04 janeiro 2007

Sobre a separação entre a Igreja e o Estado

Sobre a separação entre a Igreja e o Estado

A separação entre a Igreja e o Estado é um dos princípios basilares do Estado brasileiro e, na verdade, do moderno Estado de Direito. Embora em um primeiro instante pareça que ele refere-se apenas à impossibilidade de o Estado professar qualquer fé, ele tem outras aplicações.

A separação entre Igreja e Estado não é apenas um princípio negativo, que veda ao Estado a profissão de fé ou à Igreja de intrometer-se nos assuntos estatais; na verdade, o que ele consagra é a laicidade nas questões públicas, no sentido de que não se faz – não se deve fazer – referência a religiões ao tratar-se das questões coletivas. Se uma pessoa acredita no deus católico, outra em Alá, outra não acredita em nenhum e outra prefere Lênin, essas questões são de ordem pessoal e privada; embora em suas casas e em suas relações pessoais possam fazer proselitismo, ao tratarem dos assuntos coletivos apenas uma realidade é aceitável: a sociedade como um todo, em diferentes níveis (governos municipais, estaduais, nacionais ou a própria Humanidade).

Isso tem uma conseqüência clara: o Estado não pode beneficiar as diversas fés, sejam elas do caráter que forem. Não importa se os governantes são católicos, protestantes, budistas, ateus, agnósticos, comunistas, livre-pensadores; também não importa se os governantes querem satisfazer uma demanda de um grupo específico (por mais numeroso que ele possa ser). Assim, por exemplo, o apoio do Estado a festivais religiosos é errado e, na verdade, é ilegal, na medida em que, no Brasil, é inconstitucional. No Paraná, por exemplo, o governo do estado apoiou um festival de música cristã – o que é uma aberração do ponto de vista de um Estado efetivamente republicano –, mas, agora que estamos no final do ano, os apoios oficiais às comemorações cristãs do natal multiplicar-se-ão. Onde fica o princípio republicano, conquistado há 116 anos no Brasil, da separação entre a Igreja e o Estado?

É necessário notar que a laicidade pública é a base da liberdade de pensamento e de expressão e do pluralismo social e político nas sociedades ocidentais. Assim, ao contrário de parecer que o afastamento das crenças da esfera pública diminui a importância da religião na sociedade, na verdade ela é a própria garantia de que as religiões continuarão existindo.

Como? Ora, um governo que professa uma fé, se for um governo “esclarecido”, poderá, talvez, permitir a expressão das outras crenças; todavia, governos esclarecidos são mais raros do que gostaríamos e a opressão humilhante é a regra. Exemplos recentes disso não faltam: o comunismo na antiga União Soviética, o nazismo, os regimes baathista de Saddam Hussein, dos aiatolás no Irã e o talibã no Afeganistão. Além de ser opressivo (o que, por si só, é pernicioso), um governo que professa uma fé impede que a sociedade organize-se e que viva autonomamente; para usar uma terminologia que se tem consagrado, um Estado que professa uma fé impede a manifestação da sociedade civil.

Um pouco de história nunca faz mal. A separação entre Igreja e Estado surgiu ao longo da Idade Média como uma forma de ambos os poderes (Igreja e Estado) policiarem-se mutuamente (tendo um resultado de fiscalização muito mais eficaz que a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário), mas a retração da religião à esfera privada surgiu a partir do século XVII, quando as violentas guerras de religião na Europa transformaram-se em guerras civis, que não raras vezes separavam até mesmo famílias.

No Brasil a separação entre a Igreja e o Estado, apesar de ter-se realizado logo no início da república, em 1890, nunca se completou e, na verdade, ela tem passado por uma regressão “lenta, gradual e segura”, de modo geral misturando hipocrisia, demagogia e (má-)fé. Senão, vejamos: Getúlio Vargas instituiu os feriados públicos religiosos; o Marechal Castello Branco proclamou N. Sra. Aparecida “padroeira” e “generalíssima do Brasil”; José Sarney incluiu o “deus seja louvado” em todas as cédulas (mantido e negritado pelo “ateu” Fernando Henrique Cardoso); o “Preâmbulo” da Constituição de 1988 fala em deus (apesar da proibição indicada no Art. 19 do mesmo documento) e quase todos os tribunais e órgãos públicos brasileiros ostentam crucifixos (que aumentam de tamanho à medida que aumenta a importância da corte ou do órgão).

Além dos fatos esparsos indicados anteriormente, no Brasil recente – digamos, nos últimos 15 anos –, as manifestações de caráter religioso têm aumentado. Se elas fossem exclusivamente da sociedade civil e no âmbito religioso, não haveria nada a obstar; entretanto, o que se nota é que, cada vez mais, a fé é um valor público. Por exemplo: no interior do Paraná, há alguns anos, um Prefeito tomou por mote de sua gestão o dístico “Fé e trabalho”! Todavia, não nos esqueçamos de grupos religiosos ligados a canais de televisão e a partidos políticos, no Brasil de um modo geral e no Rio de Janeiro em particular[1].

Um outro exemplo, a partir de uma experiência pessoal: na semana passada recebi um documento de uma comissão interna da Universidade Federal do Paraná, onde trabalho; esse documento consistia em uma rápida prestação de contas da comissão, que está prestes a ser substituída por outra. Eis o que, a certa altura, escreveu-se no documento: “Os membros da atual e última gestão agradecem em primeiro lugar a Deus que nos orientou no caminho certo”. À parte o fato de que não se sabe o que significa precisamente esse “caminho certo”, essa declaração ilustra bem o grau de decomposição do espírito republicano no Brasil. Uma comissão interna de um órgão público pura e simplesmente não pode fazer uma declaração desse tipo; se se aceita algo assim, é porque se julga legítimo que a fé seja um valor cívico – o que não é.

Fala-se muito em cidadania e direitos em nosso país e, recentemente, a palavra “republicano” voltou ao vocabulário político corrente. Pelo que vimos, essas palavras não significam muito, face aos acontecimentos cotidianos. Se queremos que este país (e a Humanidade como um todo) melhorem, é bom começarmos a levar a sério o que essas palavras querem dizer – e completemos, respeitemos e aprendamos o que significa um princípio democrático consagrado faz mais de um século.



[1] Nas últimas semanas a imprensa tem divulgado a constituição de um novo Partido Republicano, que, apesar do nome, será constituído em sua maior parte por grupos religiosos que tornam ou querem tornam a religião um tema e um valor político.

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