28 janeiro 2009

"Laicidade positiva"

No ano passado (em 2008) o Presidente francês N. Sarkozy defendeu, em reuniões com o papa Bento XVI, o conceito de "laicidade positiva". No Brasil, como de hábito, não demos muita atenção a isso: afinal de contas, "laicidade", para nós, se tem algum significado, é algo próximo de um xingamento ou algo a evitar-se.

Felizmente os franceses e alguns britânicos não ficaram mudos ao conceito de "laicidade positiva", esquadrinhando os argumentos de Sarkozy e tirando as conseqüências políticas deles.

Em primeiro lugar, se Nicolas Sarkozy - com o apoio do papa - defende uma "laicidade positiva", qual seria a "laicidade negativa"? Seria, evidententemente, a tradicional laicidade francesa, defendida desde o Iluminismo, proclamada por Danton na Revolução Francesa e finalmente transformada em lei em 1905. Ela consiste simplesmente na separação entre Igreja e Estado, em que o Estado não professa nenhuma religião e também não persegue nenhuma: ao contrário do que os sofistas de plantão argumentam, não se trata de um "Estado ateu", mas de um "Estado agnóstico".

Definir o princípio da separação entre a Igreja e o Estado como "negativa" tem um efeito psicológico específico. Não se limita a definir uma laicidade em oposição a outra, mas qualifica uma e outra, de modo que a "negativa" é ruim, fraca, falha. Sarkozy sabe disso e não usou essa expressão por engano.

Se assim é a laicidade negativa, qual o "positivo", qual a vantagem da laicidade positiva de Sarkozy? São várias as vantagens por ele propaladas.

Em primeiro lugar, ela não persegue nenhuma religião (o que já é um sofisma, pois a "outra" laicidade acima de tudo e antes que qualquer outra coisa não o faz).

Além disso, ela permite que os grupos sociais e políticos religiosos exprimam-se qua religiosos e possam influenciar, qua religiosos, a política e o Estado. Diversos críticos da laicidade positiva afirmam que com isso o conceito de universalismo cidadão cai por terra, pois cada grupo poderá defender a sua perspectiva específica contra as demais e assumir uma legislação particularista: o comunitarismo teria como uma de suas conseqüências a criação (ou melhor, a aplicação) de leis ao estilo xaria, como a Inglaterra e o Canadá (talvez não por acaso, dois países que adotam a Common Law, em oposição ao Direito positivo de origem romana) já têm feito.

Uma outra característica da laicidade positiva é que, com ela, pode o chefe de Estado da República Francesa opinar sobre assuntos religiosos e, por extensão, de consciência e de opiniões - em particular, criticando quem não professa nenhuma fé como "monstruosidades morais". Ele faz isso desconsiderando que não cabe ao chefe do governo emitir opiniões sobre as crenças de seus cidadãos, desde que essas crenças não se ponham contra as leis da República... em outras palavras, Sarkozy assume uma posição literalmente retrógrada, que volta no tempo, em que o poder Temporal decide sobre matérias de consciência e dita em que os seus cidadãos podem ou não acreditar. (Penso na Idade Média e também na Idade Moderna dos reis Luíses, mas Sarkozy, que já desprezou publicamente os imigrantes argelinos de Paris, talvez também se lembre da Action Française, do regime de Vichy e do homem forte que, do exterior, apoiava-a...)

Em outras palavras, a "laicidade positiva" é uma mistificação que Nicolas Sarkozy criou para negar, sob todos os aspectos, a laicidade, conforme ela foi elaborada, defendida e institucionalizada na França. Detalhe 1: Sarkozy faz isso sob o olhar atento e aprovador de seu confessor-mor, o papa Bento XVI.
Detalhe 2: ao mesmo tempo em que afirmava esses importantes e desastrosos conceitos políticos, Sarkozy literalmente distraía a atenção pública com seu romance com Carla Bruni.

No Brasil não temos o hábito de refletir sobre o conteúdo dos discursos dos presidentes da República - mesmo porque os nossos presidentes, a começar por Lula, não falam coisa com coisa -, mas é uma questão de tempo até começarmos a sentir as conseqüências do Estado confessional, ops, da "laicidade positiva".

Para os interessados no assunto, informei-me a respeito em diversos blogues - todos eles europeus:

http://www.mezetulle.net/article-25741617.html

http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2008/feb/13/vivelalaicite
http://politique.hautetfort.com/archive/2008/01/16/laicite-positive.html

http://www.gaucherepublicaine.org/lettres/598.htm#goArticle3

http://esquerda-republicana.blogspot.com/2008/09/catherine-kintzler-cest-quoi-la-lacit.html

http://www.revue-republicaine.fr/spip.php?article1564

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