, ou seja, modificáveis como é, por exemplo, uma argila, como porque toda sociedade apresenta necessariamente alguns elementos: é o que Augusto Comte chamava de Sociologia Estática, composta por cinco instituições (família, linguagem, governo, propriedade e religião).

O problema que se apresenta, portanto, é conjugar as possibilidades de modificação da sociedade com os limites históricos e sociológicos que tais modificações necessariamente enfrentam. Convém notar que essa conjugação é tanto teórica quanto prática, mas aqui nos ateremos à parte teórica. Comte rejeitava explicitamente a idéia de “determinismo”, em particular no que se referia aos fenômenos humanos (sociais e psicológicos); em seu lugar propunha a expressão “fatalidades modificáveis”, procurando com ela realizar a conjugação entre as leis naturais e a liberdade humana de ação e de decisão. Isso não é uma incoerência no sistema, mas importante observação teórica necessária à constituição das “ciências humanas”. Aliás, o já citado discípulo de Comte, Pierre Laffitte, em uma obra de epistemologia baseada no Positivismo comtiano, disse com todas as letras que, embora a idéia de lei natural seja e deva ser aplicável a todas as ciências da escala enciclopédica, é evidente que o seu rigor diminui à medida que se afasta da Matemática e que se aproxima da Moral (LAFFITTE, 1928)[9].

Há mais, muito mais. Comte (1899) afirmava que, para completar as leis, são necessárias vontades. O que isso quer dizer? Que devemos querer agir para que as coisas aconteçam. Disse acima que o ideal de ciência comtiano era o de saber para prever, a fim de prover. O que a ciência ensina, antes de mais nada, é que o ser humano é frágil e que a natureza é imperfeita; que a vida é dura e que o desenvolvimento das sociedades permite que desenvolvamos o altruísmo. A ciência, dessa forma, é o grande e, no final das contas, o único instrumento de que dispomos para intervir na realidade e melhorá-la. Como dissemos, esse melhoramento é material, intelectual e moral. Em termos intelectuais, o que importa é termos uma visão de conjunto, homogênea e coerente, capaz de satisfazer nossas necessidades psicológicas e de ação. Em termos materiais, é a ação humana no mundo, englobando a “natureza” (isto é, as plantas, os animais e até o espaço... a hipótese Gaia, de James Lovelock, bem como a teoria do xamanismo, de Lévi-Strauss, são imensamente próximas a Comte), para a constituição de sociedades pacíficas e justas. Em termos morais, o aperfeiçoamento humano é a compressão do egoísmo e o desenvolvimento do altruísmo, no processo que chamamos de educação. Para tudo isso é necessário que o ser humano queira, isto é, que aja de maneira ativa e responsável.

A ação, por outro lado, é sempre individual. Embora haja um único verdadeiro ser – a Humanidade –, ela age e existe por meio de órgãos individuais. Esses órgãos individuais, os indivíduos, as pessoas, têm responsabilidades proporcionais aos poderes de que dispõem, mas, de qualquer forma, todos são responsáveis pelas suas condutas, de todo para com todos. A rejeição da idéia metafísica e altamente egoísta de “direitos” e a defesa dos “deveres” não tem outro fundamento: todos somos responsáveis por todos (embora a responsabilidade de alguns seja maior que a de outros) e somos e seremos todos avaliados e julgados pela nossa atuação para o benefício comum.

Em apoio à sua tese de “desresponsabilização” dos seres humanos (ou, o que dá na mesma, de negação da “agência humana”), a autora repete um erro de Giddens: Giddens afirma que tanto Comte desprezava os “indivíduos” e as capacidades (e responsabilidades) humanas que nem chegou a incluir a Psicologia na sua escala enciclopédica, isto é, que a teria concluído na Sociologia. Isso é um erro devido aos seguintes motivos: 1) como ilustramos acima, Comte afirmava com todas as letras as responsabilidades individuais e as capacidades com que cada qual tem de agir; 2) a escala enciclopédica de Comte não parou na Sociologia, mas avançou mais um degrau; 3) se Comte não incluiu a “Psicologia” na sua escala enciclopédica, foi porque a “Psicologia” de sua época (e, sendo francos, enorme parte do que há ainda hoje) era pura metafísica; em seu lugar, ele incluiu a Moral, que trata precisamente do estudo do ser humano tomado individualmente; 4) Comte desenvolveu a sua sétima ciência, dedicada aos seres humanos tomados individualmente, a Moral, nos volumes finais do seu Sistema de política positiva, publicado entre 1851 e 1854 mas bem pouco conhecido pelo público acadêmico, que se detém no Sistema de filosofia positiva, de 1830 a 1842; 5) a última obra de Comte, chamada de Síntese subjetiva, teria quatro volumes, dos quais os últimos dois tratariam de modo específico do estudo do ser humano individualmente considerado: entretanto, ele morreu após publicar o primeiro desses quatro volumes[10].

Na verdade, não faz sentido que uma filosofia e uma religião que, reconhecidamente, preza fortemente a coerência, e que, segundo a autora (e Giddens et alii), favorece o quietismo, a omissão e a irresponsabilidade, produza um resultado prático tão incoerente quanto um também reconhecidamente fortíssimo ativismo social, político, econômico, intelectual e religioso no mundo inteiro. Das duas, uma: ou o ativismo dos positivistas é uma fantástica excrescência (talvez semelhante ao ativismo de Lênin, face ao marxismo), ou a idéia de “desresponsabilização” é errada. Em termos empíricos (com base em investigações históricas) e lógicos (adotando a navalha de Ockham), não restam dúvidas: o correto é a segunda hipótese.

O que se lê no livro Os clássicos no cotidiano representa muito que se aprende academicamente sobre Augusto Comte, não apenas no Ensino Superior, como também no Ensino Médio; não apenas nos cursos de graduação, como também nos vários níveis de pós-graduação. Dessa forma, ele não é a exceção, mas a regra – ou melhor, um caso exemplar dessa regra. Não deixa de ser irônico que ocorra uma forma extremamente perversa de consenso a respeito do autor a que se imputa a valorização do “consenso”. Como se pôde perceber pelos inúmeros e sérios problemas comentados aqui, as idéias difundidas no Brasil a respeito de Comte estão em claro desacordo com o espírito e a letra de sua obra; o fato de o livro em questão ser didático (ALCÂNTARA, 2008, p. 20-21) – nas palavras da autora, no duplo sentido de “direcionado ao ensino” e “legível pelo grande público (não-especialista)” – é acima de tudo motivo de preocupação com a memória da Sociologia e, assim, com a própria produção sociológica brasileira. Esse tema, entretanto, é questão para outro artigo.

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[1] O texto consiste em uma versão modificada de uma carta-resposta circunstanciada à autora (LACERDA, 2009b).
[2] Considerando apenas os livros disponíveis em português, no Brasil, e publicados nos últimos dez anos ou pouco mais, podemos indicar também Arana (2007), Coelho (2005), Cunha (2004), Fédi (2008), Graebin e Leal (1998), Lacerda Neto (2003a; 2004), Lacroix (2003), Ribeiro Jr. (2006), Soares (1999), Tiski (2006) e Trindade (2007), além de vários artigos de minha autoria (Lacerda, 2007; 2008a; 2008b) e o já clássico de Ivan Lins (1967). Essas referências, longe de serem exageros eruditos, são o mínimo que se pode esperar de uma obra didática sobre Comte no Brasil.
[3] Na verdade, não é tão sutil esse compartilhamento, pois que a autora justifica a permanência de Comte pela importância do “Positivismo jurídico” e das discussões “pós-positivistas” nas Ciências Sociais (ALCÂNTARA, 2008, p. 18n1): em ambos os casos ela comete erros grosseiros, pois que o Positivismo jurídico tem em comum com o de Augusto Comte apenas o nome, sendo ele devido a Hans Kelsen e não devendo nada a Comte (cf. BOBBIO, 2001); já o chamado “pós-positivismo” é um conjunto de perspectivas teóricas e metodológicas que superariam não conseqüências do Positivismo de Comte, mas sim do neopositivismo, devido ao Círculo de Viena, cujas ligações com o Positivismo comtiano, a despeito do argumento forçado de Giddens (1998), são poucas ou nenhuma, como se pode verificar na rarefação de citações a ele na coletânea de Ayer (1959) (apenas duas, de caráter histórico, en passant); ou ainda, como dizem literalmente por Pickering (1993, Introduction) ou Fédi (2008), o “pós-positivismo” na verdade recupera elementos do Positivismo comtiano.
[4] Aliás, em diversas ocasiões notamos que, se o uso da palavra “comunista” da parte de Comte refere-se ao que chamamos hoje, em virtude da interpretação de Marx no Manifesto do Partido Comunista, de “socialistas utópicos”, o conteúdo das críticas comtianas aos “seus” comunistas pode ser aplicado sem grandes dificuldades aos “nossos” comunistas (cf. LACERDA, 2003b, p. 84; 2008b; 2009).
[5] É notável o fato de que, embora a autora inclua nas referências bibliográficas um artigo de nossa autoria em que tratamos dessas questões (LACERDA, 2004), ela não o cita no texto nem extrai dele qualquer indicação a respeito da teoria política de Comte.
[6] Os autores pós-modernos – Deleuze, Gattari e colegas à frente –, tão preocupados com as “descontruções”, são os melhores exemplos contemporâneos dessa tendência.
[7] Diferentemente, portanto, da referência que a autora tira de Mucchielli (ALCÂNTARA, 2008, p. 30), segundo a qual a influência do Positivismo diminuiu após a morte de Littré, o “principal discípulo de Comte”.
[8] Aliás, a posse de escravos era motivo suficiente para a expulsão dos grêmios positivistas, como de fato ocorreu no início da década de 1880 (cf. LINS, 1967).
[9] O Cours de philosophie première de Laffitte, em dois volumes (LAFFITTE, 1894 ; 1928), é um excelente tratado de epistemologia e de teoria do conhecimento e deveria ter sido traduzido há muito tempo para o português, mormente no Brasil. Não o ter sido deve-se, por um lado, ao fato de que os seus leitores básicos – os positivistas – são versados no francês, mas, por outro lado, deve-se à simples falta de preocupação presente no Brasil de esclarecer aspectos centrais do pensamento comtiano. Deixando de lado os modismos intelectuais do país – que têm sua importância na obstrução de uma tal tradução –, o fato de serem os livros de Comte e de Laffitte obras mais que centenárias não é motivo para justificar a ausência de traduções, face às versões vernáculas de, por exemplo, Rousseau, Diderot, Hegel e Marx.
[10] Ainda assim, podemos indicar dois livros brasileiros dedicados à “Psicologia” baseada em Comte: Escobar (1979) e Coelho (1982). Além dessas duas obras teóricas, houve toda uma escola de Psicologia clínica baseada em Comte, a partir das pesquisas do médico paulista Aníbal da Silveira.