28 janeiro 2009

Ele é meu e não abro!

Mudando um pouco o foco do blogue, publico trechos de um artigo escrito pela socióloga carioca Vânia Leal Cintra contra a reforma ortográfica que passou a valer em 1° de janeiro de 2009. Como ela, parece-me injustificável e inaceitável essa mudança.

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Só os que se recusam a calcular a dimensão das conseqüências dos atos insanos do atual Governo me dirão que estou errada!
Senhores e Senhoras, estou lhes pedindo a atenção, a consciência e uma conduta coerente.
Alguém poderia nos dizer de repente que a pauta musical, as claves ou as colcheias são desnecessárias para que se escreva e se leia música e, por isso, por decreto, poderia pretender eliminá-las em determinada região do mundo? Por certo que não. Pois como alfabetizar em português desprezando-se a correspondência entre um som e seu símbolo gráfico?
O texto que repasso abaixo “brinca” com o banimento do trema. Mas demonstra sobejamente o absurdo da atitude de submissão absoluta às conjunturas assumida pelos membros da ABL, que aprovaram e incentivaram a "reforma" ortográfica; e reafirma a imbecilidade absoluta do Governo brasileiro, mais uma vez comprovando-se que ele é composto por semi-alfabetizados que tocam de ouvido, a começar pelo Presidente [...].
No que depender de mim, ninguém nos mata ou rouba o trema. Ele é patrimônio intelectual nacional, é parte de nossa língua escrita e falada. Hei de usá-lo e defendê-lo até a morte! Mas quem sou eu para ser garante de algo, ainda mais agindo sozinha? Defender esse patrimônio não só é um direito meu e é meu dever, como é um direito e um dever nossos, dos brasileiros todos, um direito inalienável, um dever impostergável.
Se o trema é imprescindível à nossa língua, o K, o W e o Y são signos que puderam ser inteligentemente banidos de nosso alfabeto por serem desnecessários. Uma das razões que exigem novamente a sua incorporação é a grafia, agora tornada “oficial”, dos nomes de tribos [...]. E, assim, concordamos com ressuscitar o que morto e enterrado já estava, e falta nenhuma nos fazia, para que essa gente possa, além de nos impor seus “direitos” duvidosos, impor-nos sua linguagem curta e rudimentar, artificialmente remontada para que pudesse ser reconhecida como “tradicional” em seus grupos, em nossos mapas, que passam a mostrar territórios com nomes “internacionais”, e em nossos livros escolares.
Há, no entanto, uma outra razão ainda, bastante pragmática e maldosa, para que o K, o W e o Y tenham sido recuperados. O raciocínio e também as reações são estimulados por sensações, portanto, são estimulados por palavras que possam ser ouvidas e por imagens que possam ser vistas. Do Natal sob a neve ao peru devorado em ação de graças, do automóvel em impecáveis auto-estradas aos personagens de filmes e livros de ficção ou pseudo-história real, do alimento infantil ao sabonete, das placas de descontos e promoções às de entrega em domicílio, tudo vem sendo empurrado goela abaixo do brasileiro como se ele nunca pudesse ter falado desde sempre o português ou ter vivido desde sempre no Brasil. Observamos ainda que as marcas comerciais de produtos que consumimos são, em sua maioria, estrangeiras, que muitos deles são importados, e que, na propaganda que deles se faz, dos insumos, das técnicas e dos processos de sua fabricação, tudo goza do livre direito de ser grafado em inglês e a pronúncia original se mantém.
Vivemos como se nós fôssemos a ficção e a propaganda fosse a realidade. Cada vez mais sentimos a necessidade de “ler no original”... o que cada vez mais nos entorpece a capacidade de criar e de criticar. Os nomes dos produtos e dos responsáveis por eles, cheios de Ks, Ws e Ys, que nenhum glamour possuem na língua original, mas sim, nela, têm significado objetivo e são plenos de sentido, transformam-se em palavras mágicas, de sentido misterioso e, por isso, sejam materiais ou intelectuais, por piores que sejam, esses produtos fascinam o consumidor nacional. Os sons que os anunciam são ininteligíveis à maioria da população. Os ambientes em que são apresentados são irreconhecíveis. Mas o efeito desse conjunto é irresistível. Que benefício isso nos traz? Nenhum. A nada isso atende senão aos interesses comerciais e laborais estrangeiros. Facilitando, inclusive, que as embalagens e as mesmas propagandas sejam também importadas, ou seja, facilitando que haja cada vez menos postos de trabalho no País. Não há perguntas, não há mais dúvidas. Não há necessidade de argumentos, de explicações ou de comprovações. E cada vez menos são requeridas palavras para convencer. O que cada vez mais desestimula o raciocínio lógico, e escancara o caminho a que nunca sejam ponderados os motivos que justificam o avanço de toda gente estrangeira, a quem sempre nos submetemos, sobre nós, e que todos esses motivos, por mais fúteis ou mais sórdidos, sejam aceitos sem questionamento. As imagens nos bastam, são “bonitas” e, portanto, a “essência” delas nos deve “fazer bem”.
Que língua, afinal, nossas crianças estarão aprendendo a ler, a escrever e a falar? Que língua ampara seu crescimento intelectual? Em que ambiente estão sendo treinadas a sobreviver? Que valores estão sendo induzidas a adotar?
Nesse ponto se inaugura o processo que nos leva a encontrar a submissão como um fato natural.
Da mesma forma que deveríamos defender o trema com unhas e dentes, ninguém nos deveria obrigar a utilizar um K em lugar de QU, ou, muito menos, um W em palavras em que seu som seja um U ou aceitar um Y intrometido em nossas palavras. Meu próprio nome poderia ter sido registrado com W inicial, tal como muitas Wanias têm os seus. Mesmo tendo muita simpatia pelas questões e pelos "direitos" das chamadas “minorias” ou tendo muito fascínio pela excelência da produção dos povos ditos mais desenvolvidos, ninguém será capaz de chamá-las de Uania por isso. Quando os pais de uma criança resolvem registrá-la com nomes estranhos ou quando o escrivão encarregado do registro de nascimento de alguém resolve inventar e “enfeitar” um nome próprio, com um ph, por exemplo, reconhecemos esse ato como uma invenção tola ou como pernosticismo. Mas isso não afeta o conjunto da Nação, pois estará restrito a um âmbito individual. O que não tem qualquer cabimento é aceitarmos que um signo único assuma dois sons diferentes numa mesma língua ou que um sinal inútil venha a competir com outros sinais já existentes e que se mostram suficientes, competição que apenas provoca mais confusão e cada vez menos saber.
O que hoje nos estão impondo com a “reforma” ortográfica não significa qualquer evolução, é apenas um retrocesso. E é um atentado contra nossa integridade. Em pouco tempo estaremos aceitando ler e escrever utilizando os símbolos do alfabeto fonético internacional. E nos comunicando apenas por monossílabos.
A linguagem é um valor nacional estrutural. Em vez de macular nossa grafia, de permitir que nossa linguagem seja sobrepujada por outra qualquer ou de aceitar que ela possa ser desnecessária a certos grupos étnicos ou insuficiente a certos grupos profissionais, deveríamos tratar de fortalecê-la, não permitindo que retrocedesse às condições do séc. XVI. Amanhã ou depois poderemos estar incorporando um Ñ facultativo ao abecedário porque alguns o consideram mais elegante, mais econômico ou mais “correto” ao dialeto das fronteiras. E por certo veremos ser eliminada a cedilha do C. Corremos, assim, o risco de colaborar com transformar o rico idioma de Camões, que tanto ajudamos a se desenvolver e a se impor no mundo, em um dialeto afro-indo-ibérico, um linguajar de “tribo”, absolutamente desestruturado, que nos diminuirá e nos desestruturará como Nação, impedindo, para júbilo daqueles que acreditam que os recursos do mundo existem para que sejam partilhados entre os poucos que demonstrem possuir e exercer mais poder, que defendamos o que a nossa história permitiu que fosse nosso e assim nosso deverá permanecer.
Senhores e Senhoras, estou lhes pedindo a atenção, a consciência e uma conduta coerente.
Não podemos permitir que tantas tolices que são verdadeiros crimes contra o patrimônio nacional se façam com nossa conivência, apostando nos resultados de nossa inércia.
É preciso que nos organizemos e entremos urgentemente com uma ação coletiva na Justiça contra essa "reforma" ortográfica estúpida.
Talvez caiba um Mandado de Segurança, não sei, não sou do ramo.
Mas quem puder que ajude, com seu saber e sua habilitação profissional, de alguma forma, o nosso País e todos nós, brasileiros, a nos manter de pé — em vez de apenas lamentar os prejuízos que vamos acumulando momento a momento, acreditando que a responsabilidade por eles não lhe cabe ou que, individualmente, estará a salvo deles. Não podemos mais permanecer assistindo coisas estúpidas acontecendo, conforme a vontade pretensamente “soberana” das autoridades governamentais, e a nos considerar impotentes sem que tenhamos ao menos tentado evitá-las ou revertê-las.
Só os que se recusam a enxergar a dimensão das conseqüências dessa "reforma" sobre a expectativa de manutenção e afirmação de nossa unidade e dos valores e recursos nacionais poderão me dizer que estou errada!
Ou aqueles a quem nada disso importaria.
Vania

"Laicidade positiva"

No ano passado (em 2008) o Presidente francês N. Sarkozy defendeu, em reuniões com o papa Bento XVI, o conceito de "laicidade positiva". No Brasil, como de hábito, não demos muita atenção a isso: afinal de contas, "laicidade", para nós, se tem algum significado, é algo próximo de um xingamento ou algo a evitar-se.

Felizmente os franceses e alguns britânicos não ficaram mudos ao conceito de "laicidade positiva", esquadrinhando os argumentos de Sarkozy e tirando as conseqüências políticas deles.

Em primeiro lugar, se Nicolas Sarkozy - com o apoio do papa - defende uma "laicidade positiva", qual seria a "laicidade negativa"? Seria, evidententemente, a tradicional laicidade francesa, defendida desde o Iluminismo, proclamada por Danton na Revolução Francesa e finalmente transformada em lei em 1905. Ela consiste simplesmente na separação entre Igreja e Estado, em que o Estado não professa nenhuma religião e também não persegue nenhuma: ao contrário do que os sofistas de plantão argumentam, não se trata de um "Estado ateu", mas de um "Estado agnóstico".

Definir o princípio da separação entre a Igreja e o Estado como "negativa" tem um efeito psicológico específico. Não se limita a definir uma laicidade em oposição a outra, mas qualifica uma e outra, de modo que a "negativa" é ruim, fraca, falha. Sarkozy sabe disso e não usou essa expressão por engano.

Se assim é a laicidade negativa, qual o "positivo", qual a vantagem da laicidade positiva de Sarkozy? São várias as vantagens por ele propaladas.

Em primeiro lugar, ela não persegue nenhuma religião (o que já é um sofisma, pois a "outra" laicidade acima de tudo e antes que qualquer outra coisa não o faz).

Além disso, ela permite que os grupos sociais e políticos religiosos exprimam-se qua religiosos e possam influenciar, qua religiosos, a política e o Estado. Diversos críticos da laicidade positiva afirmam que com isso o conceito de universalismo cidadão cai por terra, pois cada grupo poderá defender a sua perspectiva específica contra as demais e assumir uma legislação particularista: o comunitarismo teria como uma de suas conseqüências a criação (ou melhor, a aplicação) de leis ao estilo xaria, como a Inglaterra e o Canadá (talvez não por acaso, dois países que adotam a Common Law, em oposição ao Direito positivo de origem romana) já têm feito.

Uma outra característica da laicidade positiva é que, com ela, pode o chefe de Estado da República Francesa opinar sobre assuntos religiosos e, por extensão, de consciência e de opiniões - em particular, criticando quem não professa nenhuma fé como "monstruosidades morais". Ele faz isso desconsiderando que não cabe ao chefe do governo emitir opiniões sobre as crenças de seus cidadãos, desde que essas crenças não se ponham contra as leis da República... em outras palavras, Sarkozy assume uma posição literalmente retrógrada, que volta no tempo, em que o poder Temporal decide sobre matérias de consciência e dita em que os seus cidadãos podem ou não acreditar. (Penso na Idade Média e também na Idade Moderna dos reis Luíses, mas Sarkozy, que já desprezou publicamente os imigrantes argelinos de Paris, talvez também se lembre da Action Française, do regime de Vichy e do homem forte que, do exterior, apoiava-a...)

Em outras palavras, a "laicidade positiva" é uma mistificação que Nicolas Sarkozy criou para negar, sob todos os aspectos, a laicidade, conforme ela foi elaborada, defendida e institucionalizada na França. Detalhe 1: Sarkozy faz isso sob o olhar atento e aprovador de seu confessor-mor, o papa Bento XVI.
Detalhe 2: ao mesmo tempo em que afirmava esses importantes e desastrosos conceitos políticos, Sarkozy literalmente distraía a atenção pública com seu romance com Carla Bruni.

No Brasil não temos o hábito de refletir sobre o conteúdo dos discursos dos presidentes da República - mesmo porque os nossos presidentes, a começar por Lula, não falam coisa com coisa -, mas é uma questão de tempo até começarmos a sentir as conseqüências do Estado confessional, ops, da "laicidade positiva".

Para os interessados no assunto, informei-me a respeito em diversos blogues - todos eles europeus:

http://www.mezetulle.net/article-25741617.html

http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2008/feb/13/vivelalaicite
http://politique.hautetfort.com/archive/2008/01/16/laicite-positive.html

http://www.gaucherepublicaine.org/lettres/598.htm#goArticle3

http://esquerda-republicana.blogspot.com/2008/09/catherine-kintzler-cest-quoi-la-lacit.html

http://www.revue-republicaine.fr/spip.php?article1564

27 janeiro 2009

"Coro invisível" - oração positivista, de George Eliot

Publico abaixo duas versões do "Coro invisível", da poetisa inglesa George Eliot. A tradução é modestamente minha; se alguém desejar sugerir aperfeiçoamentos, agradecerei bastante.

“O May I Join the Choir Invisible”[1]


Prière positiviste


Longum illud tempus, quum non ero, magis me movet, quam hoc exiguum.—CICERO, ad Att., xii, 18.


O MAY I join the choir invisible

Of those immortal dead who live again

In minds made better by their presence: live

In pulses stirred to generosity,

In deeds of daring rectitude, in scorn

For miserable aims that end with self,

In thoughts sublime that pierce the night like stars,

And with their mild persistence urge men's search

To vaster issues.


So to live is heaven:

To make undying music in the world,

Breathing as beauteous order that controls

With growing sway the growing life of man.

So we inherit that sweet purity

For which we struggled, failed, and agonised

With widening retrospect that bred despair.

Rebellious flesh that would not be subdued,

A vicious parent shaming still its child,

Poor anxious penitence, is quick dissolved;

Its discords, quenched by meeting harmonies,

Die in the large and charitable air,

And all our rarer, better, truer self,

That sobbed religiously in yearning song,

That watched to ease the burthen of the world,

Laboriously tracing what must be,

And what may yet be better—saw within

A worthier image for the sanctuary,

And shaped it forth before the multitude

Divinely human, raising worship so

To higher reverence more mixed with love—

That better self shall live till human Time

Shall fold its eyelids, and the human sky

Be gathered like a scroll within the tomb

Unread for ever.


This is life to come,

Which martyred men have made more glorious

For us who strive to follow. May I reach

That purest heaven, be to other souls

The cup of strength in some great agony,

Enkindle generous ardour, feed pure love,

Beget the smiles that have no cruelty,

Be the sweet presence of a good diffused,

And in diffusion ever more intense.

So shall I join the choir invisible

Whose music is the gladness of the world.


1867.


George Eliot, The Legend of Jubal, and Other Poems, Old and New (1874)
Voir le poème utilisé dans la liturgie positiviste anglaise de la fin du XIXe/See the poem used in Victorian English positivist liturgy


Ó, que eu possa juntar-me ao coro invisível


Oração positivista

George Eliot, 1867


Longum illud tempus, quum non ero, magis me movet, quam hoc exiguum.—CICERO, ad Att., xii, 18.


Ó, que eu possa juntar-me ao coro invisível

Desses imortais mortos que vivem novamente

Em mentes feitas por suas presenças: vivem

Em pulsos agitados pela generosidade

Em feitos de desafiadora retidão – que desprezam

Os objetivos mesquinhos que se encerram em si mesmos – ,

Em sublimes pensamentos que perfuram a noite como estrelas

E com sua meiga persistência persuadem os homens a buscarem

Temas mais vastos


Assim, o paraíso é viver:

Para fazer música imorredoura no mundo,

Respirando como a bela ordem que controla

Com crescente balanço a crescente vida do homem.

Assim, nós herdamos essa doce pureza

Pela qual lutamos, falhamos e agonizamos

Com retrospecto que se amplia aquele desespero criado.

Carne rebelde que não seria subjugada,

Um genitor vicioso ainda infamando sua criança,

Pobre e ansiosa penitência, é rapidamente dissolvida;

Suas discórdias, extintas por harmonias reunidas,

Morrem no amplo e caritativo ar

E todos os nossos mais raros, mais verdadeiros e melhores âmagos,

Que choraram religiosamente em canção ansiosa,

Que vigiou para minorar o fardo do mundo,

Laboriosamente traçando o que deve ser,

E o que deve ainda ser melhor – viram dentro

Uma imagem mais valorosa para o santuário,

E moldaram-no adiante, antes da multitude

Divinamente humana, elevando a adoração

Para tão mais alta reverência, mais misturada com o amor –

Que melhor âmago viverá até que o Tempo humano

Dobre suas pálpebras e o céu humano

Seja unido como um rolo no seio da tumba

Não lida para sempre.


Essa é a vida que virá,

Que homens martirizados tornaram mais gloriosa

Para nós que nos esforçamos para seguir. Possa eu alcançar

Esse paraíso mais puro, ser para outras almas

A taça de força em alguma grande agonia,

Acender o ardor generoso, alimentar o puro amor,

Procriar os sorrisos que não têm crueldade,

Ser a doce presença de um difundido bem

E que se difunde sempre mais intensamente.

Assim, que eu junte-me ao invisível coro

Cuja música é a alegria do mundo.

Relevância contemporânea de Augusto Comte


(Observações de 5.10.2014: 
(1) A revista Insight Inteligência publicou um artigo intitulado "O Positivismo ontem como hoje", que retoma vários dos aspectos relacionados abaixo; ele pode ser consultado aqui: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2014/10/insight-inteligencia-o-positivismo.html.
(2) Uma versão inicial, maior, do artigo da revista Insight Inteligência pode ser lido aqui: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2014/10/relevancia-contemporanea-do-positivismo.html.)

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Sem pretender esgotar o assunto, relaciono alguns elementos que justificam a importância atual de Augusto Comte:
  1. “Reencantamento do mundo”: o conhecimento da realidade é condição necessária e inextirpável da vida humana, mas não é suficiente, pois ele refere-se apenas à inteligência; mais do que isso, as necessidades afetivas, morais e práticas do ser humano têm que ser atendidas e, para isso, Comte propunha todo um sistema de comemorações e representações – toda uma elaboração simbólica –, além da recuperação do fetichismo como elemento simbólico da vida humana
  2. Afirmação da autonomia da sociedade civil frente ao Estado e fiscal do Estado: Comte afirmava que o principal avanço político realizado na Idade Média foi a separação entre os dois poderes – Temporal e Espiritual –; tal separação, na verdade, foi esboçada na Idade Média mas deve realizar-se no mundo atual, em caráter permanente. Essa divisão consagra a existência do que se denomina atualmente de “sociedade civil”, percebida no Positivismo como fiscalizadora e legitimadora do Estado; por outro lado, o Estado tem que ser laico, ou seja, não pode professar doutrinas, sob risco de tirania e/ou doutrinação
  3. Afirmação da visão de conjunto na sociedade e para o ser humano: história, sociedade, Sociologia (ou Ciências Sociais): afirma-se repetidas vezes que um dos grandes problemas da sociedade atual é a fragmentação do conhecimento e da visão de mundo que cada um tem. Comte já percebera isso e indicara que é necessário constituir não apenas uma nova moralidade capaz de reinstituir essa visão de conjunto, como a própria ciência (social e moral, em particular) deve basear-se radicalmente nessa concepção
  4. Conhecimento científico da realidade: o relativismo pós-moderno afirma que as formas de conhecimento de todos os grupos e sociedades devem ser respeitados, derivando daí a conseqüência – falsa e enganadora – de que todos eles são iguais e que têm o mesmo valor epistemológico. O conhecimento científico da realidade (social, em particular) não é algo secundário ou desimportante; conhecer como a sociedade é e funciona é condição fundamental para melhorá-la e, assim, para o ser humano alcançar a felicidade
  5. Crítica ao individualismo em suas várias formas: ético, metodológico. Da mesma forma que se critica a fragmentação do conhecimento, o individualismo também é objeto de críticas correntes. Comte igualmente já tratara dessa questão, ao afirmar que não é aceitável falar-se em indivíduos como fundadores morais e teóricos da sociedade ou da Humanidade, mas apenas como integrantes de sociedades e que devem ser úteis; assim, o conceito de “direitos” – isto é, privilégios unilaterais exigidos por um contra outros – é substituído pelo de “deveres”, que são obrigações mútuas e necessariamente relacionais entre as pessoas, consagrando a dependência e a solidariedade mútuas. Essa crítica ao “indivíduo” não equivale à negação das identidades pessoais, do esforço (moral, intelectual, profissional etc.) que cada pessoa deve fazer sobre si mesma para desenvolver-se
  6. Epistemologia: a teoria do conhecimento de Comte afirma claramente a relatividade do conhecimento ao longo das épocas e nos diversos lugares, ao mesmo tempo que deixa claro que o conhecimento é sempre passível de modificações, de acordo com as teorias e com os dados disponíveis. Além disso, sempre que possível concepções estéticas devem auxiliar na elaboração e na difusão do conhecimento, bem como considerações morais e sociais mais amplas devem regrar a busca do conhecimento: o positivo não é apenas o que é real, mas também o que é útil
  7. Humanismo completo e radical, relativista e transdisciplinar: um dos objetivos, se não o objetivo fundamental de Augusto Comte era criar uma ética humana e humanista que afirmasse as possibilidades (mas, também, os limites) da ação humana no mundo e na própria sociedade; essa ética afirma o ser humano e, respeitando o papel histórico desempenhado pela teologia e pela metafísica para o desenvolvimento da Humanidade, retira de todas as concepções e instituições humanas os seus traços teológicos e metafísicos, ao mesmo tempo em que desenvolve todas as conseqüências lógicas e sociais da afirmação do ser humano; essas conseqüências são necessariamente transdisciplinares, baseadas em uma forte e sistemática visão de conjunto
  8. Importância das idéias e dos valores na vida social: uma das primeiras afirmações teóricas da carreira de Comte e um dos pilares do Positivismo é a afirmação sem subterfúgios da importância das idéias e dos valores para o ser humano e para a sociedade – e, assim, também para a Sociologia e para as ciências de modo geral –; idéias e valores para o Positivismo são importantes, são fundantes da sociedade e não meras decorações
  9. Perspectiva que conjuga o universal ao particular: como a Humanidade é um todo, em que cada indivíduo integra uma totalidade que o transcende historicamente, o Positivismo afirma os vínculos que unem o particular ao universal, cada indivíduo, família, cidade e pátria à própria Humanidade; além disso, a concepção que o Positivismo tem da Humanidade não inclui apenas os seres humanos, mas engloba os animais e os vegetais – a “natureza” – e mesmo o planeta Terra e o sistema solar
  10. Proposta de justiça social: uma proposta de ética humana tem que afirmar o que é justo e injusto, correto e incorreto, bom e mau, belo e feio; assim, há a clara definição de justiça social, em que os trabalhadores são respeitados e as condições sociais de vidas dignas são afirmadas; aliás, não apenas os trabalhadores individualmente, mas, de modo mais preciso, as famílias são respeitadas e amparadas
  11. Ultrapassagem das oposições ordem-progresso, materialismo-idealismo, agente-estrutura: o pensamento humano tende a operar com base em oposições binárias, tanto do ponto de vista lógico quanto também social, mas é importante perceber que os dualismos são importantes apenas para facilitar a compreensão que temos do mundo e da sociedade; assim, não se pode reduzir o mundo a esses dualismos nem permitir que eles dominem a ação humana: é exatamente com essa preocupação que o Positivismo respeita as posições dos dualismos mas ultrapassa-os resolutamente partir do humanismo, do conhecimento da realidade e da perspectiva de conjunto, conjugando aquilo que eles têm de compatível e deixando de lado o que é incompatível; entre as várias oposições que o Positivismo supera, podemos citar as que ocorrem entre ordem e progresso, materialismo e idealismo, agente e estrutura
  12. Utopia social: o Positivismo afirma claramente a importância dos ideais na conduta humana, como guias e modelos que conduzem as ações e os projetos políticos, sociais e individuais; para tanto, afirma uma sociedade mais justa e mais fraterna, em que as disputas são apenas diferenças de perspectivas e solúveis por meio do diálogo fraterno e racional
(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)