20 setembro 2008

A “memética” transitando entre a metafísica e o pós-moderno



Há bastante tempo tenho uma certa impressão negativa dos militantes ateus, céticos ou dos agnósticos contrários à teologia. Formados de modo geral nas Ciências Naturais e influenciados pelos estadunidenses, suas referências teóricas giram em torno da Biologia e, em particular, do neodarwinismo. Até certo ponto isso faz sentido, pois os teológicos têm centrado seu ataque à racionalidade e à ciência no conceito de “projeto inteligente”, que é uma proposta de interpretação da Biologia. Ainda assim, o que causa estranheza é a total ausência de reflexões e referências filosóficas e históricas, ou seja, de elementos hauridos das Ciências Humanas.
É bem verdade que vieram das Ciências Humanas várias das maiores e mais importantes tolices contrárias à ciência das últimas décadas: compendiadas de modo geral no título abrangente de “pós-modernismo” e tratadas com rigor por Alan Sockal e Jean Bricmont, são perspectivas radicalmente relativistas que afirmam ser a ciência uma forma de conhecimento como outra qualquer, não passando de uma “narrativa” tão válida como qualquer outra produção cultural específica (isto é, mitos, literatura, RPGs, astrologia etc.). Além dessa postura, há as acusações usuais, mas nem por isso menos daninhas (e injustificadas), de que a ciência é “branca”, é “eurocêntrica”, é “burguesa”, é “masculina” – e por aí vai. Essas afirmações, muitas delas entronizadas como vanguardistas e apoiadas por governos e periódicos, cumpriram o importante desserviço de desacreditar perante os “cientistas naturais” os “cientistas humanos”. No caso dos pós-modernos, muitos dos seus problemas advêm do uso inadequado de conceitos das Ciências Naturais nas Ciências Humanas, ou seja, de um falso diálogo entre umas e outras.
De qualquer forma, essas aberrações teóricas das Ciências Humanas apenas afastam quem tem um interesse relativo nelas, mas não impede que os realmente interessados estudem-nas; em certos momentos, elas servem também para confirmar preconceitos anteriores (que, nesse caso, infelizmente serão justificados).
O fato, de qualquer maneira, é que desde pelo menos a década de 1970 há uma cisão, cada vez maior, entre as ciências humanas e as naturais, em que cada lado orgulha-se de sua ignorância relativamente ao outro. É claro que tal separação produz os piores resultados possíveis e serve apenas àqueles que têm interesse em combater a ciência e, de modo mais específico, têm interesse em combater uma visão positiva da realidade.
A idéia dos “memes” – nome que Richard Dawkins utilizou para renomear as idéias, dentro de seu jargão e fazendo uma pilhéria a partir da palavra “creme” – é exemplar nesse sentido. Ela foi proposta por Dawkins para comparar alguma coisa na realidade ao comportamento replicador dos genes e refere-se a uma suposta propriedade de inúmeras idéias de imitarem-se e serem imitadas – isto é, de consistirem em unidades que buscam sua reprodução.
Dessa forma, a “memética” explicaria como diversas idéias multiplicam-se em termos de aderentes; como elas vêm em conjuntos e por aí vai – chegando ao ponto de explicar até mesmo porque o ser humano pensa[1]!
O curioso – e mais assustador – é que seus proponentes são cientistas naturais que exigem rigor na elaboração de idéias em suas próprias áreas de estudos mas que não têm o menor cuidado ao tratarem da dinâmica das idéias. Mas o que é de fato muito mais assustador é que tais cientistas são alguns dos mais importantes divulgadores da ciência e combatentes da teologia e do modo teológico de pensar e perceber a realidade. Dessa forma, eles prestam dois desserviços à ciência: ao exporem-se ao ridículo, afirmando uma bobagem completa, e ao praticarem um extremamente grosseiro materialismo.
Comentei acima que os pós-modernos e outros teóricos oriundos das Ciências Humanas elaboraram e têm elaborado, desde os anos 1970, uma série de críticas à ciência; essas críticas teriam afastado vários interessados nelas e, em outros casos, teria confirmado preconceitos. No caso dos cultores da memética, trata-se exatamente da última situação: pesquisadores das Ciências Naturais que desprezam as Ciências Humanas e consideram que podem aplicar seus modelos, suas técnicas e seus raciocínios ao âmbito social e humano sem maiores preocupações teóricas ou metodológicas.
Por que afirmo que tais pesquisadores desprezam as Ciências Humanas? Devido aos seguintes motivos:
1. eles deixam de lado, sem mais, as especificidades dos fenômenos humanos e sociais, que – consideram eles – podem e deve ser estudados de acordo com os parâmetros das Ciências Naturais (no presente caso, da Biologia). Assim, para eles, o ser humano é apenas uma máquina portadora de genes – ou de memes – e a sociedade é apenas uma forma mais cômoda de essas máquinas funcionarem (quem sabe, é uma máquina de “nível dois”);
2. afirmar que há muita tolice produzida nas Ciências Humanas não é a mesma coisa que afirmar que a produção das Ciências Humanas tout court é tolice. Dessa forma, é evidente que há coisas boas, bem-feitas, sérias e consistentes que tratam em profundidade das questões que a “memética” pretende explicar: entretanto, os “memeticistas” olimpicamente as deixam de lado. É evidente que se tivessem um interesse genuíno por saberem o que se produz a respeito de determinados assuntos, saberiam e conseguiriam distinguir o que presta do que não presta; se não o fazem, não é porque não possam, mas porque não querem. No fundo, os adeptos da “memética” têm pouco ou nenhum conhecimento de filosofia das ciências – vejam o plural: das “ciências”, não da ciência específica em que cada um pesquisa. Por fim, eles têm um defeito moral bastante humano: são prepotentes, aplicando a outros âmbitos da realidade procedimentos que, caso fossem aplicados aos seus próprios, julgariam inaceitáveis, acientíficos ou pseudocientíficos.
A “memética” postula que as memes são unidades que buscam reproduzir-se e espalhar-se pelas sociedades. Assim, o automatismo perceptível em diversas formas de pensar e, a partir daí, de agir seria explicado pelo “memetismo” dessas formas de pensar. Em diversos momentos os “memeticistas”, fiéis à sua origem na Biologia, usam a metáfora das memes como vírus, que atacam organismos com o fim de reproduzirem-se: a diferença está em que as memes atacam inteligências, não organismos. (Claro: aplicar a metáfora do vírus às memes é aplicar uma metáfora a uma metáfora... isso é o que poderíamos convictamente chamar de “pós-moderno”.) Os melhores exemplos de memes são os fenômenos de massa: modas, ideologias políticas, religiões, mitos, tabus, boatos etc.
O que subjaz a isso? Que os seres humanos são meros portadores de conjuntos de idéias; que esses conjuntos de idéias têm autonomia volitiva e – curiosa exceção – que as memes só não atacam quem tem pensamento disciplinado. (Ora, o que garante que a “memética” não é, ela mesma, uma meme? Uma simples observação sociológica, ops!, uma simples “observação memética” revela claramente que os “memeticistas” procedem de acordo com os códigos e padrões de todas as outras memes – embora, naturalmente, isso seja rejeitado ou negado à partida pelos “memeticistas”.)
Embora qualquer observador razoável concorde com a afirmação de que as “idéias de massa” produzem um comportamento de massa, que mais se assemelha a um automatismo, isso está muito longe de afirmar que os seres humanos – mesmo que se adote a cláusula, ou hipótese, de “seres humanos ‘massa’” – são simples portadores de idéias, estas sim com capacidade volitiva. Bem ao contrário, o que se percebe é que os seres humanos têm capacidade volitiva autônoma e que são inúmeros os fatores intervenientes em cada decisão e em cada formulação intelectual.
Por outro lado, o impulso “memético” à reprodução não se sustenta como hipótese. Antes de prosseguir: a “memética” não se sustenta como hipótese científica, pois todas as características da meme fazem dela um exemplo acabado de conceito de metafísica no sentido comtiano, ou seja, uma abstração personificada. Em termos efetivamente científicos, o comportamento de massa não precisa de hipóteses extravagantes como a meme para ser explicado: basta o desejo, inicialmente individual, de ser aceito, de perceber-se como integrante de um grupo, de um grupo que confira sentido à existência; ou, então, ao sentido de pertencimento de um grupo que se contrapõe a outro grupo. Temos aí que aplicar um dos princípios científicos mais elementares, a navalha de Ockham (que, como já comentamos, é aceito pelos “memeticistas” em suas áreas específicas de pesquisa mas olimpicamente desprezado no que se refere à “meme”): temos que escolher a teoria mais simples que abarque o conjunto dos dados a considerar[2]. Pois bem: entre a busca de aceitação para constituição da personalidade e a existência abstrata de um vírus abstrato que ataca as cabeças, a escolha não é muito difícil...
Nas Ciências Humanas há várias abordagens mais ou menos complementares que explicam o surgimento e o desenvolvimento das idéias; sem esgotar o estoque teórico-metodológico, podemos citar as seguintes perspectivas. A partir de uma visão histórica e de longo prazo, a lei dos três estados, de Augusto Comte, estabelece que os seres humanos ativamente avaliam o mundo (incluídas aí, por óbvio, as realidades social e individual) e buscam formas de interpretar sua realidade, de acordo com as necessidades sociais, afetivas e práticas em que vivem. Uma abordagem que permite operacionalizar pesquisas sobre as formas de pensamento é a de Mark Bevir, que estipula que cada indivíduo forma uma concepção da realidade e do mundo a partir de várias influências e que, após constituída essa concepção, defronta-se com situações que ou confirmam-na ou desafiam-na. Além disso, há perspectivas que afirmam que o conhecimento ou as produções intelectuais reagem a estímulos ou a constrangimentos sociais, seja para existirem conforme as necessidades do poder (estatal e capitalista) (Foucault), seja para enquadrarem-se em áreas específicas de atuação (Bourdieu).
Essas são apenas algumas possibilidades que as Ciências Humanas oferecem há décadas ou séculos para explicar os mesmos fenômenos que a adventícia “memética” considera. A diferença entre aquelas e esta é que as Ciências Humanas, a despeito de inúmeras limitações, são científicas: explicam as realidades a que se referem usando categorias do mesmo âmbito a que se referem; não usam metáforas reducionistas para explicar seus fenômenos; adotam as hipóteses mais simples.
Para retomar o que comentei no início do texto: o diálogo entre Ciências Humanas e Naturais é – ou tem sido, nas últimas décadas – fraco, ruim ou inexistente. Enquanto, por um lado, os pós-modernos usam incorretamente conceitos das Ciências Naturais para explicar fenômenos das Ciências Humanas, há cientistas naturais que se arvoram em pesquisadores das questões humanas e sociais sem terem o menor conhecimento das Ciências Humanas. Enquanto o primeiro caso é fruto de inveja ou de emulação ingênua, o segundo resulta de arrogância.
O mais problemático nisso é que os propositores e defensores da pós-moderna e metafísica – portanto, acientífica ou pseudocientífica – “memética” são os mesmos que se batem contra a teologia e a irracionalidade dela decorrente. Muito mais que um simples mau exemplo de conduta prática, esses “memeticistas” são defensores de uma postura contraditória e irracional, que é qualquer coisa menos a modesta e simples forma científica de conhecer a realidade. Gol contra a ciência e a racionalidade, mas a favor da teologia, da mistificação e da irracionalidade.




[1] “Por que o ser humano pensa?” é caracteristicamente uma questão absoluta, metafísica – portanto, não-científica.
[2] Algumas perspectivas pós-modernas sobre a ciência afirmariam que a própria ciência apresenta características de movimento de massa: não é despropositado afirmar que a “ciência normal” de Thomas Kuhn pode ser percebida dessa forma. Assim, a ciência seria “memeticamente” explicável, com a tão propalada racionalidade da ciência sendo simplesmente uma meme. Aliás, como já sugerimos, a própria difusão da “memética” é um exemplo de “meme”: um bando de gente repetindo mecanicamente uma idéia que não faz o menor sentido.