23 maio 2007

Positivismo como eurocentrismo

Há alguns dias, em um fórum de discussões humanistas, surgiu a afirmação, de caráter acusatório, de que o Positivismo é “eurocêntrico” e, portanto, não poderia ser um verdadeiro humanismo nem uma verdadeira religião da “humanidade” (pois seria restrito à Europa)[1]. Essa afirmação é falaciosa – como veremos abaixo.

Todo humanismo, aliás como toda filosofia, é “impregnado” pelo ambiente em que é formulado, mesmo que afirme ou que pretenda a universalidade. Os humanismos formulados na Índia são “hinducêntricos”; os humanismos feitos na América Latina são “latino-americanocêntricos” e assim por diante. Não reconhecer isso revela simplesmente desconhecimento da história das idéias e da amplitude dos humanismos.

Por outro lado, ao considerar que o Positivismo é “eurocêntrico”, deve-se reconsiderar a ciência que, supostamente, pratica-se, assim como as posições céticas, atéias ou agnósticas, pois todas elas são “eurocêntricas” (nem adianta citarem-se os Estados Unidos, pois eles fazem parte da civilização ocidental, isto é, da civilização originada na Europa).

Essa “crítica” lembra muito o que os pós-modernos e os multiculturalistas falam dos céticos, dos humanistas e de todos aqueles que são contra o primado da teologia e da metafísica na vida dos seres humanos; para essas pessoas, os humanismos são discursos discriminatórios, eurocêntricos (ou “ocidentocêntricos”), burgueses, machistas e brancos que lançam mão de um apelo à universalidade para afirmar a supremacia da burguesia branca masculina ocidental. Com isso, os pós-modernos e os multiculturalistas afirmam a validade teórica e científica de todas as formulações absolutas e “questionam” (isto é, rejeitam) o relativismo ocidental. Os criacionistas são alguns que se aproveitam disso, de braços dados com os radicais islâmicos e com aqueles que, por exemplo, querem implantar a xaria (a lei tradicional islâmica) no Canadá.

Por outro lado, o Positivismo não é um “culto ao eurocentrismo”, mas exatamente ao contrário: ele é um culto a toda a Humanidade. O Positivismo celebra toda a Humanidade, isto é, todos os povos, de todas as épocas e de todos os lugares. Aliás, na época do neocolonialismo europeu e do início das violências nacionalistas, o Positivismo afirmava o seu humanismo radical, afirmando a ética universal como único princípio de conduta válido para o ser humano tomado como indivíduo, como integrante de uma família, de um país e de uma civilização. A fraternidade universal, esclarecida pela positividade, é o objetivo supremo do Positivismo. É assim que os Positivistas procuram conhecer, respeitar e valorizar ativamente todas as culturas; é por esse motivo que celebramos as civilizações não-ocidentais: chineses, hindus, islâmicos, japoneses, as várias culturas africanas etc., lendo suas literaturas e seus livros sagrados. (Para não perder o hábito: basta ler Comte para confirmar essas posições e perspectivas.)

Algumas referências bibliográficas de acesso relativamente fácil ilustram essas questões. No volume organizado por Hélgio Trindade, Positivismo – teoria e prática, publicado há alguns anos pela editora da UFRS, encontrará um interessante artigo de Abdelwahbab Bouhdiba, em que o autor, de origem tunisiana, afirma a importância de Comte para a afirmação das identidades nacionais africanas, na medida em que o fundador do Positivismo sempre foi, claramente, contra o colonialismo: ele punha-se desde a primeira metade do século XIX contra a colonização francesa da Argélia. (Como sabemos, a Argélia tornou-se independente apenas no final dos anos 1950, após uma sangrenta guerra suja.)

O humanismo positivista também se manifestou em várias outras ocasiões. Durante a Grande Guerra, isto é, durante a I Guerra Mundial, os positivistas conclamavam todos os povos à harmonia e ao entendimento mútuo, afirmando a fraternidade universal.

Após a II Guerra Mundial, o positivista Paulo Berredo Carneiro foi o idealizador e criador de nada menos que a Unesco, isto é, do órgão das Nações Unidas que busca a fraternidade universal por meio de um humanismo universal, laico e positivo. Depois de criada a Unesco, Paulo Carneiro foi o embaixador brasileiro no órgão por décadas. (Veja-se: Ciência, política e relações internacionais, organizado por Marcos Chor Maio (Rio de Janeiro, Unesco-Fiocruz, 2004); disponível aqui).

Assim, mais uma vez as perguntas: como assim o Positivismo é um “culto ao eurocentrismo”? Como assim ele não é um humanismo? Como é possível que preconceitos tão superficiais (poderiam ser profundos – não faria diferença: são preconceitos) persistam? E como é possível que se possa afirmar o humanismo brandindo tais preconceitos?



[1] Mensagem n. 5013, de 19 de maio de 2007, do fórum Curitibacetica, hospedado no Yahoo! Grupos. Este texto funde as respostas que formulei, postadas como as mensagens de n. 5015 e 5016, de 20 de maio de 2007, do mesmo fórum.